Ao infinito e além da trilogia dos brinquedos: pensando a cultura popular e a cultura visual a partir de Toy Story

To infinity and beyond the trilogy of toys: thinking about pop culture and visual culture from Toy Story[1]

Ana Paula Penkala[2]

Resumo

Este trabalho propõe uma reflexão sobre a cultura popular e a cultura visual a partir da trilogia da Pixar Animations Toy Story. Alguns aspectos dessas animações são capazes de nos mostrar características da imageria pós-moderna, que está aqui sendo considerada dentro de um contexto de produção cultural e enquanto reflexo de novas práticas sociais. Trata-se de uma abordagem inicial sobre o papel da animação na manutenção de uma memória coletiva.

Palavras-chave: cultura pop; cultura visual; Toy Story; sociabilidade; colecionismo.

Abstract

This paper proposes a reflection on popular culture and visual culture from the Pixar Animation’s trilogy Toy Story. Some aspects of these animations are able to show us characteristics of postmodern imagery, which is here being considered within a context of cultural production and as a reflection of new social practices. This is an initial approach on the role of animation in the maintenance of a collective memory.

Keywords: pop culture; visual culture; Toy Story, sociability; colecionism.

O maior espetáculo da Terra

Com um discurso emocionado[3], na edição de 2009 do Golden Globes Awards, Steven Spielberg recebeu o prêmio Cecil B. DeMille lembrando de sua primeira sessão de cinema, aos seis anos. Na época, seu pai o havia levado para assistir O maior espetáculo da Terra (The greatest show on Earth, Cecil B. DeMille, 1952). Ao chegar em casa, o menino Spielberg tentou reproduzir com um brinquedo “possivelmente o maior desastre de trem que já foi filmado”. Fez aí seu primeiro filme, usando um tipo de Ferrorama[4] e filmando a cena em uma câmera de 8mm[5] que seus pais tinham em casa. Hoje Spielberg é responsável por uma parte importante da iconografia do cinema, alimentando o imaginário de pelo menos duas gerações de espectadores com memórias povoadas de brinquedos e imagens memoráveis. Demonstração disso se vê em Super 8, filme de J. J. Abrams lançado em 2010 nos Estados Unidos. Fã confesso de Spielberg, Abrams chega a reproduzir em seu filme a cena que havia povoado a imaginação do ídolo aos seis anos: um dos maiores desastres de trem já vistos. O que Abrams nos apresenta em Super 8 é uma homenagem nostálgica aos filmes que Spielberg dirigiu ou produziu[6], falando diretamente aos fãs do cinema dos anos 70 e 80 e agrupando cuidadosamente em uma coleçãozinha suas memórias de infância e as relações que fãs de cinema fazem com as imagens icônicas da sétima arte.

O trem é figura constante na história do cinema. Desde A chegada do trem à estação (L’Arrivée d’un train à La Ciotat, Louis e Auguste Lumière, 1895) e A General (The General, Clyde Bruckman e Buster Keaton, 1926) passando pelo citado O maior espetáculo da Terra e Era uma vez no Oeste (Once upon a time in the West, Sergio Leone, 1968), até De volta para o futuro III (Back to the future III, Robert Zemeckis, 1990), O curioso caso de Benjamin Button (The curious case of Benjamin Button, David Fincher, 2008) e Super 8, o trem está presente como a metáfora da maravilha da modernidade que é a imagem em movimento. Como alegorias, os trens atravessam a evolução da sétima arte como se os séculos XIX, XX e XXI fossem interligados por vias férreas, e antecipam o espectador de massa (AUMONT, 2004). Sua aparição em qualquer filme sempre remonta, para os fãs de história do cinema, a primeira sessão de cinema, na Paris de 1895.

Que relação esses elementos podem ter com a trilogia Toy Story[7], da Pixar Animations? Primeiro, os brinquedos são parte da cultura popular do século XX e XXI, especialmente a partir do pós-Segunda Guerra Mundial, quando se estabelece uma nova relação com e uma nova percepção da infância, a qual é atravessada, por sua vez, pela também nova relação com a produção de objetos e o consumo. (ver MORIN, 1997) Segundo porque o cinema é responsável por grande parte da imageria[8] do século XX e XXI, atravessando os imaginários e sendo peça importante da cultura visual desde a modernidade. Os brinquedos, nessa trilogia, são apropriados como ícones, e representam, ao lado das imagens propriamente ditas, um conjunto de referências, citações e homenagens ao passado recente, onde nasce a pós-modernidade e onde uma nova cultura começa a ser criada. Esse conjunto diz muito sobre esse espaço histórico onde nasceu a cultura pós-moderna, com suas novas lógicas e sua “retórica visual” (CAUDURO; PERURENA, 2008)

Toy Story não é uma trilogia qualquer, muito menos representa uma simples produção dentro do mercado de animação. A menina dos olhos da Pixar (estúdio que hoje pertence à Disney) e uma das sequências mais bem sucedidas da produção audiovisual, a “trilogia dos brinquedos” não foi pensada como um produto para crianças como o seriam os antigos contos de fadas musicais da Disney, mas uma animação (em 3D) cuja qualidade não está apenas nos gráficos caprichosos. Seu sucesso com o público que varia entre crianças, adolescentes e adultos está principalmente na construção dos personagens e no roteiro, algo que reinventa, em desenho animado, o que Spielberg já vinha fazendo desde pelo menos E.T. O Extraterrestre (E.T. The Extraterrestrial, 1982), quando mostrava crianças vivendo conflitos reais e personagens cheios de camadas de significação. Sobretudo, Toy Story representa uma nova expressão da produção audiovisual, que ilustra um estágio em que a cultura popular está atravessada inevitavelmente pela cultura visual e esta está permeada por um sentimento colecionista e nostálgico de citar, referenciar e homenagear seus próprios objetos. A cultura visual pós-moderna vem elevando imagens ao status de clichês, mas não com a conotação negativa que “clichê” sempre teve para as narrativas audiovisuais, mas na acepção que se tem do termo nas artes gráficas: um modelo, um carimbo, um objeto de reprodução de imagens, um tipo. Essas “figuras” da retórica visual pós-moderna (PENKALA, 2012) que são a referência, a citação, a homenagem e a apropriação de imagens do passado são atravessadas, junto aos produtos desta cultura visual, por novas formas de relação social, novas sociabilidades, pensadas dentro de lógicas midiáticas que articulam as lógicas de mercado e do espetáculo (PENKALA, 2011). Servem, essas figuras, como manutenção cultural e usam a memória como veículo.

Este trabalho é a continuidade de uma reflexão que vem sendo feita em uma pesquisa que trata de memória, nostalgia, cultura pop e colecionismo no cinema pós-moderno, e enfoca o campo da animação com especial atenção aqui, uma vez que essa retórica visual tem se expressado cada vez mais por meio dela. Exemplo emblemático disso é Rango (Gore Verbinski, 2011), cheio de referências ao cinema: desde as mais emblemáticas até aquelas que só cinéfilos podem identificar. Filmes, videoclipes e séries de TV citando, homenageando ou fazendo referência a outros filmes, videoclipes e séries de TV são um dos elementos mais característicos da produção audiovisual contemporânea, profundamente marcada por uma tendência ao retroativo (CAUDURO; RAHDE, 2005) e à recordar (PENKALA, 2012). O que a pesquisa como um todo e este texto em certa medida pretendem é dar conta de um universo de produção audiovisual peculiar, atravessado pelo paradigma de uma pós-modernidade maneirista, de um tempo em que tudo já foi feito (DUBOIS, 2004) e só nos resta copiar os estilos “mortos” (do passado) (JAMESON, 2006). De certa forma, o que se pretende discutir aqui contrapõe um outro caminho para a contemporaneidade pensada como pós-história por Vilém Flusser (1983), para quem viveríamos o momento da predominância do discurso sobre o diálogo; ou mesmo uma alternativa menos alarmante para aquilo que Fredric Jameson (1996) chama de “perda do senso ativo de história”. Embora esses conceitos não sejam propriamente considerados na discussão que se segue, são importantes para a contextualização da pesquisa da qual este texto decorre, atualmente em fase inicial. O que interessa, aqui, é começar a pensar a) como esses três filmes representam a cultura visual pós-moderna; b) que tipo de (novas) relações de sociabilidade a trilogia da Pixar vem ajudando a construir; e c) de que forma a cultura popular está ali refletida.

A reflexão que aqui proponho é fruto de uma primeira e geral abordagem e introduz alguns conceitos que são muito caros ao próprio entendimento de nosso tempo, buscando definir o zeitgeist pós-moderno através da produção audiovisual. Essa definição passa, obrigatoriamente, por uma discussão sobre como nos relacionamos, no contexto da cultura popular, com a profusão de imagens que nos coloca em uma era do visível (JAMESON, 2006) preponderantemente; e sobre que fio invisível costura a produção audiovisual desde os anos 80 para que ela possa representar tão caracteristicamente a imageria pós-moderna (PENKALA, 2011). Interessa aqui pensar na trilogia Toy Story como significativa porque ilustra uma produção preocupada em homenagear o cinema e a TV – homenageando, assim, uma infância típica da segunda metade do século XX – e também porque cria e reforça uma nova forma de sociabilidade. Por um lado, portanto, estamos falando de um cinema da memória (PENKALA, 2012). Por outro, de novos vínculos sociais com novos códigos. O que se segue é um exame inicial sobre essa coleção de referências, de imagens-objeto, que colocam o brinquedo e a iconografia do cinema no mesmo patamar de importância nostálgica numa trilogia que conta a história de objetos nostálgicos por natureza.

Colecionadores de brinquedos

A história de dois brinquedos que disputam a atenção e o amor de uma criança seria, em tese, um argumento universal, apesar de não muito comum nas animações até então. Embora o “brinquedo” como conceito possa ser universal, Woody, o cowboy, e Buzz Lightyear, o astronauta, representam uma cultura que podemos localizar no tempo e no espaço: pós-Segunda Guerra Mundial, Ocidente. Essa cultura é sedimentada no cinema e contribui para a hegemonia da iconografia e bens simbólicos norte-americanos potencializados por uma crescente globalização e “ocidentalização” (JAMESON, 2006), ou, mais especificamente, “americanização” (HANSEN, 2004) do mundo. O papel do cinema é importante na reconstrução de uma ocidentalidade abalada pela Segunda Guerra de forma bastante peculiar. Já hegemônico por sua natureza industrial, o cinema norte-americano reforçou ainda mais sua entrada e influência sobre outros países ocidentais (e, eventualmente, os orientais também), difundindo, através de seu star system, de seus gêneros universalizantes e de sua técnica avançada um sistema de crenças e um imaginário que vão, aos poucos, atravessando as culturas latino-americanas, europeias e etc. Ao mesmo tempo, a prosperidade nos EUA é reflexo e causa de um novo mercado consumidor e uma nova abordagem publicitária, ambos aquecidos pela vontade de deixar a guerra para trás e impulsionados por uma promessa de crescimento social. O cenário, no início dos anos 50 nos EUA, era de jovens famílias felizes, eletrodomésticos “de ponta”, trabalho para todos e modos de produção inovadores que otimizavam o mercado de bens duráveis. Assim desponta o american way of life.

Dois personagens do cinema ganham espaço nesse contexto, difundindo-se depois na programação da televisão, então uma novidade: o cowboy e o homem do espaço. A década de 50 é marcada por uma ascensão das histórias de ficção científica, protagonizadas por alienígenas ameaçadores e heróis humanos com suas roupas espaciais. Ao mesmo tempo, a figura do “vaqueiro” ainda tinha lugar no gênero mais característico do cinema norte-americano, o western.  Embora westerns e filmes de ficção disputassem cada vez mais espaço nos cinemas com os filmes de guerra, estes representavam um tipo de expurgo dramático dos fantasmas do conflito mundial, um cinema com assunto de adulto, para adultos e com o peso das responsabilidades políticas e das consequências tristes. Os faroestes distanciavam os norte-americanos (e não só) desses fantasmas e os filmes com invasores do espaço (os aliens[9]) eram a alegoria perfeita para o momento político pelo qual a sociedade norte-americana estava passando: a caça aos comunistas[10].

Quando, no primeiro Toy Story, vemos Woody, o cowboy quase todo de tecido, sentir-se ameaçado pelo novo brinquedo, Buzz Lightyear, e logo depois compartilhar com o astronauta de plástico um espaço de amizade e cooperação, estamos diante de uma história que o imaginário infantil explica, embora a cinematografia normalmente torne incoerente. De qualquer forma, o faroeste, representado em Woody, e a relação com o espaço, representada por Buzz, demarcam dois momentos na cultura popular e visual que se deram no cinema e acabaram difundidos entre as brincadeiras infantis e, mais adiante, nos brinquedos e outros itens que a indústria tratou de inventar para aquecer o mercado. O brinquedo velho, o cowboy Woody, tendo seu lugar tomado pelo novo, o astronauta Buzz, representam o velho cinema e o novo cinema, mas representam também as lógicas de consumo que tomavam conta da sociedade daquele país: um brinquedo de um Natal rapidamente ficava obsoleto com o brinquedo lançado neste Natal. No imaginário infantil, no entanto, cowboys, “peles vermelhas”, vilões do espaço e patrulheiros interestelares faziam sentido na mesma brincadeira, normalmente inspirada pelas matinés de cinema e, depois, pelos programas de TV. O imaginário que serve de base a Toy Story, portanto, desde o início da trilogia, é aquele que surge com a “cultura de massa” (MORIN, 1997).

A “cultura de massa”, termo hoje pouco usado, pode ter seu nascimento localizado no meio do século XX. Entendo que seja atravessada por três novas lógicas: a lógica de mercado (novos modos de produção e consumo); a lógica do espetáculo (que potencializa e deflagra o surgimento de uma cultura do visível, uma cultura da preponderância das imagens); e a lógica midiática (que seria uma articulação das duas primeiras lógicas, ganhando contornos específicos a partir de um avanço tecnológico que difunde a televisão como máquina popular) (PENKALA, 2011). O boom de consumo no pós-guerra, a invenção da televisão e, depois, do vídeo, e as transformações na economia e na comunicação marcam esse momento como o princípio da globalização (CANCLINI, 2007) assim como desenham o berço do que hoje se chama de pós-modernidade. E como todas essas mudanças tiveram seus ápices a partir dos EUA, é natural que a cultura norte-americana esteja no eixo dessas transformações e predomine dentro da atualmente já transfigurada globalização.

Dada essa primeira contextualização histórica, podemos entender em que circunstâncias o imaginário em Toy Story é construído como também enxergar para quem se dirige. Se a trilogia da Pixar é tão simbolicamente bem inserida em culturas fora dos EUA, é porque houve um movimento em que a lógica de mercado, a cultura visual e a cultura popular passaram a ser difundidas de dentro desse eixo simbólico e profundamente marcado pela midiatização para todo o Ocidente e, em certo nível, também para o Oriente.

O pai de Buzz Lightyear

Nos extras do DVD especial de 10 anos de lançamento de Toy Story, várias entrevistas falam do “Legado” deixado pelo primeiro filme. Logo de início fica clara a compreensão de que não se tratava de um filme para crianças no sentido que até então se concebia como público infantil. É evidente que qualquer criança pode assistir a Toy Story, mas todas as camadas de significação (e isso se repete em todos os filmes da Pixar) só poderão ser “aproveitadas” por outro público – o qual não está definido, e isso é inusitado na produção audiovisual de animação – por idade. A própria complexidade dos (muitos) protagonistas é um divisor de águas para o gênero, que não raro infantiliza e achata seus personagens, assim como o faz com a narrativa. Toy Story não é um conto de fadas, não é um musical e seus personagens são adultos resolvendo problemas de adultos. Essa nova perspectiva na animação reflete o perfil das equipes de criação desses estúdios, formadas por aqueles que vivenciam a cultura popular e visual que serve de referência e repertório para esses filmes.

No DVD, Brad Bird (diretor de Os incríveis – The incredibles, 2004) comenta que era uma ideia muito hábil a de que esses “objetos comerciais” tivessem um investimento e uma conexão emocional conosco. Além do que é evidente em Toy Story a respeito de contar uma história do ponto de vista de brinquedos a serviço de uma criança, o que a Pixar começa a desenhar aqui é a relação emocional que gerações inteiras tiveram com seus brinquedos. Não apenas provocando empatia daqueles que vão certamente lembrar de como era quando eram apegados aos seus bonecos e jogos, mas inserindo o filme (e mais tarde a trilogia) em um momento histórico bastante peculiar. O que a Pixar faz é abrir o compartimento da memória de uma ou duas gerações que reconhecem não aqueles brinquedos, mas toda a conexão pessoal que possuíam com seus próprios brinquedos. Vão compreender melhor a trilogia Toy Story aqueles que, ao se depararem com um boneco, um jogo, um acessório no filme, vão lembrar: “eu já tive um desses!”. É a esses “colecionadores” pós-modernos que o filme fala, os adultos que ainda guardam, de alguma forma, seus brinquedos. A cultura popular pós-moderna é formada por esses objetos de consumo largamente comercializados e amplamente publicizados. E, para aqueles de nós que não tiveram acesso a certos brinquedos, o próprio repertório do cinema dos anos 70 e 80 torna comuns algumas referências. Alguns dos brinquedos que aparecem em E.T. formam parte de nossas memórias de infância não por termos brincado com eles, mas por termos visto esses objetos no cinema, já tão emocionalmente vinculados a uma experiência de infância.

O vínculo com a infância através do vínculo com os objetos de infância é uma questão que atravessa a trilogia e tem seu ápice no terceiro Toy Story, quando Andy, o menino, já é um adulto e vai para a faculdade, mas encontra dificuldade em se desfazer de Woody e Buzz. Essa relação de apego é emblemática para as gerações de norte-americanos a partir dos baby-boomers[11], nascidos dentro de uma cultura que tornava o consumo em ato simbólico e os objetos atrelados cada vez mais a estilos de vida ou a narrativas. Ou os brinquedos são guardados apenas na memória, ou, o que é cada vez mais comum, tornam-se itens de colecionador, a despeito de seu valor de mercado ou de troca. Esses colecionadores são gerações que vão deixando aos poucos de forjar carrinhos com pedaços de madeira e tampinhas de refrigerante para cobiçar os bonecos dos heróis da TV e seus acessórios, os colecionáveis que vinham de brinde com algum tipo de produto (como os chicletes), os conjuntos que tornavam cada brinquedo em uma peça de um quebra-cabeça que nunca se completava.

Colecionar é fazer um inventário da memória dos objetos ressignificados, segundo Virgínia Ribeiro (2008). Há, no ato colecionista, um deslocamento dos objetos do mundo, que são realocados segundo princípios muitos particulares e de natureza afetiva. Os objetos são “[…] depositários de uma afetividade que simboliza o tempo passado de forma inexorável e, por isso, totalmente idealizado […]” (RIBEIRO, 2008, p. 800). O colecionador é, ao mesmo tempo, um indivíduo e um elo no meio de um coletivo, tal qual o espectador de cinema. Com efeito, o espectador que a Pixar atinge é um espectador colecionista: um colecionador de memórias, de imagens-objeto. E se Toy Story é universal e pedagógico ao contar a história de amadurecimento de um menino que tem que deixar para trás seus brinquedos (e a infância), tende mais a legitimar o apego quando apela às memórias mais afetivas do espectador. Mesmo no Brasil, onde não dispúnhamos exatamente dos mesmos brinquedos de Andy, a empatia e o vínculo do espectador adulto são garantidos logo na primeira cena, quando vemos o Sr. Cabeça de Batata[12] como personagem de uma aventura inventada pelo menino.

Mas se os brinquedos são objetos em que Andy, os criadores da trilogia e os espectadores depositam memórias, o mesmo é feito também com as imagens. Toda uma memória do cinema é revolvida nessa trilogia (algo que a Pixar repete em seus outros filmes). A cena em que o Sr. Cabeça de Batata aparece, na primeira sequência do primeiro Toy Story, começa com um movimento panorâmico que mostra uma vila do velho oeste, com “saloon” e tudo, improvisada com caixas de papelão e caneta. Imagens como a desse brinquedo, inserido numa “maquete do Velho Oeste”, são objetos que narram uma história para além do que a narrativa aparentemente mostra. Parte dessa história pode ser o próprio vínculo nostálgico que o espectador tem com aquele (tipo de) brinquedo ou com os westerns, por exemplo. Como a trilogia vai mostrar, com cada vez mais requinte visual, esta é uma das diversas referências aos faroestes; por um lado, elemento importante da cultura visual do século XX e, por outro, parte de uma imageria cinematográfica apropriada pela cultura popular.

Somos colecionadores de memórias, e o aspecto material dessas memórias não são sempre exatamente objetos de plástico, madeira, tecido ou metal, mas imagens. Vivemos a experiência pós-moderna como colecionadores de imagens, inventariando e organizando cuidadosamente aquelas que têm poder simbólico maior. Não servem, essas imagens, a quem não partilha dos mesmos referenciais que partilhamos. Enquanto a cultura popular e a cultura visual nos servem de contexto histórico, essas imagens-objetos são bens com valor de troca, mas um valor de troca que se dá no âmbito da linguagem. Os elementos desse inventário são códigos que, como numa reunião de colecionadores, predominam no diálogo do grupo, estabelecem as identidades individuais e o valor dos indivíduos dentro desse grupo. Como a cultura visual e a cultura popular dependem de experiências coletivas, a “posse” desses “itens de colecionador” é também coletiva, assim como os códigos de um idioma.

A produção audiovisual hoje é toda marcada por um traço da pós-modernidade que nos propõe uma reflexão historicista sobre de onde estão vindo esses roteiristas, diretores, produtores e estúdios de animação. E digo historicista mesmo a despeito de Jameson (2006), quando este fala de uma nostalgia pós-moderna pela perda do senso de história. Realizadores como Quentin Tarantino e J. J. Abrams confirmam essa lógica de uma nostalgia que se estrutura não na perda da historicidade, mas na tentativa de novas relações de sociabilidade e construção e manutenção de uma memória visual coletiva. Tarantino, em sua tendência para a citação, dirige filmes homenageando imagens, cenas e sequências antológicas daquilo que, como cinéfilo, consumia como informação visual. Seus roteiros são carregados de referências apropriadas do repertório que adquiria dentro e fora da videolocadora em que trabalhou. Se a formação de Spielberg se deu pelo prazer cinéfilo de infância e depois nos bancos escolares, tendo estudado cinema, seu fã Abrams, da geração posterior, usou do repertório do ídolo para ir montando o seu próprio. Influenciado pelo legado icônico de Spielberg, Abrams cresceu formando seu estilo a partir do autor de E.T. a ponto de saber “imitá-lo” em Super 8. O que Abrams faz não é cópia, não é plágio. Não nas circunstâncias da cultura popular e visual de nosso tempo. Ao construir um filme em homenagem à linguagem de Spielberg, usa o mesmo meio deste e os mesmos códigos, reunindo a iconografia de um cinema típico dos anos 80 em um espetáculo de releitura que tem um objetivo: falar aos fãs do cinema de Spielberg.

O que se pode dizer da equipe de criação da Pixar, em especial aqueles que realizaram os filmes da trilogia Toy Story, é que representam também essa geração que cresceu vendo TV, alugando filmes em VHS e consumindo as imagens do cinema que permeiam nossa cultura visual desde pelo menos os anos 70. Uma geração de realizadores que ilustra a cultura popular da pós-modernidade e demonstra uma lógica que também é dessa cultura popular. Quando uma criança assiste ao diálogo da luta no fosso do elevador entre Zurg e Buzz Lightyear, em Toy Story 2, muito provavelmente não terá a dimensão do que a cena significa. Buzz diz para Zurg: “Nunca vou desistir! Você matou meu pai”, ao que o vilão de capa longa, máscara e voz metálica responde: “Não, Buzz. Eu sou seu pai” e o astronauta, em queda, replica: “Nããããããõooooo”. Somente aqueles que conhecem a já clássica cena de O império contra-ataca (Star Wars: Episode V – The Empire Strikes Back, Irvin Kershner, 1980) compreendem a dimensão épica do diálogo entre Buzz e Zorg. O objetivo da referência não é, no entanto, a compreensão do que a cena significaria, mas o diálogo que se estabelece entre o filme (seus realizadores) e o público. Evidentemente, todos os filmes precisam “falar” com seu público. O que está em jogo aqui, e que nos possibilita compreender a dimensão social da produção audiovisual na pós-modernidade, é a sociabilidade estabelecida entre a Pixar e seu público – e do público para com seus pares. Mais do que uma trilogia nostálgica, Toy Story é parte de um discurso que organiza a memória da cultura visual e, na forma de uma coleção de imagens e outras referências, as troca com os espectadores como uma conversa em código. Num idioma que somente um grupo compreende, a linguagem da Pixar em Toy Story é construída por imagens-objeto que fazem parte da engrenagem de uma memória coletiva. Pode-se dizer que o cinema pós-moderno é uma coleção de imagens paradigmáticas, iconográficas, de grande recorrência no próprio cinema e na TV. A cultura visual reforça laços entre aqueles que utilizam a memória potencializada por essa mesma cultura como sociabilidade, na manutenção de um colecionismo de onde códigos, linguagens, conversações e memorabilias vão surgindo. Essa cultura serve de ambiente virtual (a coleção de referências, por exemplo) para novas formas de interação, vínculo e diálogo.

Considerações finais: o brinde do Kinder Ovo

Uma das características marcantes dos filmes da Pixar, mais evidente na trilogia Toy Story, é a autorreferência. Essa prática ficou conhecida, com a tecnologia do DVD, como easter eggs, ou “ovos de Páscoa”, que são “brindes” escondidos no filme que, com um toque de uma tecla do controle remoto, levavam a um “bônus” (uma “faixa” extra que podia ser, por exemplo, um clipe musical). Os easter eggs da Pixar nem sempre dizem respeito ao dispositivo acionado por controle remoto, mas são informações escondidas nos filmes que buscam o reconhecimento de um fã das animações do estúdio ou um conhecedor do próprio contexto de produção das animações. Essas informações são códigos que, ao longo dos anos, divertem os espectadores e geram uma interação que é externa ao filme. Como os brindes dentro dos ovos de chocolate Kinder, nem sempre essas informações são relevantes ou de grande importância na narrativa. Elas servem apenas como objetos de coleção. Seu objetivo não é exatamente narrativo dentro de cada filme. O que os realizadores pretendem é estabelecer uma relação que se constrói a partir da formação de um público e de um repertório e, assim, um diálogo. Esse repertório e esse público, e o idioma que circula entre eles, só pode ser estabelecido a partir de uma cultura específica, que atravessa todos os filmes do estúdio como se fossem um mesmo universo. O fã da Pixar sabe que “existe” uma empresa chamada Buy’n’Large, a qual criou o robô catador de detritos Wall-E (Andrew Stanton, 2008) e fabrica as pilhas de Buzz. O carro de entrega da Pizza Planet, restaurante fictício, aparece em todos os filmes do estúdio, mesmo numa sugestão em Valente (Brave, Mark Andrews e Brenda Chapman, 2012), cuja história acontece no período medieval.

As referências mais interessantes, no entanto, ficam por conta de códigos tão internos que só funcionam a partir da cultura criada pela Pixar em torno de seus filmes. Se as referências à Apple (empresa co-fundada por Steve Jobs, diretor da Pixar até esta ser adquirida pela Disney) são compreendidas por uma boa parcela dos espectadores dessas animações, outros “brindes de Kinder Ovo” não são tão óbvios e nem tão abertos assim. O código “A113”, por exemplo, que aparece em praticamente todos os filmes do estúdio, é uma referência à sala de aula em que alguns dos criadores estudaram, na CalArts (California Institute of the Arts). Vemos o “A113” em placas de carro (Toy Story), números de quartos (Up, Altas aventuras – Up, Pete Docter, 2009) e modelos de câmeras (Procurando Nemo – Finding Nemo, Andrew Stanton, 2003). A referência, de início quase hermética, é uma provocação saudável que estabelece um vínculo entre a Pixar e seu público, e também entre os fãs dessas animações, esses colecionadores que, além de trocar referências como quem troca figurinhas de um álbum de auto-colantes, possuem códigos fechados a um circuito que os identifica como realmente fãs. Ao estabelecer uma linguagem, através de elementos como os easter eggs autorreferentes, a Pixar consegue transformar o espaço da experiência entre realizador, produto audiovisual e público como o espaço dos brinquedos na trilogia Toy Story: uma sociabilidade onde os códigos dessa coleção interagem tal qual cowboys e astronautas. E fazem muito sentido.

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[1] Este trabalho faz parte das pesquisas desenvolvidas nos projetos Designer como autor e Cultura e Imaginário a partir das práticas do audiovisual e do design, do Grupo de Pesquisa em Linguagens, Metodologias e Teorias em Design da Universidade Federal de Pelotas.

[2] Professora e pesquisadora dos cursos de Design e Cinema da Universidade Federal de Pelotas. Doutora em Comunicação e Informação pelo PPGCOM/UFRGS, mestre em Ciências da Comunicação pelo PPGCCOM/UNISINOS e bacharel em jornalismo pela ECOS/UCPel. penkala@gmail.com

[3] <http://www.youtube.com/watch?v=NV8k4tNCB6k>

[4] Um brinquedo, popularizado no Brasil muitos anos depois, que consistia em um trem e seus vagões (movido à pilha) e os trilhos, montáveis conforme a imaginação e as conexões de plástico permitissem.

[5] É pertinente que se ressalte que a câmera 8mm foi lançada pela Kodak em 1932, nos EUA, sendo conhecida como versão standard. A Super 8 foi desenvolvida somente nos anos 60, como um aperfeiçoamento da 8mm standard, sendo lançada em 1965.

[6] Especialmente à Contatos imediatos do terceiro grau (Close encounters of the third kind, Steven Spielber, 1977).

[7] Toy Story, de 1995 e Toy Story 2, de 1999, ambos dirigidos por John Lasseter; e Toy Story 3, de 2010, dirigido por Lee Unkrich.

[8] Imageria se refere ao conjunto de imagens agrupadas por afinidade conceitual e figurativa, relativas a e/ou representativas de alguma coisa ou evento ou a alguém. Uma imageria é formada da soma das imagens reais sobre algo, alguém ou algum evento com o imaginário relativo a essa dada coisa, evento ou indivíduo. A imageria do século XX, por exemplo, é formada pelo conjunto de imagens que representam esse século e que relacionam o século real ao imaginário que se tem dele. (Cf. PENKALA, 2011)

[9] O termo alien, em inglês, é usado tanto para “alienígena” (de outro planeta) quanto para “estrangeiro” nos Estados Unidos.

[10] Sobre isso, ver GOLDENBERG, Ricardo Davi. Política e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. p. 15.

[11] São chamados assim os nascidos no “baby boom” (explosão de natalidade) do pós-guerra, entre 1946 e o início dos anos 50, nos EUA.

[12] Mr. Potato Head, um modelo de plástico que lembra uma batata grande, com peças montáveis, que permitia às crianças o encaixe de bocas diferentes com expressões variadas, chapéus e etc.

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