Temas históricos no cinema brasileiro da década de 90

Alcides Freire Ramos é Doutor em História Social pela FFLCH-USP. Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia-MG. Além de diversos capítulos de livros e artigos em revistas especializadas, publicou os livros Canibalismo dos Fracos (Bauru/SP: Edusc, 2002) e Cinema e História do Brasil (3ª edição, São Paulo: Contexto, 1994), este último em co-autoria com Jean-Claude Bernardet. É um dos coordenadores do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC). É um dos editores do periódico eletrônico Fênix – Revista de História e Estudos Culturais (www.revistafenix.pro.br).

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RESUMO: Este ensaio analisa alguns filmes históricos brasileiros lançados durante a década de 1990, particularmente Carlota Joaquina (1995, Carla Camurati) e O que é isso, companheiro? (1997, Bruno Barreto). Apesar das diferenças estilísticas, estes filmes têm em comum uma característica muito importante: estavam sintonizados com o processo de globalização.

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Todo e qualquer filme dialoga com o contexto sócio-político em que foi realizado. Com efeito, se uma obra cinematográfica aborda um tema histórico (algo que esteja consagrado em nossos manuais como fazendo parte de “nosso passado”), a sua articulação com a história se dá em um duplo nível. Primeiro: o do filme como ensaio de interpretação de um “fato histórico”. Segundo: o diálogo do filme com os aspectos contemporâneos, ou melhor, com as circunstâncias sociais e políticas do momento de sua produção e exibição. Assim, não é difícil perceber que o discurso sobre a História (“passado”) está intimamente ligado ao presente e, consequentemente, às suas mais diversas lutas políticas. Impor uma determinada interpretação histórica é, ao mesmo tempo, impor uma interpretação do presente. Toda vez que se propõe uma interpretação única da história, simplificando-a, ocultando as contradições, as divergências os confrontos, o resultado é, por extensão, impor uma visão única do presente.

Partindo da premissa exposta acima, este artigo discutirá, em linhas gerais, de que maneira dois dos mais significativos filmes históricos lançados no Brasil da década de 1990 [Carlota Joaquina (1995, Carla Camurati) e O que é isso, companheiro? (1997, Bruno Barreto)] dialogaram com a conjuntura política.

Antes, porém, de passar à análise dos filmes, cabe ressaltar que, ao longo da década de 1990, muitos cineastas, produtores e jornalistas especializados saudaram a retomada da produção e, ao mesmo tempo, o surgimento de um “novíssimo” cinema brasileiro. Além disso, essa década tornou-se, sem dúvida, um momento de transformações nas perspectivas estéticas. Até um cineasta como Walter Lima Jr., que se formara em estreita ligação com as idéias mais consequentes dos anos 1960, fez uma significativa revisão de posições. Para Lima Jr, “o Cinema Novo não foi bem entendido pelas pessoas que participaram dele. […]. Ele seria totalmente novo quando saísse do gueto e aceitasse a internacionalização. O cinema estava passando a ser internacional e nós ficamos fora disso. Aí se inventou – com a cumplicidade dos militares – a Embrafilme (grifos nossos)”.[1] O trecho citado é pequeno, mas vai direto ao ponto: o “nacionalismo crítico” que norteou a atuação de muitos cineastas brasileiros, nos anos 1960, deveria ser abandonado.

Ressalte-se, portanto, que o objetivo último a ser alcançado pelos novos cineastas, atuantes na década de 1990, é a conquista do mercado internacional. E disso esses profissionais não se afastaram um só milímetro. A iluminação, o figurino, a interpretação dos atores, os cortes, os procedimentos de montagem, os movimentos de câmera; enfim, todos os elementos que se relacionam com a linguagem cinematográfica deveriam estar de acordo com o gosto do público estrangeiro, particularmente do norte-americano.

O mesmo pode ser dito sobre os temas que foram escolhidos por nossos diretores. Por este motivo, é possível afirmar: o processo de globalização[2] estava sendo encarado como algo inevitável e, por consequência, desejável.

Recentemente, vários estudiosos das questões cinematográficas no Brasil lançaram ensaios importantes que, de formas variadas, discutem esse período histórico[3]. Em diálogo com essa bibliografia, o presente ensaio pretende oferecer uma contribuição que propicie uma compreensão crítica dos referidos filmes.

Neste sentido, Carlota Joaquina (1995, Carla Camurati) foi saudado pela sua capacidade de promover a reconciliação do nosso público com o cinema produzido no Brasil. O sucesso de bilheteria não significou, porém, unanimidade. A “quase-polêmica-nacional” que foi provocada pela cineasta decorria do modo como foi contada uma passagem da história brasileira. Entretanto, os problemas apontados não estão na cronologia adotada pela cineasta, tampouco na ausência de pesquisa. Na verdade, estão na maneira de reconstituir o caráter das personagens.

D. João, por um lado, é tratado como um jovem covarde, “abobalhado” e “corno manso” que está sempre às voltas com coxas de galinha e com a demência de sua mãe. A sua dificuldade em tomar decisões foi retratada numa das frases mais hilariantes do filme: “quando não sabemos o que fazer, o melhor é não fazermos nada”. Por outro lado, se Carlota, quando criança, viveu num ambiente alegre e musical (como era a Corte Espanhola), no momento em que se tornou adulta, porém, passou a conviver com outra realidade: a tristeza da Corte Portuguesa. Neste novo contexto, dominando totalmente o marido, transforma-se numa devoradora de homens, com os dentes podres, bigode e vários filhos bastardos. No caminho de volta à Europa, profere a frase que sintetiza sua rápida passagem pelo Brasil: “desta terra não levo nem a poeira nos sapatos”.

Sem dúvida, este tratamento foge da concepção heróica e pomposa tão marcantes em nossos filmes históricos. Quase sempre, os grandes vultos do passado (por exemplo: D. Pedro I, Tiradentes, Getúlio Vargas, JK, Jango, etc) são lembrados com dignidade, apreço e reverência. Suas histórias, cada uma a seu modo, fazem parte do processo de desenvolvimento da nação brasileira. D. João, em manuais escolares, é retratado como o responsável pela introdução de práticas econômicas livre-cambistas no Brasil (liberação de entrada de navios estrangeiros, por exemplo) pelo estímulo à cultura (criação da Imprensa Régia, do Museu Nacional, da Biblioteca Real, da Academia de Belas-Artes e incentivo à chamada missão francesa) e pela criação do Banco do Brasil. Algumas destas realizações estavam presentes em Carlota Joaquina, mas o modo de fazer referências a elas é que não coincide com o tratamento tradicional. A capacidade do filme de C. Camurati em gerar polêmica residia nisso: ele fugiu da grandiloquência.

Carlota Joaquina, neste sentido, apresentou-se como uma manifestação cinematográfica marcada pelo ceticismo. O filme, a princípio, afirmava-se como o pensamento de uma geração jovem descrente diante de sua história. Esta não era encarada como uma herança inspiradora e modelar, mas como um fardo muito pesado e que precisava ser exorcizado. Esta postura não se mostrou suficientemente crítica, porém, a ponto de conseguir propor uma outra visão. Por isso, adotou-se uma atitude irônica que distanciava o filme do modelo tradicional (um filme seriamente centrado numa personalidade que ocupou um papel de destaque), mas não radicalizava sua proposta a fim de rejeitar este modelo e propor outro (bem ou mal escolheu Carlota Joaquina, alguém que esteve muito próximo do centro de poder em sua época). O filme não creditava valor positivo às figuras históricas que escolheu como tema. Elas não se constituíam como uma referência relevante do nosso “passado”. Em suma: o legado deixado por estas personagens não se apresentava como modelo orientador para nossa ação (presente) e, por consequência, tampouco se mostra como algo que poderia nortear projetos (futuro). Ao contrário, o deboche/sarcasmo com que foram tratadas é a melhor demonstração desse olhar negativo.  Essa abordagem pode ser entendida como à luz daquela conjuntura político-ideológica.

Com efeito, aquele momento histórico estava marcado, sobretudo, por um debate acerca do papel do Estado. Para o pensamento então dominante, o Estado tinha se tornado grande demais. As empresas estatais tendiam a ser ineficientes, devido à incapacidade dos poderes públicos em impor a elas alguma espécie de controle. As saídas que foram apresentadas para superar este quadro materializavam-se nas chamadas “reformas”: diminuição do tamanho do Estado, desregulamentação da economia, etc.[4] Ora, o filme de C. Camurati, dialogou sensivelmente com esta conjuntura. O tema escolhido pela cineasta (vinda da família real para o Brasil) tocava, sem dúvida, na questão do Estado brasileiro.

Neste contexto, vale a pena lembrar alguns dados históricos importantes. Com a instalação da Corte no Rio de Janeiro, os senhores rurais brasileiros passaram a ter, pelo menos do ponto de vista teórico, a oportunidade de influir diretamente nas decisões do governo. Na prática, contudo, sofreram a concorrência dos ricos comerciantes, na maioria portugueses, que se aliaram à nobreza com cargos públicos que acompanhara o regente na fuga. Além disso, D. João manteve o governo dentro da tradição absolutista, o que restringiu a participação dos senhores rurais na vida política. O Estado português que foi reconstituído no Brasil parecia não ter relação alguma com a sociedade brasileira, e o seu governo acabou se transformando numa espécie de entidade estranha, que pairava acima da própria sociedade. Nesta linha de raciocínio, a criação do Banco do Brasil demonstra exemplarmente este afastamento Estado-Sociedade. Ao invés de atuar como instituição de fomento aos setores produtivos (comércio, indústria, agricultura), na realidade serviu como mero instrumento das finanças do Tesouro Real, permitindo ao governo emitir papel-moeda apenas para suprir suas necessidades.[5]

Diante disso, não é difícil imaginar o motivo pelo qual, em Carlota Joaquina, no momento de retratar a criação do Banco do Brasil, a cena tenha sido tão marcada pelo deboche/sarcasmo. O que o filme mostra rebate de imediato sobre os espectadores. E as (preocupantes) gargalhadas (neoliberais) se espalhavam pela sala de exibição…

Por fim, cabe ressaltar: a única personagem tratada com seriedade é a do funcionário do governo inglês que – de modo discreto, mas firme e pragmático – passeia pela Corte, oferecendo sugestões a D. João. Este, em meio a coxas de galinha, entre uma mordida e outra, aceita “abobalhado” as gentilezas do “aliado”. Carla Camurati, assim, reforça uma antiga escala de valores: os latinos (portugueses em especial) são irracionais e os anglo-saxões caracterizam-se pela eficiência.

De acordo com a interpretação histórica defendida no filme, se o Brasil não tivesse uma tão forte herança latina… talvez pudesse “dar certo”.

Por outro lado, O que é isso, companheiro? (1997, Bruno Barreto) retrata o tumultuado mês de setembro de 1969. Eram tempos de AI-5, agitação estudantil e guerrilha urbana. Destes temas, o diretor se concentrou num grupo de jovens militantes de esquerda exatamente no momento em que sequestravam Charles Elbrick, embaixador dos EUA, para denunciar as atrocidades do regime militar e libertar presos políticos. Sem dúvida, Barreto, ao tratar ficcionalmente acontecimentos da história brasileira recente, pôs o dedo em feridas ainda não cicatrizadas. E nisso reside o seu maior mérito.

Não obstante, a película não foi recebida apenas com aplausos, tendo em vista os problemas suscitados pelos encontros/desencontros da história com o cinema. E isso se deve a uma questão muito simples de ser enunciada, mas que, infelizmente, exige, não raro, respostas complexas: se a história e a ficção são intrinsecamente diferentes, em que momento começa uma e em que instante termina a outra? Como é que o espectador, durante uma sessão de cinema, pode vir a separá-las de modo adequado?

Na realidade, para o senso comum (isto é, para a maioria do público cinematográfico brasileiro), a história, ainda hoje, é a procura incessante de uma verdade objetiva. Neste sentido, contrariamente ao futuro, sempre aberto à imaginação e à ação humanas, o passado, exatamente por já ter ocorrido, estaria como que morto, registrado em documentos neutros, aguardando a fria análise dos cientistas. Mas, diferentemente do que pensa o homem comum, as coisas não se passam desse modo. Pelo contrário. A história está constantemente sendo reescrita. Isto ocorre porque, na verdade, apropriar-se do passado, monopolizando o seu significado, constitui-se num objetivo crucial para todos aqueles que atuam politicamente. Quem domina a capacidade de interpretar o passado tem maiores condições de impor sua visão histórica no presente e, obviamente, pode abrir caminho para a construção de um futuro mais próximo de seus projetos e sonhos. A produção de interpretações históricas é, pois, muito marcada por interferências de ordem política.

Ao lado disso, deve-se ter em mente que, quando se trata de comentar filmes históricos, ficar tentando estabelecer distinções entre o que é verdade (história) e o que é mentira (ficção) não é um caminho adequado. É mais interessante e proveitoso pensar em como a ficção (aqui entendida como tudo aquilo que é fruto exclusivo da imaginação e, deste modo, sem qualquer vínculo com o mundo objetivo), muitas vezes, pode estar a serviço das interpretações históricas. Com certeza, um exemplo retirado da obra de Hayden White ajudará a elucidar um pouco melhor essa questão:

“os acontecimentos são convertidos em história pela supressão ou subordinação de alguns deles e pelo realce de outros, por caracterização, repetição do motivo, variação do tom e do ponto de vista, estratégias descritivas alternativas e assim por diante – em suma, por todas as técnicas que normalmente se espera encontrar na urdidura do enredo de um romance ou de uma peça. Por exemplo, nenhum acontecimento histórico é intrinsecamente trágico; só pode ser concebido como tal de um ponto de vista particular ou de dentro do contexto de um conjunto estruturado de eventos do qual ele é um elemento que goza de um lugar privilegiado. Pois na história o que é trágico de uma perspectiva é cômico de outra, exatamente da mesma forma que na sociedade o que parece ser trágico do ponto de vista de uma classe pode ser, como Marx pretendeu demonstrar com O 18 Brumário de Luís Bonaparte, apenas uma farsa do ponto de vista de outra classe […]. O mesmo conjunto de eventos pode servir como componentes de uma estória que é trágica ou cômica, conforme o caso, dependendo da escolha, por parte do historiador, da estrutura do enredo que lhe parece mais apropriada para ordenar os eventos desse tipo de modo a transformá-los numa estória inteligível”.[6]

O que é importante assinalar, a partir da citação acima, é que categorias como trágico ou cômico, típicas do vocabulário dos que interpretam obras literárias, também podem fazer parte do instrumental do historiador, sobretudo, diante da tarefa de interpretar obras ficcionais baseadas em saber historiográfico (por exemplo, um filme histórico como “O que é isso, companheiro?”).

Isto pode ser dito já que, quando um historiador constrói uma narrativa marcada pela comicidade (tal como Marx), a compreensão destes acontecimentos se faz não apesar da comicidade, mas exatamente a partir dela e com base nela. A comicidade, aqui, não é mero ornamento. É uma das formas de conferir concretude ao pensamento. Destarte, lançar um olhar trágico ou cômico sobre os acontecimentos é, sobretudo, uma forma de interpretá-los.

Ademais, H. White sugere que uma escolha desse tipo (por exemplo: interpretar comicamente o que, para outros, é algo trágico) pode ser também um produto da inserção do historiador na luta política de seu tempo e, portanto, de seu modo de intervir na própria história. Por isso, se, numa determinada circunstância, aqueles acontecimentos que, antes, eram vistos como trágicos passarem, socialmente falando, a ser encarados como cômicos é porque uma importante transformação política ocorreu. A passagem do trágico ao cômico, neste caso, só pode ser explicada a partir da própria história.

Deste ponto de vista, o caso de O que é isso, companheiro de Bruno Barreto é paradigmático. Não é à-toa que o filme tenha conseguido provocar a ira de alguns espectadores, especialmente dos que participaram dos acontecimentos retratados na película. E o que mais irritou a este segmento não é a presença de erros factuais, troca de nomes, fusão de personagens, etc…, mas, sim, o tom narrativo adotado. Para os militantes que viveram o período, a interpretação histórica mais conveniente é algo como a seguinte apreciação:

“nos livros de Gorender[7] e Ridenti[8] não há meninos rebeldes, há projetos revolucionários, e […] resistência de mulheres e homens que não se entregam. […]. O isolamento dos que foram liquidados pelo aparelho repressivo teria sido mais o resultado dos métodos que utilizaram (com os quais a sociedade não se solidarizou) do que da vontade de resistir à ditadura […]. Aprisionados por seus mitos, que não autorizavam recuos, insensíveis aos humores e pendores de um povo que autoritariamente julgavam representar, empolgados por um apocalipse que não existia senão em suas mentes, jogaram-se numa revolução que não vinha, e que, afinal, não veio”.[9]

Como se vê, os revolucionários são encarados como portadores de uma missão nobre e elevada (a derrubada da ditadura), embalados por uma vontade irresistível e sincera (estavam, aliás, dispostos a morrer por suas idéias), mas que, em virtude de uma “falha trágica” (não poderiam recuar), perseguiram “cegamente” seus objetivos (fazer a revolução) e utilizaram-se de métodos inadequados (o “foquismo”). São, portanto, personagens que exigem um tratamento grandiloquente, visto que são possuidores de uma dimensão trágica.

No entanto, pela sua carga cômica, O que é isso, companheiro? caminha em direção contrária àquela exposta acima. O filme reforça a versão (muito difundida entre nós) de acordo com a qual os revolucionários dos anos 60 comportaram-se como se fossem “aventureiros”. Suas ações pareceram algo tresloucadas, pois foram perpetradas por um grupo de adolescentes despreparados. Por isso, vale enfatizar: em Gabeira,

“a visão crítica do período, amadurecida coletivamente no longo exílio, é retrospectivamente localizada no fogo mesmo dos acontecimentos, concentrando-se no personagem principal. E, assim, Gabeira/guerrilheiro ressurge descolado da ingenuidade ambiente, reescrito pelo autor com uma superconsciência das tragédias que haveriam de vir. Essa atitude distanciada, crítica, irônica, a maioria dos leitores a desejava, e assim foi possível reconstruir o passado sem se atormentar. […]. Até hoje, a maioria agradece penhorada por esta versão ter permitido recordar uma história triste sem dor, e ainda com um sorriso nos lábios”.[10]

Desta forma, tanto no romance como no filme, o procedimento é o mesmo: deslocar a tonalidade narrativa, fugindo do trágico/grandiloquente e lançando um olhar cômico/irônico sobre os acontecimentos. E esse deslocamento (que é algo típico das obras ficcionais) foi posto a serviço de uma dada interpretação histórica. Mais exatamente a que pressupunha uma evidente autocrítica por parte da esquerda.

Ocorre, porém, que, para além dessa coincidência entre o livro e o filme, é preciso não se esquecer dos aspectos ligados à estratégia que foi adotada na adaptação propriamente cinematográfica. Por este caminho é possível mostrar como a ironia presente no livro de Gabeira foi associada a uma interpretação nitidamente conservadora. As avaliações de Vera Sílvia Magalhães a respeito da tortura podem nos ajudar a entender melhor isso.

No filme, Vera é representada, ao mesmo tempo, pelas personagens de Fernanda Torres e Cláudia Abreu. Tendo sido uma das mais importantes lideranças do MR-8, não só participou ativamente do sequestro como acompanhou, desde o início, a elaboração do livro. “Foi a primeira obra de esquerda que repensou o período, mas não autoriza um filme desses”.[11] O motivo mais importante para a discordância é a questão da tortura: “é inteligentíssima a parte em que Fernando retrata o torturador, salientando o seu lado ‘esquizo’. Ele liga para a mulher e, no meio da tortura, diz: ‘vou chegar mais tarde’. Isso é riquíssimo no livro, mas, no filme de Barreto, o torturador é humanizado e desvinculado do exército”.[12]

Percebe-se, pois, que o filme de Barreto, do ponto de vista político, aprofunda de modo conservador o deslocamento operado por Gabeira em seu romance. Embora mantenha algumas de suas convicções políticas, o militante, no momento da autocrítica, revê sua trajetória com distanciamento e ironia.

O filme, por seu turno, mantém essa tonalidade, mas agrega dados que não estavam presentes no livro. Esses acréscimos fazem com que a nova trama, quando comparada com a narrativa matriz, apareça como retrógrada, já que implica numa espécie de conciliação com a ditadura militar.

Portanto, como ficou demonstrado a partir da análise dos dois filmes escolhidos, esta fase da produção cinematográfica brasileira, ao invés de uma abordagem marcada pela crítica e pela denúncia (traço definidor de nossos melhores filmes dos anos 1960 e 1970), grosso modo, caracterizou-se pelo desejo de afagar o público com histórias que reafirmaram a existência de um preocupante fenômeno: a passagem de uma cultura de oposição para uma cultura governista.

Frutos de um acordo tácito entre produtores, diretores, jornalista e “ideólogos de plantão”, estas obras tentaram retratar o Brasil como um país que, libertado dos traços culturais que o mantém preso ao atraso, poderia integrar-se no concerto das nações do primeiro mundo.

A perspectiva “culturalista”, adotada nas películas, acabou por tirar do foco de preocupações aquilo que, até prova em contrário, ainda é um dado fundamental de nossa realidade: os desníveis existentes nas trocas internacionais, bem como as profundas desigualdades de classe que caracterizam a sociedade brasileira. Inconscientemente ou não, estes filmes divulgaram valores conservadores que se coadunaram plenamente com os caminhos seguidos no processo de globalização.


[1] ENTREVISTA concedida por Walter Lima Jr. a Inácio Araújo. Folha de S. Paulo, 28/02/1995, Ilustrada, p. 1.

[2] As numerosas manifestações a respeito do tema revelam que “globalização”, antes de ser “a” palavra da moda, é um conceito que ainda está sendo formulado. Há, na verdade, um debate envolvendo diversos cientistas sociais, espalhados pelo mundo inteiro. É possível, porém, compreender esse processo como aquele que envolve, entre outros, a chamada “terceira revolução tecnológica” (processamento e difusão de dados por rede, inteligência artificial, engenharia genética, etc), a formação de blocos comerciais ampliados (Mercosul, União Européia, Nafta, etc), a hegemonia do capital financeiro (movimentação de grandes somas de dinheiro por meio dos novos dispositivos tecnológicos), o surgimento de novos padrões de inclusão e exclusão social (o fenômeno do desemprego oriundo das transformações tecnológicas é um bom exemplo disso), a destruição de manifestações culturais regionais e a consolidação da chamada “cultural global” (a hegemonia do cinema norte-americano nas salas de exibição do mundo inteiro e a generalização do consumo dos programas veiculados pelas televisões a cabo são alguns dos indícios desse processo).

[3] ENTREVISTA com Ismail Xavier: o Cinema brasileiro dos anos 90. Praga: estudos marxistas. n’ 9, junho de 2000, p. 97-138; NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34, 2002. 528p.; ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. 254p.; CAETANO, Daniel (org.). Cinema Brasileiro (1995-2005): ensaios sobre uma década. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005. 352p; NAGIB, Lúcia. A utopia no cinema brasileiro: matrizes, nostalgia, distopias. São Paulo: Cosac Naif, 2006. 216p.

[4] Para entende melhor isso, vale retomar as palavras de um dos principais defensores da adoção pelo governo brasileiro das medidas propostas pelo consenso de Washington: “Este consenso admitia a existência da crise, mas de uma maneira limitada. Suas causas foram definidas: (1) indisciplina fiscal (ou populismo econômico), resultando em déficit público; (2) intervenção estatal excessiva, particularmente através das empresas estatais, de restrições comerciais e vários tipos de subsídios ao investimento e ao consumo. Os remédios foram listados: (1) ajuste fiscal, visando à eliminação do déficit público; (2) reformas estruturais ou orientadas pelo mercado (particularmente a liberalização do comércio e a privatização), visando à desregulamentação e à redução do aparato estatal; e (3) uma redução limitada da dívida (o Plano Brady, 1989)” (PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Uma interpretação da América Latina: a crise do Estado. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n’ 37, Novembro de 1993, p. 45).

[5] Para maiores detalhes, consultar: FAORO, Raimundo. Os donos do poder. Porto Alegre: Globo, 1977 (Vol. 1). Ver em especial págs. 248-260.

[6] WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In: Trópicos do discurso. São Paulo: EDUSP, 1994, p. 101.

[7] GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo: Ática, 1987.

[8] RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora da UNESP, 1993.

[9] REIS FILHO, Daniel Aarão (e outros). Versões e ficções: o seqüestro da história. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1997, p. 39-40 e 42.

[10] Ibidem, p. 36.

[11] PATRIOTA, Rosangela. Vera Sílvia Magalhães: estrangeira em seu próprio país. In: Revista Cultura Vozes. Petrópolis: Vozes, 92 (1), janeiro-fevereiro de 1998, p. 106-107.

[12] Ibidem, p. 108-109.

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