The Page Like a Simbolic Space[1]
Jônathas Araujo[2]
Resumo:
Este trabalho pretende introduzir a investigação do espaço da página no horizonte das paixões e afetos que conduzem a experiência de leitura nas histórias em quadrinhos. Para tanto partimos da análise de algumas páginas extraídas das tradições japonesa, americana e franco-belga, para desenhar um método que alcance os diferentes tratamentos das paixões narrativas sobre a página. Nese texto destacaremos principalmente a composição das vinhetas como um dos motores dessa dinâmica simbólica.
Palavras-chave: narrativa; paixão; história em quadrinhos; página; mise en page.
Abstract:
This text intends to introduce the investigation about the use of the space of the page and its relationship with the passions and affections that lead the reading experience on comics. We start with some analysis of pages and themes of Japanese, American and French-Belgian traditions to start drawing a method that reach the different ways of handling narrative passions on the page. In this text we will highlight the internal composition of frames as one of the vehicles of this symbolic dynamic.
Keywords: narrative; passion; comics; page; mise en page.
Esta comunicação pretende propor questões que apontem para uma investigação sobre a experiência da leitura dos quadrinhos e que considere algumas das dimensões plásticas propostas por eles. Longe de esgotar ou propor uma fenomenologia própria dos quadrinhos, trata-se mais de buscar em alguns itens da literatura sobre este tema, algumas pistas para tanto.
Da montagem à mise en page
Somente a título de provocação, comecemos esta apresentação por uma comparação entre quadrinhos e cinema. Comparações do tipo são muito comuns quando novas formas expressivas são tomadas como objeto de análise. Da comparação entre as artes dramáticas e as artes poéticas foram propostos conceitos como diegese e mimese, do teatro moderno com o cinema verificamos o advento da montagem contra a concepção de mise en scène. Da mesma forma, tem sido lugar comum comparar as histórias em quadrinhos com o cinema. Porém, devemos ter em mente que os quadrinhos não são apenas um forma mista de gêneros expressivos (artes plásticas, literatura, cinema, etc.). Uma comparação só é proveitosa quando coloca, sob algum aspecto, o espectador (no caso o leitor) em horizonte.
A nascente semiologia do cinema se debruçava sobre a possibilidade das imagens cinematográficas serem narrativas. Lembremos que Barthes (1982) havia relegado a imagem a uma insignificância própria nos ensaios A Retórica da imagem e A Imagem Fotográfica. A imagem só seria significativa se sobre a mesma pousasse um enunciado (este necessariamente não precisa ser uma legenda, mas algo próximo à descrição das ações ou dos elementos carregados de simbologia). Barthes observa também que a imagem não teria seu enunciado regulado, seria por natureza polissêmica. No cinema, Eisenstein (2002) foi um dos primeiros autores a colocar em discussão a montagem como processo de significação. Metz (1972) caminha em direção semelhante ao desenvolver a sintagmática do filme narrativo. Porém, das diversas funções de sentido que Eisenstein atribui ao procedimento da montagem, a que mais permeou o início das teorias sobre o cinema e mesmo o senso comum foi a produção do terceiro sentido. Para Eisenstein a montagem é o modo pelo qual o espectador, através de ao menos duas imagens justapostas, pode extrapolar a sua pura denotação e produzir uma significação tendo em vista um programa narrativo: o desenvolvimento de ações, ou mesmo conceitos que se encadeiam no discurso fílmico.
É lugar comum pensar os quadrinhos sobre a mesma ótica; como exemplo temos Scott McCloud (1995). Se os quadrinhos são propriamente narrativos o seriam pela sequencialidade das vinhetas, assim como o cinema o é pelos planos cinematográficos. Há quem até valorize aquilo que não é visto, e estabeleça a sarjeta como o lugar onde de fato ocorre a narrativa dos quadrinhos. Se metaforicamente este lugar é identificado como a sarjeta, que é um espaço em branco, a competência de preencher esse espaço é uma competência inferencial: trata-se fundamentalmente de preencher as elipses. McCloud já admitia que os sentidos do mundo seriam “fragmentados e incompletos” (1995: 62) e por isso é necessário uma habilidade de concluir o sentido.
Ainda que com certos exageros e deslizes, tais propostas dão conta de um aspecto do que é ler quadrinhos, aquele que é atribuído à concepção de montagem como o procedimento que permite a conclusão, o terceiro sentido. Aqui a narrativa é compreendida fundamentalmente por um programa cognitivo. Porém pensar exclusivamente por esse viés trai a manifestação plástica e gráfica dos quadrinhos.
De certo, na montagem fílmica, há antes uma elaborada concepção das cenas, dos cortes, as ações que serão representadas ou não, etc. Antes da montagem é feita a tomada de todos os planos, assim como a sua composição interna. A montagem, no cinema, não precede o ordenamento e corte de cada tomada. Para a construção do terceiro sentido a ordem é mais importante do que o ponto de corte e a duração de cada plano. Porém, Eisenstein também atribuía à montagem a produção de efeitos emocionais e rítmicos; mas, ao que parece, foram, se não totalmente esquecidos pela semiologia inicial do cinema, desconsiderados como questão de pesquisa. Parece que os estudos dos quadrinhos sofrem do mesmo sintoma.
As histórias em quadrinhos também realizam uma espécie de decoupage do que será representado, as ações e eventos. No entanto não podemos admitir que a experiência de leitura de narrativas advenha apenas por ordenar tais unidades no plano do discurso. Até mesmo a noção de decoupage para os quadrinhos é problemática. Nos quadrinhos, a decoupagem não é um procedimento anterior de tomadas de cenas e etc., como é no cinema. Ao menos assim propõe Groensteen (1999) ao recusar a noção de montagem para os quadrinhos. Um autor de quadrinhos não decuparia a cena, definiria a composição, o enquadramento e etc. e em um segundo momento diagramaria a página. Dando continuidade a algumas ideias de Benoît Peeters (2010)[3] sobre a página, Groensteen sugere que, ainda que o autor tenha uma vaga ideia de cada cena, das composições das vinhetas, etc., estas só assumiriam uma forma final quando dispostas e organizadas sobre o espaço da página. A ordenação das cenas dos quadrinhos não está apenas submetida à orientação do enunciado que advém pela justaposição de imagens, o terceiro sentido proposto. O autor propõe que há um sentido espacial na composição dos quadrinhos, que é estabelecido também por uma justaposição ou solidariedade icônica que envolve todos os elementos da página e não só as vinhetas adjacentes. Tal solidariedade tanto propõe um programa de efeitos propriamente narrativos – quando construímos uma sequência de ações a partir da nossa competência em elaborar o terceiro sentido ou a conclusão – quanto programa, no mínimo, uma disposição de exploração espacial, uma vetorialização de leitura. Assim, a produção de uma página em quadrinhos submete a própria decoupage e composição da vinheta a esse sentido espacial, como se fosse uma tensão entre o trabalho da decoupagem e da diagramação. A mise en page deve ser entendida como uma espécie de tensão entre o programa de contar uma história e contar de forma espacial, uma dialógica entre a decoupage e mise en page.
A leitura como empenho espacial
Devemos ter em mente que essa distinção entre termos que se referem a diversos procedimentos de produção propõe a própria pragmática da leitura. Se o cinema, inicialmente foi considerado a arte da montagem, era por seus espectadores reconhecerem o princípio pela qual a sua experiência espectatorial fundamentalmente se apoiava. Sobre dialógica da mise en page, veremos que este é o horizonte a qual está submetido o leitor de quadrinho, uma exploração do sentido do espaço em tensão com a construção da história contada.
Sobre o programa da narrativa propriamente dita a tradição estruturalista já procedeu uma exaustiva descrição e desenvolveu diversos conceitos sobre a atividade da leitura em seu trabalho cognitivo. São escritos que muito contribuiriam para os estudos das narrativas gráficas e pouco são retomados. Preconceito à parte, tais estudos pouco poderiam dizer sobre as estratégias de enunciação própria aos quadrinhos, e que estão intimamente ligados à sua dimensão plástica/gráfica, seu sentido espacial.
Fresnault-Derruele (1976) já avançava nesse propósito ao propor duas disposições de leitura espacial nas histórias em quadrinhos. Uma linear, na qual a relação entre quadros se estabelece de forma única: há somente um programa de vetor de leitura, de exploração espacial. Outra tabular, onde a exploração espacial não é unívoca, na qual diversos vetores concorrem na economia espacial da página.
Devemos ter em mente que está disposição de vetor não se dá apenas pelo hábito de leitura, como poderíamos supor por uma página que apresenta uma disposição mais regular como a tradição franco-belga, como é o caso de Hergé (ver figura 1). Groensteen tem o cuidado de descrever um sistema espaço-tópico próprio à economia visual das história em quadrinhos e sugere algumas funções dos elementos desse sistema, entre essas funções está ideia do que chamamos aqui de sentido vetorial de exploração do espaço.
No caso de Hergé até mesmo o vetor da composição interna das vinhetas, que projeta o movimento dos agentes representados preferencialmente para a esquerda, corrobora a vetorialização total da página. Devemos ter em vista que está composição interna das vinhetas favorece a compreensão da ação desenvolvida. Caso a representação variasse em um jogo de plano e contra-plano o próprio sentido comum do perseguir (uma ação que se estende na única direção de um objeto visado) entraria em choque com o representado. Perseguir é, sobretudo, estabelecer um objeto e uma direção, Dessa forma perseguir se estabelece por um valor obsessivo. Ainda que uma inversão do plano preservasse o objeto, a ênfase da única direção seria comprometida; seria comprometido o próprio valor obsessivo da perseguição. Somente no oitavo quadro a direção é interrompida assim como a perseguição.
Mesma estratégia Hergé usa em Tintin in America (Figura 2). A composição das vinhetas de perseguição toma a mesma direção global na página. E aqui também temos a quebra como no exemplo anterior, também motivado por um acidente. Nesse caso muito mais explícita. A ruptura que o sexto quadro propõe não é só sobre a perseguição, mas sobre a disposição de leitura com a qual o leitor percorria o espaço da página. Não se trata apenas da interrupção da perseguição por um acidente, mas da interrupção de um sentido obsessivo que algumas composições de páginas podem tomar. Podemos dizer que, para Hergé, romper com caráter obsessivo é um impacto que equivale ao choque de um acidente. Um objeto só se choca contra um obstáculo se for intensamente projetado contra o mesmo. Não se trata apenas de uma analogia simbólica; até mesmo se desconsiderarmos o caráter figurativo das imagens, retendo apenas o seu sentido vetorial, a exploração do espaço da página conduzida por uma espécie de obsessão é interrompida bruscamente; este impacto se faz presente na economia sensível da página.
Não pretendemos esgotar nesta comunicação o sistema espaço-tópico, basta aqui reter que antes mesmo da possível função figurativa dos elementos do espaço-tópico eles possuem uma função plástica. Há pouco vimos como a organização espacial de uma leitura linear contribui para que a própria vivência espacial do leitor sobre a página seja tomada simbolicamente[4].
Em Todd McFarlane (Figura 3) vemos que o vetor de leitura não é tão explícito e unívoco quanto em Hergé. O primeiro quadro já conclama um vetor em descendente, atípico do que seria ideal para construção de um fluxo das histórias em quadrinhos. Este sentido é proposto por uma série de significantes que possuiriam o mesmo valor de descendência[5]: o formato verticalizado do quadro; a negação da horizontalizada do topo da página pela quebra da regularidade entre os quadros do que seria uma possível tira; o ponto de vista da composição da cena (em uma tomada aérea); e os próprios balões dessa vinheta levam o percurso para baixo. Continuando, teríamos valores muito parecidos a partir das duas vinhetas da parte direita da página que são dispostas verticalmente. Temos dois vetores que, em princípio concorrem paralelamente, sem nenhuma, ou pouca relação. No último quadro, uma banda que toma toda a horizontalidade inferior da página parece devolver o sentido habitual da exploração do espaço, embora a composição da vinheta com a sugestão de profundidade em perspectiva, que só se realiza como percurso através do Homem-Aranha para o fundo de cena, implemente um conjunto de forçar opostas.
Não pretendemos dizer com isso que a leitura da página fique confusa ou prejudicada. Queremos ressaltar que a página é construída por um conjunto de forças vetoriais em conflito a partir dos elementos do seu sistema espaço-tópico.
Haveria casos em que a compreensão da narrativa exigiria um maior esforço nesse sentido (Figura 4). O leitor seria convidado a explorar as possibilidades vetoriais para poder continuar tecer a trama. Ware, em algumas páginas, propõe uma espécie de puzzle para além do próprio jogo de tecer a trama. Nesse caso o jogo de coerência se dá não só entre enunciados das funções narrativas propostas por cada vinheta; a coerência se dá entre um sentido sensório da exploração do espaço e a compreensão dá trama. Aparentemente Ware usa uma gama de recursos muito menos variada que Todd Mcfarlane, mas construindo um efeito muito mais ambíguo.
O espaço como sentido e a página como espaço-utópico
Mas uma descrição que apenas traça os vetores de leitura não parece ultrapassar o mero formalismo. Nesse ponto, a proposta da leitura linear/tabular e os elementos do sistema espaço tópico parecem insuficientes para avançar na questão de como tal sentido é apropriado para a produção de efeitos narrativos. Em Hergé, ainda que intuitivamente, tivemos que propor valores dessa busca visual sobre a página que não estão previstos apenas por admitir um vetor de leitura.
Se pretendemos considerar a exploração do espaço como um sentido, devemos formular a questão sobre a compreensão própria aos processos de significação. Mas, nesse caso não devemos buscar os objetos cujos signos representam. Greimas, entre outras tradições semióticas, já formulava que a ocorrência do sentido deve-se mais a um percurso do que a uma identidade entre termos. Zilberberg (2011) formulou tal questão sobre o termo da aspectualidade quando pensado sobre as dimensões sensíveis. A direção que toma esse percurso é o que configuraria, para Zilberbeg, os estilos tensivos ascendente ou descendente. O importante, por enquanto, é assumir que só há percurso por haver uma relação entre dois termos sintáticos ou semânticos. Assim, na descendência se vai do assomo (situação) à resolução, e na ascendência da resolução ao assomo. Destarte, a ênfase recai justamente sobre o percurso, e logo nas modulações e acidentes que este pode conter; mas se faz imprescindível admitir que há uma estrutura fundamental que move o sentido ao seu propósito, que pode ser concebida como um atitude narrativa sobre o sentido:
Parte-se de duas concepções complementares de narratividade: narratividade como transformação de estados, de situações, operada pelo fazer transformador de um sujeito, que age sobre o mundo em busca de certos valores investidos em objetos; narratividade como sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contratos entre um destinador e um destinatário, de que decorrem a comunicação e os conflitos entre sujeito e a circulação de objetos-valor, em outros termos, as estruturas narrativas simulam a história da busca de valores, da procura de sentido. (BARROS, 2002: 28)
Deste modo, podemos admitir que o espaço da página é vivido narrativamente, sobre tal fazer é possível investir a relação entre sujeito e objeto (atuantes elementares para um propósito narrativo); e pela modulação do percurso, que de fato efetiva uma relação entre ambos, é que o objeto pode ser dotado de valor.
Creio que, devido ao excessivo caráter formal do sistema espaço-tópico, Groensteen não ultrapasse uma minuciosa descrição; embora o autor não tenha dedicado esforços a uma verdadeira análise. Ainda que descreva relações fundamentalmente sintáticas que os elementos do sistema espaço-tópico estabelecem, não faz o mesmo em relação ao plano do conteúdo. Dessa forma, uma análise não ultrapassaria ou a constatação de vetores de leitura (como propõem Fresnault-Derruelle) ou uma análise que muitos acusariam de impressionista.
Se no primeiro contato o sentido evidente é uma vetorialização do espaço, devemos estabelecer uma economia geral do espaço. Assim é preciso iniciar pela página, propor a página como uma estrutura fundamental de forças que põem em direção o percurso do fazer sentido. Groensteen (1999; 2011) e Petters (2002) já partem da página como um espaço-tópico, um lugar já ocupado pelas unidades próprias à linguagem dos quadrinhos, e chegam a propor alguns modos de mise en page por uma relação entre dois critérios: o aspecto plástico da página (regular ou irregular) e a função retórica sobre a narrativa[6].
Gostaríamos de propor um recuo; que recuássemos à página, ainda vazia, como um espaço de valor e que propõem um percurso de sentido. Seria até banal dizer que a página privilegia a exploração em diagonal, da esquerda para direito e de cima para baixo. Porém essa disposição é menos imanente à página do que a nossa própria relação com o espaço. Por questões que caberiam à psicologia discutir (da qual podemos fazer um uso), construímos nossa espacialidade por exploração ativa das possibilidades corporais, e nessa exploração segmentamos e valoramos diferentes regiões do espaço. Assim, antes da página ser um espaço vazio, propomos a página como um espaço-utópico (apenas por oposição ao espaço-tópico de Groensteen). Na página há uma potência de sentido que é da nossa própria competência em espacializar a nossa condição. Assim, o espaço que há na página não é algo imediatamente dado; a página é um espaço por vivenciarmos, a partir de seus limites, uma espacialidade. A página como espaço-utópico participa na mesma medida dessa economia de forças vetorias.
Retomemos a página de McFarlane (figura 3). As forças vetoriais da composição e dos quadros não criam uma relação apenas entre si, mas também com os valores anteriores, o que chamamos aqui de espaço-utópico. Vemos que as forças que seriam próprias ao sistema espaço-tópico, as unidades da linguagem gráfica dos quadrinhos, tendem a um percurso para baixo e da direita para esquerda. Isso parece se opor à disposição habitual da exploração da página, ao menos na sua horizontalidade. O que podemos tirar daí enquanto sentido?
Primeiro, podemos pensar na página dois lugares privilegiados desse percurso de sentido: o canto superior esquerdo e o canto inferior direito. Um lugar de exposição do cisma sujeito-objeto (ou assomo) e um lugar de resolução, ainda que momentânea. A página de McFarlane aparentemente se opõe ao vetor habitual da leitura, e logo à resolução. Há uma retenção da resolução, mas que não se opõem ao percurso assomo-resolução por completo, as forças vetoriais propostas pela composição da vinheta, formato dos quadros, etc. não permitem que seja coerente um vetor de baixo para cima. Por isso é aceitável falar apenas em uma retenção e não em um impedimento.
Desde o início da leitura de uma página já há um expectativa sensória (que ainda não é uma hipótese sobre as resoluções da ação) de estabelecer a junção sujeito-objeto, porém esse ponto é retido, como faz McFarlane. Podemos supor uma intensificação dessa expectativa. Assim o quadro emocional que venha se estabelecer tenderá a ter uma carga mais intensa. Não é a toa que o fim da página estabelece um nó narrativo, ou como propõe Baroni (2006), uma tensão narrativa. O fim da página propõe um quadro inferencial (e aqui voltamos ao trabalho que o leitor faz sobre as ações) que não é muito óbvio ou claro como é a transição entre o quadro no qual Tintim colide com sua moto no automóvel e o quadro seguinte no qual ele cai. Para Baroni são nesses pontos de tensão narrativa, quando a ação aponta vários quadros de interpretação – que por vezes é até impossível elencá-los – que o leitor padece e é tomado por uma paixão como a reação mais plausível. Baroni propõe três afetos básicos, surpresa, curiosidade e suspense. É a partir de tais condições emocionais que o leitor estabelecerá as hipóteses e os horizontes de sua interpretação.
A economia de forças da página de McFarlane propõe como sentido a intensificação desse estado afetivo, se quisermos nomeá-lo como Baroni, a curiosidade. Ainda caberia explorar o motivo dessa economia de forças atuar como retenção precisamente no último quadro e próximo ao lugar privilegiado da resolução tensiva, e que provavelmente possui um relação com as estratégias de serialização das histórias, e até mesmo a natureza dessa intensificação. Mas por enquanto observemos que nos momentos mais dramáticos de uma história em quadrinhos, onde se localizam as tensões narrativas, haveria um jogo de forças vetoriais que modulam as disposições afetivas. No caso vimos apenas como pode haver uma intensificação, mas sobre o horizonte dessas modalidades ainda cabe uma exploração mais extensa.
A presença da página dupla
Mas para procedermos a uma proposta mais ampla da pregnância da página na leitura, devemos nos ater às condições dessa leitura. No desenvolvimento do seu sistema espaço-tópico, Groensteen (1999) legou um lugar à dupla página. Evidentemente, o leitor de quadrinhos impressos em formatos encadernados tem diante de si um conjunto de duas páginas, a princípio.
Groensteen (1999; 2011) já observava que o lugar que a vinheta pode ocupar não é neutro, principalmente se compararmos a página da esquerda em relação à página da direita. Porém o autor investe mais em uma análise alegórica do uso das páginas duplas do que sua dimensão de sentido espacial. Ora, o valor agregado a cada vinheta não é só uma atribuição da relação entre vinhetas, mas fundamentalmente da vinheta com o espaço da página, espaço este que é vivido ativamente pelo leitor e possui suas condições, como já ressaltamos, antes mesmo da disposição dos quadros, balões e etc. Assim, não só a página da esquerda é potencialmente diferente da direita, em virtude da encadernação, mas há também diferentes regiões da mesma página que poderíamos identificar com regiões próprias ao assomo ou a resolução.
Se cada página possui um estilo tensivo próprio ao seu percurso é preciso considerar as duas páginas em relação. Inicialmente podemos pensar em dois tipos de página dupla: as convencionais que contém uma considerável diferença de potencial visual (assomo-resolução) interno para cada página (esquerda superior para direita inferior) e as que podem ser tomadas como uma única página.
Cada página de uma dupla página convencional goza de uma relativa autonomia, embora seja comum entre alguns modos de composição estabelecer um sentido potencial para que ao fim da página esquerda haja um vetor para a parte superior esquerda da página direta (Figura 6), diminuindo o valor de resolução dessa região para justamente poder manter o fluxo ou a narratividade própria à espacialidade da página dupla. Ou seja, podemos pensar que nessa dupla página concorre um duplo estilo tensivo: um geral que vai do assomo à resolução e que é modulado por um percurso secundário inverso que se localiza entre as páginas, e o estilo tensivo de cada página, fundamental para fundar o percurso secundário do estilo geral.
Para esse modelo geral teríamos principalmente quatro zonas que poderíamos avaliar a partir de uma acentuação hierárquica da seguinte forma: inferior direito da página direita > superior esquerdo da página esquerda > inferior esquerdo da página esquerda ≅ superior direito da página direita. Embora o percurso geral proponha explorar a prancha por inteiro, da esquerda superior da página esquerda para direita inferior da página direita, há duas regiões que se interpõem nesse percurso modulando-o. Essa modulação é possível, pois cada página é percebida como um espaço que goza de certa autonomia, realizando um próprio vetor que estabelece a hierarquia superior esquerdo > inferior direito. Mas vemos nessa prancha de Morte, O Grande Momento da Vida, desenhada por Chris Bachalo e colorizada por Mark Buckingham, um programa que vai da região inferior da página esquerda à região superior da página direita para que se possa retomar a situação e o fluxo narrativo.
Porém há páginas duplas que não apresentariam propriamente os mesmos valores para as mesmas regiões; como se não fossem compostas sendo páginas duplas, mas por vezes como uma página. No exemplo da página de Vagabond (Figura 7) é preciso proceder a uma inversão do percurso previsto pela página dada à própria atividade espacial da cultura oriental. Mas apesar da diferença de direção a estrutura se mantém a mesma; ainda podemos estabelecer regiões próprias ao assomo e a resolução. Nessa prancha as possibilidades vetoriais do espaço-tópico contribuem para a apreensão dessas duas páginas como um espaço único. Nesse caso os elementos do espaço-tópico apagam a possibilidade do programa de sentido que expomos anteriormente, os espaços intermediários (o inferior direito da página esquerda e o superior esquerdo da página direita); embora continuem na página não possuem intensidade suficiente para fundar um percurso tensivo. Nesta página, a composição do primeiro quadro, como o conjunto dos quadros dispostos verticalmente à esquerda (estes como as figuras responsáveis por estabelecer um vetor), só possui uma coerência por identificarmos apenas um percurso de sentido proposto pela prancha, e não mais de um como é comum na dupla página.
Apesar de propormos dois modelos de composição da prancha esses dois modelos não são suficientes para dar conta da várias ocorrências da composição das páginas e duplas de páginas. O mais importante nessas proposições iniciais de pesquisa sobre a dimensão espacial da leitura é admitir que o sistema espaço-tópico negocia com competências espaciais do leitor quando este se confronta com um espaço delimitado e recortado: a página, a moldura, a prancha, etc. Porém, podem concorrer na mesma página programas opostos, uma economia de forças vetoriais complexa.
Podemos perceber tais considerações em uma outra prancha de Inoue (Figura 8). Nela, a parte superior parece possuir uma autonomia em relação à metade inferior. Notemos nesse primeiro quadro o tratamento diferente do que vimos anteriormente, dado por Hergé ao tema da perseguição. A disposição dos corpos instaura uma resistência em relação à disposição que o leitor de mangás possui, e, por se tratar do primeiro quadro, tal vetor que vai contra a disposição leitural é fundamental para que se retome a parte inferior da prancha. Vale aqui destacar que esse retorno proposto pela economia vetorial da prancha não é o mesmo de Hergé, onde a perseguição projeta o leitor sempre para a região privilegiada da resolução, incessantemente, obstinadamente, até o momento do choque. Já observamos que, para que a mudança do percurso vetorial tenha o impacto de um choque é preciso desenvolver esse percurso sob um forte valor obsessivo. Em Inoue, essa espécie de vai-e-vem provoca uma disposição mais cautelosa, que não se assemelha própria a frustação impactante do choque. Mas um preparação para a ação precisa, para o clímax da ação e em seguida a sua resolução (ver figura 9).
Conclusão
Ao longo dessa exposição observamos diversas vezes como a economia vetorial da página está intimamente ligada ao próprio desenvolvimento da cadência narrativa. Aqui, cadência refere-se aos estados e fluxos de paixões que o leitor experimenta a partir da trama, ou precisamente dos pontos de tensão narrativa, como Baroni propõe. Podemos observar que sofrer sobre uma trama e formular horizontes de interpretação modulados por paixões também envolve uma atividade sensorial, um programa de efeitos que se realiza, sobretudo, na competência sensória do leitor e que contribui para a reação emocional sobre a narrativa.
Por fim, concluímos, observando novamente, que haveria propostas de páginas que não estariam de acordo com possibilidades aqui apresentadas, mas que, no entanto, não questionam o princípio de que a economia vetorial da página não é construída apenas pelos elementos da linguagem dos quadrinhos, há antes uma disposição do leitor sobre o próprio espaço. Para tanto, basta que o leitor reconheça limites: uma página, uma dupla página, um quadro, etc. Evidentemente, algumas composições de páginas são capazes de inserir divisões nesse espaço de partida, que podem gozar de uma maior ou menor autonomia. Dessa forma, não pode a análise sobre a espacialidade da página estabelecer, a princípio, a unidade mínima ou significante da linguagem gráfica dos quadrinhos. Por vezes, não é possível avaliar a página sem falar da composição interna das vinhetas, como fizemos. Da mesma forma, não podemos esquecer a função que o próprio suporte das histórias em quadrinhos pode possuir.
Referências
BARONI, R. Passion et Narration. Protée, 34(2-3), p. 163-175, 2006.
BARROS, D. L. P. Teoria do Discurso. São Paulo: Humanitas, 2002.
BARTHES, Roland. O Óbvio e Obtuso, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
EISENSTEIN, Sergei. O Sentido do Filme. São Paulo: Jorge Zahar Editora, 2002.
FRESNAULT-DERRUELLE, Pierre. Du Lineaire au Tabulaire. Communications, 24, p. 07-23, 1976.
GROENSTEEN, T. Système de la Bande Dessinée. Paris: Presses Univertsitaires de France, 1999.
GROENSTEEN, T. Bande Dessinée et Narration. Paris: Presses Universitaires de France, 2011.
MCCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. São Paulo: Markon Books, 1995.
METZ, Christian. A Significação do Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972.
PEETERS, B. Lire La Bande Dessinée. Paris: Editions Flammarion, 2010.
[1] Este texto dá continuidade a problemas que foram apresentados no II Viñetas Serias: Segundo Congresso Internacional Sobre Historieta e Humor Gráfico. Aproveito a agradeço as contribuições feitas pelos pares do congresso e que resultaram nessa versão.
[2] Mestrando em Estética e Tecnologias da Comunicação pela Universidade Federal Fluminense. Email: jonathasaraujo@gmail.com
[3] Embora o livro de Peeters seja de 2010 este é uma versão revisa de um livro intitulado Case, Planche e Récit – Lire la Bande Dessinée de 1998.
[4] Aqui simbólico é assumido em sentido amplo, no qual toda competência do leitor mobilizada por um texto, sejam estas de ordem sensíveis, afetivas, etc. possui um lastro anterior na própria experiência do leitor; em resumo, um fundo simbólico de sua subjetividade.
[5] O termo aqui é empreendido apenas no seu sentido físico, não tendo nenhuma relação, neste momento, com os estilos tensivos propostos pela semiótica tensiva.
[6] Groensteen no primeiro capítulo do Système de la Bande Dessinée faz uma revisão das propostas de Peeters no capítulo «Les Aventures de la Page» no livro Lire la Bande Dessinée.
Anexo de figuras:
Figura 1. King Ottokar’s Sceptre (Hergé, 2001)
Figura 2. Titin in America (Hergé, 2001)
Figura 3. Os Maiores Clássicos do Homem Aranha Vol. 5 (D. Michelinie e T. McFarlane, 2007)
Figura 4. Jimmy Corrigan, the Smartest Kid on Earth (C. Ware, 2000)
Figura 5. Morte, O Grande Momento da Vida (N. Gayman e M. Buckingham, 1997)
Figure 6. Vagabond Vol 1. (Takehiko Inoue, 1998)
Figure 7. Vagabond Vol 1. (Takehiko Inoue, 1998)
Figure 8. Vagabond Vol 1. (Takehiko Inoue, 1998)
Pingback: Animação e arte sequencial (HQ’s) « Revista Universitária do Audiovisual