Leandro Vieira Maciel possui graduação em RÁDIO E TV pela Universidade de São Paulo (2003) e Mestrado em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi. Atualmente é roteirista da FIC´S ( Fábrica de Idéias Cinemáticas) e professor da Universidade ANHEMBI MORUMBI, atuando principalmente nos seguintes temas: roteiro, televisão e cinema. Recentemente premiado como roteirista pelo curta metragem “Dossiê Rê Bordosa” (COALA FILMES. direção César Cabral; www.dossierebordosa.com.br)
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RESUMO
Este artigo se propõe a analisar o modo com que a história do filme “Cidade de Deus” [1] é construída . Os objetivos são demonstrar a importância capital do roteiro e debater a necessidade de se analisar a narrativa, frente à tendência dominante de análises sociológicas ou da imagem. Discutiremos esta tendência comparando a repercussão de “Cidade de Deus” com a do filme “Quem Quer Ser Milionário?” [2]
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INTRODUÇÃO
No momento da escrita deste artigo, a produção “Quem Quer Ser Um Milionário?” foi o grande vencedor da edição 2009 do Oscar[3]. O filme atingiu sucesso de público e de parte da crítica, mas recebeu diversas revisões severas, principalmente no que se refere ao retrato supostamente artificial da favela de Mumbai, na Índia. Destacamos dois comentários recorrentes: de que o filme é um representante da chamada “pornografia da miséria” [4] e de que ele imitaria, em alguns aspectos, o filme “Cidade de Deus”.
Curiosamente, a comparação entre os dois filmes nos parece pertinente, não propriamente por suas semelhanças, mas sim pelos comentários parecidos que tanto um quanto o outro receberam. Assim como “Quem Quer Ser Um Milionário” faria “pornografia da miséria” ao explorar as mazelas dos favelados indianos, diz-se que “Cidade de Deus”, na época de seu lançamento, aplicaria uma “cosmética da fome” à favela carioca.
No caso de “Cidade de Deus”, este termo é citado no texto “O copyright da miséria e os discursos sobre a exclusão”[5]. Em certo ponto de seu texto, Ivana Bentes ataca certo “turismo ao inferno” que “Cidade de Deus” e seus idealizadores aparentemente ignoravam. O olhar dela é o de uma socióloga que discute as intenções dos autores e a representação de mundo que os mesmos constroem (segundo ela, no filme de Meirelles haveria a representação de uma favela “maquiada”; e é a partir dessa afirmação que nasce o termo “cosmética da fome”).
Em nossos trabalhos, percebemos que é possível refletir a respeito de “Cidade de Deus” ou de qualquer produto audiovisual fugindo de olhares que, para nós, parecem importantes, mas demasiadamente saturados: o olhar sociológico e o viés centrado na imagem.
Os trabalhos acadêmicos dificilmente valorizam a habilidade da equipe criativa das obras audiovisuais em contar uma boa história, dos atores encarnarem personagens de maneira convincente a partir de um texto plausível e que ao mesmo tempo gere interesse para o espectador, ou outras qualidades narrativas. Em primeiro lugar, parecem estar as análises que partem da imagem para discutir apenas a intenção ou a visão do diretor. Não pretendemos, a princípio, desvalorizar ou ignorar as análises com estes focos, porém gostaríamos de apontar que existe um lado para o qual se volta pouca atenção dentro da área da Comunicação: o lado da arquitetura narrativa. Isto ficou evidente com a discussão em torno de “Cidade de Deus” e pode estar se repetindo com “Quem Quer Ser…”.
Aproveitamos este momento, então, para nos propormos a analisar novamente os filmes – e todo ou qualquer produto audiovisual – pelo o que eles são, e não pelo o que eles representam ou ilustram. Como demonstração, analisaremos “Cidade de Deus” por aquela que consideramos sua maior qualidade: o seu roteiro[6].
Para isso, precisamos definir o objeto desta investigação, o roteiro. Podemos defini-lo como um texto que descreve uma narrativa a ser convertida ou realizada tecnicamente em imagem e som. Em resumo, o roteiro é o guia para um produto audiovisual. A partir disso, podemos ampliar o roteiro para além de suas definições técnicas; dentro de uma peça audiovisual, o roteiro se refere aos procedimentos com os quais a equipe de criação conta um enredo.
Para analisar como estes procedimentos podem fazer com que uma história seja bem contada, aplicamos conceitos teóricos e técnicas de roteirização descritas em livros e manuais sobre o assunto[7] ao produto audiovisual. Ao aplicar e comparar tais conceitos e técnicas, difundidas amplamente entre os roteiristas e os demais profissionais, notamos que é possível separar estas ferramentas em três grupos: Personagem; Estrutura e Unificação.
As técnicas de Personagem são ferramentas de criação e composição dos personagens, como a caracterização de personagens e a definição de objetivos e conflitos; a hierarquização entre os personagens da narrativa; a atribuição de protagonista e antagonista; entre outras possíveis.
Estruturas são técnicas utilizadas para alicerçar a narrativa. Isto vai desde a maneira com que as narrativas se organizam em grandes partes (como as divisões por atos) até a organização dos eventos dentro de seqüências ou cenas.
Unificação são técnicas que os roteiristas aplicam aos enredos com o objetivo de unificá-los para causar a impressão de um todo coerente para o espectador. É aquilo que informalmente é chamado de costura ou amarração.
Para demonstrarmos a importância da arquitetura narrativa num produto audiovisual, analisaremos o uso, em “Cidade de Deus”, de ferramentas de cada um destes três grupos. No grupo de técnicas de Personagem, iremos analisar de que modo os personagens Zé Pequeno e Buscapé são caracterizados; para Estrutura, demonstraremos como as seqüências se organizam no filme; e como exemplo de Unificação, discutiremos as unidades e temas do longa-metragem.
A CARACTERIZAÇÃO DE ZÉ PEQUENO E DE BUSCAPÉ
Howard e Mabley, no manual Teoria e Prática, sublinham que a caracterização dos personagens e a trama são interdependentes. O que o personagem quer (objetivo, conflito) está ligado diretamente ao que ele é (sua caracterização). Existem características superficiais que ajudam o roteirista a retratar o personagem como jeito de falar e condição física. O exemplo mais forte citado pelos autores é Cyrano de Bergerarc, personagem cujo nariz imenso é parte integral de seu conflito[8] .
No cotidiano do roteirista, caracterizar também é uma fase da roteirização, em que se procura dar vida aos personagens: mais do que fazer o conflito[9] emanar de quem o personagem é (condição essencial de uma estrutura narrativa), o roteirista procura facilitar a identificação desse junto ao espectador; também tenta-se deixar o personagem o menos plano possível. Exceto, no caso de personagens que sejam tipos, pois é característica básica que eles sejam planos.
A composição Zé Pequeno e Buscapé em “CDD”[10] é supostamente oposta. No caso de Pequeno, temos sua “risada fina, estridente e rápida”, como Mantovani anotou a partir do livro de Paulo Lins[11]. Esta risada serve para valorizar o sadismo do personagem de Pequeno, que ri dessa maneira principalmente quando mata alguém. Esta contraposição entre uma risada e um ato de violência serve para gerar algum temor nos demais personagens, como nos confirma Buscapé após a tomada da Boca dos Apês, e para gerar antipatia junto ao espectador.
Um objeto em destaque caracteriza Zé Pequeno: o revólver. O gosto e o manejo por esta arma acompanha sua trajetória. O jeito que ele a segura, quando se torna dono da favela, é diferente dos outros personagens: displicente, impositivo.
Na primeira fase do filme, vê-se Dadinho/ Pequeno olhando fascinado para uma arma e apontando para Marreco (de quem recebe um tapa). Mais tarde, Dadinho oferece uma arma para Marreco pouco antes de usá-la para matá-lo. Em seguida, vê-se uma série de planos rápidos de Dadinho rindo e atirando, até que se mostra ele crescido, atirando para o alto (o garoto se tornou Zé Pequeno).
A composição de Buscapé é igualmente interessante. Quem ele é emana diretamente do que ele mais quer: ser fotógrafo. Logo, o personagem é associado diretamente a um objeto, a máquina fotográfica. Esta caracterização, Buscapé como um aspirante a fotógrafo, foi profundamente pensada, em particular por Mantovani[12]. Logo, ter a máquina e o uso que se faz dela serve tanto para caracterizar o personagem como para mostrar sua evolução pessoal dentro do filme.
Há alguma relação entre a máquina fotográfica e a arma: ambas são, de certo modo, símbolos de status, já que tanto Zé Pequeno quanto Buscapé, cada qual a sua maneira, assumem estes símbolos e mudam de vida. O roteiro brinca com isso, no clímax do filme, quando Pequeno ordena que Buscapé tire uma foto do grupo dele e – no momento do clique da máquina fotográfica – ouvimos o som de um tiro que atinge um dos traficantes. Neste instante surge Mané Galinha e se inicia a batalha final entre ele e Pequeno, observada pelo narrador. A foto que Buscapé faz da morte de Pequeno lhe garante emprego no jornal – o que marca sua mudança de vida.
O Buscapé do livro é mostrado como uma referência positiva de alguém da comunidade: quando criança garoto estudioso e trabalhador, torna-se retratista, após agir muito tempo como líder comunitário da Cidade de Deus. Ele é relativamente externo ao “Movimento”, cometendo apenas um pequeno delito. No livro, é um cocota – garoto classe média-baixa da favela, branco, cabeludo e fã de rock´n´roll. A não ser pela cor de pele, este Buscapé não difere essencialmente do narrador do filme.
Um dos motivos alegados pelos roteiristas do filme, particularmente pela co-diretora Kátia Lund e por Meirelles[13], para esta mudança na cor da pele do personagem está na intenção deles em associar Buscapé ao próprio Paulo Lins (que é negro), como se eles materializassem uma imagem para o narrador em terceira pessoa do livro.
Mas parece haver uma motivação narrativa para esta mudança, que talvez tenha sido uma tomada de decisão inconsciente dos autores: se tivéssemos um narrador branco, que contasse a história centralizada em personagens negros, teríamos uma visão supostamente “de fora”; Buscapé está relativamente distanciado da ação principal do filme, mas ele não é um “estranho”, alheio a ela.
Curiosamente, esta caracterização do personagem Buscapé parece ignorada por BENTES (2003, p. 198) quando ela afirma, a respeito dele, que “sua história de conquista desse lugar (…) é o tênue fio condutor de uma série de outras biografias[14], bem diferentes da sua…”.
Na verdade, Buscapé é um tanto diferente desta série de biografias , pois como a própria Bentes afirma, identificamos Buscapé com a figura do sobrevivente, diferente dos envolvidos com o crime e mais especificamente com o tráfico que parecem destinados a morrer.
Mas as diferenças não são tantas. O olhar de Buscapé não é exatamente “de fora”; mesmo com a diferença aqui citada, ele tem traços comuns àqueles cuja história trágica ele narra. A equipe de criação de “Cidade de Deus” pareceu sugerir algo sobre isso, em pelo menos dois aspectos: a cor de pele de Buscapé e o fato de o bandido Marreco ser irmão dele: ambos têm uma origem, educação e condição de vida semelhantes, mas Marreco se afirma burro, acreditando que por isso se tornou bandido, enquanto Buscapé é um garoto inteligente que deve estudar.
MACROESTRUTURA EM “CIDADE DE DEUS”
Aplicações técnicas referentes à estrutura são uma seara fértil quando se fala em roteiro. Virtualmente, todos os manuais de roteiro discutem de alguma forma a construção estrutural da narrativa. A largamente difundida “Divisão em 3 Atos”, proposta por Syd Field[15] para filmes em longa-metragem, é um principio estrutural. Suas críticas e variações como a divisão flexível em 4 atos essenciais descritos por Thompson[16] ou as alegações, principalmente de roteiristas, sobre a possibilidade de uma infinidade de atos[17], se referem a questões fundamentais listadas por nós, como qual sentido a ordem dos eventos da narrativa adquire para o espectador, ou como podemos segmentar ou organizar a narrativa
Para estudar a estrutura em “Cidade de Deus”, faremos um movimento semelhante àquele proposto por Doc Comparato[18] e retomado de forma ampla no livro de Cannito & Saraiva[19]: partiremos de uma divisão e de uma organização mais geral de cada narrativa estudada (a macroestrutura da narrativa – partindo da divisão em 3 atos de Field) para uma análise por seqüências e cenas (a microestrutura).
O princípio para trabalharmos a estrutura do filme “CDD” é dado pela equipe de criação:
“Para que o espectador compreendesse a evolução do tráfico e a transformação da Cidade de Deus no período de 12 anos, decidi dividir a história em três fases, dando a cada uma delas características distintas como se fossem três filmes diferentes. Isso daria a sensação de transformação e evolução do crime” (MANTOVANI, MEIRELLES, MULLER, 2003, p. 20)
Assim, primeiramente dividimos a narrativa do filme nestas três fases:
Anos 60 (Fase I) / Anos 70 (Fase II) / Final dos anos 70 (Fase III)
Esta separação, inspirada nos três atos de Syd Field[20], tem como pontos de divisão os eventos decisivos na trama de “Cidade de Deus”:
– Da fase 1 para fase 2: A morte de Cabeleira (Marco do fim do Trio Ternura)
-Da fase 2 para a fase 3: A decisão de Galinha enfrentar Pequeno.
Este esquema é didático e colaborou para a equipe conseguir enxergar o filme como um todo, tornando possível estudar sua evolução dramática. Ao observarmos mais atentamente a estrutura do filme, podemos refinar nossa análise. Primeiramente é possível notar que a divisão em três fases é só uma grande moldura, já que as fases se referem a uma evolução dramática e também temporal de personagens envolvidos no tráfico da Cidade de Deus, mas a estrutura do filme comporta outros desdobramentos. O filme, assentado numa estrutura épica[21], não necessariamente respeita tempo ou ação dramática[22]. Tomemos como exemplo:
Diagrama de “Cidade de Deus” (por atos):
Anos 60 / Anos 70 / Final dos anos 70
_*__I__(fase 1)________I___(fase 2)__________I___(fase 3)_____________
* (Prólogo- dos créditos e da apresentação inicial de Zé Pequeno e de Buscapé, no final dos anos 70, até a transição para os anos 60)
De acordo com diagrama, o prólogo que abre o filme pertence cronologicamente à fase 3. Isso acontece pois o filme nos é narrado numa série de “voltas”, sendo a mais ampla esta diagramada anteriormente.
Para entendermos esta estrutura épica, precisaríamos analisar as 3 fases (ou atos) separados. Por hora e a título de exemplo, analisemos a fase 1.
Faremos isso dividindo esta fase em blocos menores, no caso em algumas seqüências. O critério a ser usado é que um conjunto de cenas (ou mesmo de seqüências “menores”) com uma unidade temática ou dramática formará uma seqüência (ou uma seqüência “maior”). Tecnicamente, chegamos a esta divisão fazendo o resumo estrutural – a escaleta – do filme.
Foi possível dividir a fase 1 de “Cidade de Deus” nas seguintes seqüências maiores:
– Prólogo: Cenas & Seqüências de 1 a 6. Começa dos créditos e da apresentação inicial de Zé Pequeno e de Buscapé, no final dos anos 70, até a transição para os anos 60 (na famosa cena de Buscapé emparedado de um lado pela polícia e do outro por Pequeno e sua gangue)
– Apresentação & Assalto ao caminhão de gás: Cenas & Seqüências 8 a 13. Vai da “pelada” onde vemos Buscapé quando criança levando um gol, passando pela introdução do Trio Ternura e mais de Dadinho e Bené, e se fecha na cena onde Buscapé discute com Barbantinho sobre não ser nem polícia e nem bandido, “para não levar tiro”.
– Assalto ao Motel: Cenas & Seqüências de 14 a 19. Começa na cena 14, onde Dadinho faz a proposta do assalto, o que irrita Marreco; da 15 a 19 mostra-se o assalto e sua resolução imediata (termina com a seqüência onde vemos os cadáveres dos funcionários e clientes do motel).
– Fuga do motel: Cenas & Seqüências de 20 a 33. Aqui acontece a separação de Alicate, Marreco (irmão de Buscapé) e Cabeleira, com cada um lidando com as conseqüências do assalto e a busca da polícia: Alicate se machuca e decide voltar pra igreja; Marreco apanha do pai; Cabeleira se esconde na casa de Maracanã e se envolve com Berenice. Em paralelo a eles, temos Paraíba, agindo como delator; um clipe de passagem de tempo marca o final desta seqüência e o inicio da próxima.
– Complicações e o final do Trio (a polícia, o pai de Marreco, Paraíba e Berenice): Cenas & Seqüências de 34 a 49 (clímax da fase). Na cena 36, letreiros identificam que passaram seis meses. Esta seqüência vai de quando Cabeleira recebe uma intimação de Berenice para levar uma vida de “otário”; Marreco volta a trabalhar como peixeiro (junto com Buscapé), engraça-se com a mulher do Paraíba e foge (a última vez em que o vemos, ele toma dinheiro de Dadinho e foge). Em paralelo, Paraíba mata a mulher, a polícia descobre e a imprensa chega. Cabeleira tenta fugir com Berenice e Paraíba vê (no momento em que está sendo preso), mas a polícia mata Cabeleira. Terminamos a seqüência com Buscapé admirando a máquina do fotógrafo que registra o cadáver de Cabeleira, o narrador relatando sua admiração por aquilo e então temos a transição para os anos 70.
O diagrama para a fase 1, macroestruturalmente, era assim:
Anos 60
_*__I__(fase 1)________I__…
E internamente fica assim (por seqüências/cenas):
Assalto caminhão gás/ Assalto motel / Fuga motel / Final do Trio
_________________I_____________I____________I________________
8 a 13 / 14 a 19 / 20 a 33 / 34 a 39
Ressaltemos aqui que:
- O principal agente de ligação entre estas seqüências é a narração de Buscapé (por isso, temos uma estrutura épica);
- Estruturalmente, a fase 1 apresenta uma evolução que podemos delinear como: começo meio e fim ou, mais tecnicamente, como armação, complicação e clímax[23];
- Os personagens separadamente seguem sua trajetória, o que permite traçar suas linhas narrativas separadamente e identifica o roteiro como multiploting[24].
UNIDADES E MOTIVOS EM “CIDADE DE DEUS”
Ao se analisar uma história, um comentário recorrente é que ela “está amarrada” ou bem “costurada”. Esta seria uma qualidade do roteiro, pois queremos dizer que recursos de conexão, de relação ou similares foram habilmente utilizados de modo que o enredo adquira sentido, lógica ou coerência aos olhos do espectador. Quando discutimos a qualidade da amarração de um roteiro, devemos debater a aplicação de ferramentas de Unificação.
Podemos afirmar, genericamente, que as técnicas unificadoras são recursos aplicados pelos roteiristas posteriormente à criação e à construção dos personagens e da estrutura. Aparentemente, elas servem para integrar as personagens à estrutura e, vice-versa.
Entre os recursos unificadores que encontramos, está o de unidades[25]: o principio básico é dado por Aristóteles[26], que discute em especial a unidade de ação (a mais importante, segundo ele), além da de tempo e de espaço. Mabley e Howard consideram que ainda hoje a unidade mais relevante é a de ação. De forma simples, afirmam que a trajetória de um personagem em busca de seu objetivo traz a unidade; assim, a trama “seguiria” o personagem em busca de sua meta. O interessante é que, neste capítulo, os autores discorrem sobre outros roteiros que se valem da unidade de tempo ou de espaço, que seriam casos mais raros.
Neste tipo de filme, não seria necessário um personagem central único que focalizasse as ações. Poderíamos, por exemplo, usar o espaço (como no caso de “Cidade de Deus”, ou ainda de “Nashville”[27]) ou ainda mesmo o próprio tempo (como no caso de “Rashomon”[28]), no qual as diversas visões de diferentes personagens a respeito de um único evento deixam o enredo “inteiro”. Discutir as unidades de uma cena é a base da construção narrativa. Estabelecer quem, quando, onde e o que acontece são perguntas simples que fazemos no momento da criação de uma cena. Agora, manter um olhar atento para a(s) unidade(s) numa escala maior da trama possibilita maior coerência e uniformidade.
Motivos (ou temas):
“É muito raro que um autor comece com um tema e tente moldar uma história de forma a apresentar uma posição filosófica, o que poderia ser chamada de tese. Este método leva a clichês, propaganda e personagens sem vida, porque todas as questões humanas ficam subordinadas a essa tese que o autor pretende provar”(HOWARD & MABLEY,1996, p. 95).
O tema vai além do assunto central da narrativa. Há diversos temas que podem percorrer a trama. São elementos recorrentes; em inglês, o termo utilizado é motif[29], ou seja, motivo. Este tipo de adereço narrativo é mais valioso do ponto de vista técnico, pois é uma maneira recorrente de se manter a narrativa unificada. Um bom exemplo de tema que iremos demonstrar é, em “Cidade de Deus”, a questão da “cobra criada”, ou o ciclo de mortes do crime, que reaparece em todo o filme.
UNIDADES E MOTIVOS NO UNIVERSO “CIDADE DE DEUS”
O longa-metragem “Cidade de Deus” trabalha com uma unidade de espaço muito clara. As trajetórias dos personagens têm paralelo com o espaço. A Cidade de Deus passa de um ambiente quase rural, nos anos 60, para uma favela escura e labiríntica, no final dos anos 70. Poucas seqüências se passam fora da favela. Enquanto isso, a maior parte dos personagens se vê envolvido na guerra do tráfico.
Quanto aos motivos temos, por exemplo, o da religiosidade, trabalhado ao longo do filme. Isto pode ser demonstrado quando a narração de Buscapé[30] relaciona os eventos da terceira fase do filme usando termos religiosos (“o que era um purgatório… agora virou um inferno…”- referindo-se à guerra entre Pequeno e Galinha). Um outro comentário de Buscapé que se vale deste tema é quando ele afirma que Pequeno é o “feioso do mal” contra Galinha, que é o “bonitão do bem”. Um mundo extremamente moralista, dividido entre o Bem (ao qual se associa a beleza, a bondade e a pureza) e o Mal (associado ao feio, disforme, ao arrogante e presunçoso), se integra ao tema da religião.
Outro motivo que podemos destacar no filme é o da morte como um ciclo. No filme, as trajetórias dos garotos envolvidos com o crime e o tráfico de drogas parecem seguir um ciclo, no qual estes garotos amadurecem e morrem muito rapidamente[31]. Alguns dos personagens que integram o crime em “Cidade de Deus” parecem atender ao seguinte procedimento: eles entram em cena, conhece-se um tanto deste personagem enquanto ele segue seus objetivos, até que o personagem morre. Quando o personagem se nega ou renega de alguma forma a viver do crime, é morto ou por uma “cobra criada” ou quase casualmente (a ponto de ficar a impressão de que há uma instância realmente divina na Cidade de Deus). Como o filme se passa, cronologicamente, em três épocas distintas, diferentes personagens parecem repetir esta lógica.
Quando falamos em “cobra criada”, um exemplo é o caso de Bené e Neguinho. Este é um dos traficantes mais espertos de Cenoura (segundo nos informa Buscapé), e por quem assume a Boca dos Apês. Mais tarde, Pequeno toma a Boca dos Apês e deseja matar Neguinho, mas Bené, à sua maneira, o impede. Depois, Zé Pequeno expulsa Neguinho da favela, após este matar próximo da Cidade de Deus. Novamente Bené salva Neguinho, mas desta vez Pequeno repete uma expressão presente no livro: “quem cria cobra amanhece picado, morou?”. Neguinho, disposto a se vingar de Zé Pequeno, entra armado no baile de despedida de Bené. Num momento em que Pequeno discute com Bené, este recebe acidentalmente um tiro de Neguinho e morre.
CONCLUSÃO
Através deste trabalho, demonstramos que uma análise da narrativa no atual panorama audiovisual não só é possível como necessária. É possível e necessário analisar “Cidade de Deus”, mas sua aplicação é viável a qualquer outro produto audiovisual, como “Quem Quer Ser Um Milionário?”, por extensão.
Retornaremos a este filme em outro momento, mas fica aqui uma nota: apesar das semelhanças entre os dois filmes (a fotografia, o tema), há diferenças importantes entre eles do ponto de vista narrativo. Por exemplo: o filme de Danny Boyle é centrado em um protagonista bem evidente (Jamal), enquanto “Cidade de Deus” conta com um narrador (Buscapé) que divide a hierarquia da história com outros personagens mais relevantes, sendo o mais central deles Zé Pequeno.
Mostrou-se, aqui, como é perfeitamente aceitável que produtos como o longa “Cidade de Deus” sejam vistos pela ótica das técnicas e teorias sobre roteiro. Demonstramos, assim, a importância da análise da narrativa, do mesmo modo que são importantes as análises convencionais, tais como as sociológicas, estruturalistas ou estéticas.
Com isto, procuramos contribuir para o desenvolvimento dos estudos da narrativa. É um dado fundamental compreender a narrativa para compreender a produção audiovisual contemporânea.
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[1] “Cidade de Deus”: longa-metragem dirigido por Fernando Meirelles, co-dirigido por Kátia Lund, escrito por Bráulio Mantovani, em 2002. O filme é inspirado no livro de Paulo Lins.
[2] “Slumdog Milionarie”, direção de Danny Boyle, co-direção de Loveleen Tandan, roteiro de Simon Beaufoy e Vikas Swarup; Reino Unido, 2009. No momento da redação deste artigo o filme acumula uma bilheteria de mais de 221 milhões de dólares em todo mundo, tendo custado 15 milhões, um valor captado internacionalmente e considerado baixo para o mercado.
[3] “81st Annual Academy Awards”. O prêmio é oferecido pela Academy of Motion Picture Arts and Sciences. “Quem Quer Ser Milionário?” recebeu os seguintes prêmios Oscar: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Fotografia, Melhor Edição, Melhor Canção, Melhor Música Original e Melhor Som.
[4] Ver o artigo “Índia critica “Quem Quer Ser Milionário?” por mostrar “pornografia da miséria” em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u508087.shtml, de onde o termo foi extraído por nós.
[5] BENTES, Ivana. O copyright da miséria e os discursos sobre a exclusão. Cinemais
(Revista de Cinema e Outras Questões Audiovisuais- n.o 33- Cinema de Poesia). Rio de
Janeiro: Aeroplano, 2003.
[6] Do ponto de vista narrativo, podemos dizer que “Cidade de Deus” é um longa-metragem com diversas linhas narrativas centrais (multiploting), dividido em 3 fases temporais que mostram a evolução do tráfico na favela de Cidade de Deus. O longa conta com um amplo painel de personagens, dos quais quatro deles se destacam hierarquicamente: o criminoso dos anos 60 Cabeleira; o traficante que domina a favela, Dadinho/ Zé Pequeno; seu inimigo Mané Galinha, que entra para o crime para vingar-se de Pequeno e o narrador Buscapé, um garoto comum, aspirante a fotógrafo, que observa e convive com estes personagens. A narração de Buscapé conecta eventos diferentes das 3 fases temporais, abre digressões e cria ligações temáticas entre personagens e eventos.
[7] Um bom exemplo de livro teórico a respeito de roteiro é ALLRATH, Gaby &, GYMNICH. Narrative Strategies in Television Series. Londres: Palgrave Macmillian, 2005. Dos manuais técnicos o que nos parece mais abrangente é David & Edward MABLEY. Teoria e Prática do Roteiro. Globo, RJ,1996. Os elementos ou procedimentos narrativos descritos por Mabley e Howard reaparecem em diversos manuais. Assim, um mesmo conceito pode ter definições semelhantes, mas nomes e autores diferentes. Exemplo destas semelhanças: o dispositivo conhecido como linha narrativa (THOMPSON) que pode ser definida como “uma linha de desenvolvimento de uma situação dramática” [de um personagem] (CANNITO & SARAIVA, p. 90, 2003). Há diversas outras definições possíveis. Podemos, com pouca ou nenhuma modificação, chamar linhas narrativas de plot ou curva dramática (COMPARATO, p. 181,1995), ou ainda arco dramático.
[8] HOWARD, David & Edward MABLEY. Teoria e Prática do Roteiro. Globo, RJ,1996, p.105
[9] Uma definição de conflito seria a luta de um ou mais personagens que, motivados, perseguem um ou mais objetivos e, assim, entram em confronto com algo ou alguém. Ver PALLOTTINI, Renata. Introdução à Dramaturgia. São Paulo: Ática, 1998, p. 16-17.
[10] Utilizamos a sigla “CDD” para identificar o longa-metragem “Cidade de Deus”
[11] MANTOVANI, Bráulio. Arquivos de trabalho. 2000, p.1
[12] Podemos ler nos arquivos de trabalho do roteirista Mantovani: “Por que BUSCAPÉ como narrador? Primeiro porque BUSCAPÉ é um sobrevivente. Segundo porque ele é um dos poucos personagens que consegue escapar à insânia. Terceiro: ele é FOTÓGRAFO. E isso abre a possibilidade de usarmos um recurso visual que pode dar concisão à narrativa sem mutilar as histórias: o STILL. Se BUSCAPÉ não é protagonista de nenhuma grande história do livro, ele pode ser, no filme, TESTEMUNHA OCULAR dos fatos. É claro que ele não vai narrar apenas o que viu. Ele não precisa estar presente às ações. Mas ele tem fotos de todos os personagens que entram e saem das histórias. Sua vocação para fotógrafo vem da infância. (…).”. MANTOVANI, Bráulio. Arquivos de trabalho, 2000, p. 2.
[13] Em: www.o2filmes.com. A opinião dos diretores está expressa em depoimentos
disponíveis nesta página.
[14] O conceito de biografia que Bentes aplica em seu significado mais genérico (sinônimo de história, de background), mas para o roteirista o termo tem um significado mais técnico (biografias são resumos que definem as características físicas e psicológicas do personagem e contam sua história pregressa – sua formação, sua infância). Por exemplo, a biografia de Buscapé tem muito em comum com a do irmão dele Marreco, que é um dos ladrões do Trio Ternura.
[15] FIELD, Syd. Manual do roteiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995, p. 3
[16] THOMPSON, Kristin. Storytelling in the New Hollywood. EUA, Harvard University Press, 1999, p. 27
[17] Field, Thompson e outros citam uma entrevista que Ernest Lehman, roteirista de Intriga
Internacional (North by Northwest, EUA, 1959), dirigido por Alfred Hitchcock rebate um
comentário de que o filme escrito por ele teria 10 atos.
[18] COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. RJ: Rocco, 1995. p. 168
[19] SARAIVA, Leandro; CANNITO, Newton . Manual de Roteiro – ou Manuel, o primo pobre dos manuais de roteiro. São Paulo: Conrad, 2004.
[20] Segundo Field, o filme hollywodiano normal, com 120 minutos, separa o filme em três partes: Ato I, os 30 minutos iniciais do filme, no qual se tem o início da ação dramática, incluindo apresentação; Ato II, correspondente aos 60 minutos seguintes do filme a partir do fim do ato I, é conhecido como confrontação, no qual o personagem central enfrenta uma seqüência de obstáculos que o impedem de alcançar seu objetivo; e o Ato III, a partir de 90 minutos de filmes, onde o conflito do protagonista alcança uma solução. Ver FIELD, Syd. Manual do roteiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995, p. 3-7.
[21] ROSENFELD, Anatol. Teatro Épico. São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 17. Segundo Anatol, o épico é “toda obra – poema ou não – de extensão maior, em que um narrador apresentar personagens envolvidos em situações e eventos”. No audiovisual, podem ser considerados recurso épicos o uso da voz de um narrador, de letreiros e de outros procedimentos que sugiram comentários (como uma citação musical).
[22] Podemos ler em MANTOVANI, 2000, P. 2: “Com Busca-Pé narrando, podemos ir e vir no tempo segundo as necessidades do roteiro. Acho que a espinha dorsal do livro ainda é a cronologia. Mas com momentos de ruptura. O vaivém presente-passado é fundamental”.
[23] A partir da análise da divisão de Syd Field, em comparação com a estrutura de filmes realizados até a década de 90, Thompson chega a uma divisão em 4 atos flexíveis (que podem variar em número e extensão). Seriam eles: armação (set up), complicação, adensamento e clímax (com ou sem epílogo). Ver THOMPSON, Kristin. Storytelling in the New Hollywood. EUA: Harvard University Press, 1999, p. 28-29
[24] O roteiro multiploting oferece diversos desafios ao roteirista, como ter que lidar com diversas linhas narrativas diferentes dentro de uma mesma cena. “CDD” faz isso habilmente; ver como exemplo a seqüência 8 (na “pelada”, Buscapé nos apresenta os personagens, a si mesmo e introduz o assalto ao caminhão de gás).
[25] HOWARD, David & Edward MABLEY. Teoria e Prática do Roteiro. Rio de
Janeiro: Globo, 1996. p. 99
[26] Para unidade de ação, ver ARISTÓTELES, “Poética” in: Poética Classica. São Paulo: Cultrix, 1981. p.247-248. Para as outras unidades, ver p. 235 e p. 305 (onde sugere que a peça deve ser centrada em um só personagem, uma só época [tempo e espaço], ou uma só ação).
[27] “Nashviille”, escrito por Joan Tewkesbury, dirigido por Robert Altman, EUA, 1975. O filme se propõe a contar a história do country music, focando nos habitantes da cidade que nomeia o filme.
[28] “Rashomon”, escrito por Akira Kurosawa e Shinobu Hashimoto, a partir de contos de Ryunosuke Akutagawa, dirigido por Akira Kurosawa, Japão, 1950. O filme administra 4 pontos de vistas diferentes a respeito de um crime, sem que saibamos exatamente qual deles é verdadeiro.
[29] Podemos encontrar análises de motivos em THOMPSON, Kristin. Storytelling in the New Hollywood. EUA: Harvard University Press, 1999. p. 130. Neste trecho do livro, Thompson analisa o uso virtuosístico de temas no filme “O Silêncio dos Inocentes” (“The Silence of the Lambs”, escrito por Ted Tally a partir do livro de Thomas Harris, com direção de Jonathan Demme, 1991).
[30] Por si só a narração de Buscapé tem uma função unificadora, pois aproxima eventos separados no tempo ou na ação, estabelecendo a estrutura do filme.
[31] NAGIB, Lúcia. A utopia no cinema brasileiro: matrizes, nostalgia, distopia. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p. 150