João Henrique Tellaroli Terezani e José Eduardo Ruiz são graduandos em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
“(…) a beleza de um plano está naquilo que é resto,
no que acontece fortuitamente, antes ou depois da ação.
São as esperas, o tempo morto, em que quase nada acontece.”
(João Moreira Salles)
“Assistindo ao material bruto, fica claro que tudo
deve ser visto com uma certa desconfiança.”
(João Moreira Salles)
O conceito de verdade, tal qual é compreendido pela sociedade contemporânea, é derivado da filosofia Iluminista que surge no século XVII em contraposição ao domínio das instituições hierárquicas, como Igreja e Nobreza durante a Idade Média. Os iluministas propuseram a valorização da razão acima da superstição como única forma de livrar as sociedades das “trevas” que acometiam a vida e a percepção humana.
O Século das Luzes influenciou a contemporaneidade quanto à incessante busca pela razão – única saída contra a tradição. A razão, tão cara aos Iluministas, é argumentada por eles a partir do empirismo e da certeza. O “legado iluminista”, como escreve Beatriz Jaguaribe, teve um papel relevante na construção da sociedade atual:
Legado este (…) que visava à emancipação do homem, à domesticação da natureza, ao questionamento da tradição, à crença no progresso e na razão científica e à aposta num futuro diverso do presente (2007, p. 18)
O resultado desta “racionalização” do mundo provocou o desencantamento dos homens quanto ao mágico e fantasioso, que os levou ao ceticismo do pensamento. Sobre essa característica da validação da verdade acima da tradição, pode se constatar que “(…) a proposta inovadora do projeto moderno (…) modificou as concepções sacras do mundo e abalizou o pensamento racional como o instrumento operacional e interpretativo do social” (Idem).
Ao mesmo tempo em que o “pensamento social” sofria reformulações ao passar pelos condicionamentos iluministas, Max Weber analisa a racionalização do homem como fomentadora desta visão de mundo desencantada. É criada por ele a metáfora da “gaiola de ferro” (Idem, p. 20), através da qual o escritor propõe que a negação do místico e misterioso do mundo, a fim de dar vazão à percepção “moderna” de mundo (baseada no controle da razão, pragmatismo e disciplina), resulta no desencantamento pelos seres humanos.
A valorização da razão permitiu à sociedade estabelecer uma forte relação de dependência do real, uma vez que era esta a fonte das respostas que os homens buscavam (e ainda buscam) para construir suas verdades. Nietzsche considera esta dependência com o real como uma “vontade de verdade” (FELDMAN, 2008, p. 241) (expressão criada por ele para designar o apreço da sociedade moderna e contemporânea para com a verdade). Segundo Gustavo Camargo, pesquisador da obra de Nietzsche:
A vontade de verdade é a busca metafísica por um fundamento último para o conhecimento, é acreditar que através da razão e das construções intelectuais se atinge uma espécie de verdade primordial (CAMARGO, 2008, p. 98).
É a partir desta necessidade do real que a sociedade contemporânea se relaciona com a produção artístico-cultural atual. As noções do que é realidade/verdade é, há tempos, enquadrada sob as rédeas do realismo que pretende narrar o mundo a partir da verdade cotidiana dos fatos. O realismo mantém atualmente uma relação com os produtos artísticos baseada em construções embevecidas de realidade – realidade esta possível através da razão, questão tão cara ao Iluminismo -, para propor o real em seus produtos.
O cinema, inserido na categoria “produtos artísticos” a partir de seus filmes, também apresenta o apreço ao real que esta “sociedade do espetáculo” (DEBORD, 2000) reitera a cada filme. Pode-se observar a partir do século XIX a ascensão do Realismo como escola artística, através da qual a realidade do cotidiano passou a ser o objeto das produções culturais (livros, pinturas, peças de teatros, filmes, etc.). Almeja-se dentro dessa perspectiva racional, extrair do mundo das experiências comum aos homens toda a singularidade artística que os escritores pretendiam em seus livros, os pintores em suas telas, e assim sucessivamente. O texto, a descrição, a imagem, a representação eram fornecedores de veracidade. O produto artístico passou a ser construído a partir da noção de verdade. Os códigos do Realismo passam a ser cada vez mais naturalizados, uma vez que é creditada à representação o papel de equiparar as experiências reais com as construções artísticas. Sobre a “representação do real”, Beatriz Jaguaribe afirma: “Na contemporaneidade, nota-se o esgotamento da vanguarda, a consolidação plena dos meios de comunicação e uma busca pelo ‘real’ em sociedades fortemente midiatizadas” (JAGUARIBE, 2007, p. 35).
Recentemente, os meios audiovisuais têm cada vez mais explorado uma linguagem que se pretende mais próxima ao real, capaz de transmitir impressões de realismo. É relevante ressaltar a recente e comum “dramatização da realidade” (FELDMAN, 2008, p. 235), questão também discutida por Jean-Claude Bernardet quando ele se refere às “pessoas personagens” (BERNARDET, 2005, p. 149). Frente a uma “espetacularização da vida pessoal” (Idem), o cinema assim como todas as mídias audiovisuais contemporâneas passam são palco de representações do real.
Este movimento da produção audiovisual, nesta busca pelas experiências reais, torna-se algo recorrente nas mídias. Surgem reality-shows, imagens amadoras em telejornais, flagrantes policiais, filmes com apelo realista, etc., que buscam acima de tudo ressaltar o índex destas imagens audiovisuais.
Relacionada à questão dessa nova linguagem audiovisual que surge no século XX, que pretende carregar a imagem com realidade, surge a questão da re-significação da transparência no cinema. É como se os valores clássicos fossem invertidos e todo o empenho de uma equipe em planejar e conduzir situações se tornasse a demonstração nítida de um completo distanciamento de uma verdade orgânica, que respira e está ali. Sobre isso Ilana Feldman comenta:
Vale notar que, contemporaneamente, o conceito de transparência é radicalmente distinto do que fora para o cinema clássico e contra o qual lutaram os cinemas modernos, que pleiteavam a opacidade da imagem a partir de procedimentos reflexivos. Hoje, a reflexividade e suas marcas – como rastros da filmagem, presença da equipe, tematização do dispositivo, etc. – torna-se condição da própria transparência (2008, p. 236).
O cinema documental contemporâneo, assim como outras mídias, liberta-se do modelo de narrativa clássica para transpor aos seus espectadores a noção de veracidade das imagens que transmitem. A veracidade da imagem passa a ser construída a partir da “impressão de improviso, de urgência, de ‘precariedade’ formal” (FELDMAN, 2008, p. 237).
Nesse contexto em que se enquadra o cinema deste último século, frente a estas novas formas de narrar histórias, e desta necessidade do real enraizada na sociedade atual, pode-se observar a produção de filmes que não mais se formulam baseados no clássico, mas sim nesta moderna tentativa de importar a realidade do mundo das experiências humanas para as telas.
Desta maneira, assim como afirma Beatriz Jaguaribe: “O paradoxo do realismo consiste em inventar ficções que pareçam realidades” (2007, p. 16), o realismo das telas atualmente busca nas personagens “reais” do mundo sua fonte de inspiração. São as “pessoas comuns” que fornecem o material para os livros, tele-reportagens, vídeos cibernéticos, filmes, etc. “Pessoas comuns” deixam de o ser para tornarem-se personas dentro deste esquema contemporâneo de apelo realista. O que Jean-Louis Comolli caracteriza como a “(…) crescente roteirização das relações sociais e intersubjetivas”. (2008, p. 169).
Dessa forma, encaramos o documentário Santiago (João Moreira Salles, 2007) como uma grande busca pelo real, orientada por uma ousada exposição da tênue linha entre a realidade e a ficção. João Moreira Salles exercita, desde o início do filme, uma completa “desorientação” da tradição documentária, no sentido de evidenciar recorrentemente o planejamento dos planos e a própria estruturação da maneira como esses planos estavam inseridos no roteiro do documentário. Por vezes a narração em voz off, que representa o próprio João Moreira Salles (na verdade, é uma voz que pertence ao seu irmão Fernando Moreira Salles), atua no sentido de revelar as intenções do diretor em relação àquilo que se constrói na tela. Informações sobre a captação dessas imagens; descrições dos planos produzidos pela equipe e que seriam posteriormente inseridos na montagem; colocações arrependidas do próprio diretor a respeito de como foi filmada determinada cena: “Percebi que alguém tocava o piano que ficava no salão no início dessa galeria, que agora me dou conta, que talvez devesse ter filmado à noite” (narrador do filme). O filme todo é modelado através dessas atípicas revelações.
Essa constante exposição do processo é notadamente parte de uma “intensificação e explicitação auto-reflexiva dos artifícios, muitas vezes em nome de um ‘choque do real’, e que acabam por criar novas ilusões de transparências” (FELDMAN, 2008, p. 240). João Moreira Salles explica que, em 1992, quando as imagens do mordomo Santiago foram captadas, a intenção do filme era completamente outra: um documentário alinhado com a tradição documental sobre o mordomo da casa da Gávea, Santiago. Oito anos após a desistência de realizar o primeiro filme, o diretor percebe a possibilidade de promover uma ruptura com a produção documentária clássica e compromissada com a verdade – estrutura na qual ele não mais acredita, como afirma em depoimento sobre o filme. Ao analisar as imagens do material bruto, percebe a desconstrução do documentário, tal qual o abalo que Jean Louis Comolli nos propõe como a “dialética da crença e da dúvida” (COMOLLI, 2008, p. 171).
A personagem do documentário, o mordomo Santiago é inserido no que Jean-Claude Bernardet chama de “uma espetacularização da vida pessoal” – termo já trabalhado neste texto e que retomamos aqui para analisar o papel da “pessoa-personagem”:
Essas pessoas-personagens obedecem a uma construção dramática. Os personagens têm objetivos, os personagens enfrentam obstáculos (que eles superam ou não), alcançam seus objetivos ou não, exatamente como nos filmes de ficção, e tudo isso organizado numa forma narrativa. Então, creio que podemos falar de uma vida pessoal que se molda conforme as regras da ficção. Ou de uma ficção que se alimenta diretamente da vida pessoal; eu diria uma ficção que co-opta a vida pessoal (BERNARDET, 2005, p. 149)
Não se pode negar que, para isso, João Moreira Sales acaba se expondo como um documentarista que interferia em diversos momentos durante as gravações com Santiago, dirigindo até mesmo a posição física com que este deveria se colocar. Com relação a essa situação, o diretor até mesmo lamenta para o espectador (através da narração) por, em determinado momento do filme, não ter ligado a câmera para o registro daquilo que o mordomo gostaria de acrescentar à sua fala: “E, no fim, quando Santiago tentou me falar do que lhe era mais íntimo, eu não liguei a câmera” (voz over do narrador do filme).
Por vezes, traços da presença de uma equipe de filmagem são revelados de forma contundente no filme: fato de ligação explícita com a re-significação da transparência fílmica. São braços e pernas que entram e saem de quadro, a presença do batedor de claquete, algumas pessoas que colocam e definem o posicionamento de determinados objetos que estarão presentes no enquadramento, etc.
Em certa parte do filme, o narrador questiona a legitimidade de certas ocorrências como a ação do vento no varal, na piscina, o cair das folhas da árvore. “Nesse dia ventava realmente? Ou a água da piscina foi agitada por uma mão fora de quadro? Terá sido o vento que balançou estes cabides?” (voz over do narrador). São as perguntas que ocupam a banda sonora, enquanto tais imagens nos são projetadas na tela; questionamentos que rompem com a veracidade do documentário e com a verdade que o espectador espera do filme.
Ainda questiona-se a roteirização dentro do filme documentário, uma vez que se explicita o trabalho do diretor sobre sua personagem, somado aos questionamentos do mesmo, quebrando-se novamente a confiança sobre a realidade das imagens. Construir um plano, moldando-o esteticamente, é algo que acaba por desconstruir a ideia de realidade que as imagens de um documentário tendem a estabelecer.
Em Santiago, cada quadro é trabalhado esteticamente de forma exaustiva, até que se satisfaça a vontade do diretor em relação ao ambiente caseiro no qual Santiago se insere (em seu próprio apartamento) ou em relação às condições em que se encontram os cômodos do casarão dos Moreira Salles, também filmado.
Na parte final do filme, João Moreira Salles assume que sua decupagem e os planos do filme são muito influenciados pelo trabalho de Yasujuro Ozu (cineasta japonês marcado por confeccionar planos muito expressivos), ressaltando ainda mais a já descarada interferência do documentarista para com o objeto documentado e suas representações.
Desta maneira, as sucessivas alterações notadas ao longo da história na relação do homem com a razão e a importância social da verdade e da lógica verossímil tiveram influências decisivas nos mais variados setores da sociedade como um todo. E também reflete-se aqui, no filme em questão. No que diz respeito à produção cinematográfica, a tradição documental lança olhares sobre a possibilidade de registro do real desde as primeiras imagens documentais registradas. Tal histórico documental sempre foi regido pelos parâmetros de transparência e opacidade a fim de atingir possibilidades de legibilidade das imagens capturadas e exaltadas como produzidas pela realidade. O que este artigo tende a concluir é que tais condições de captura e fruição das imagens extraídas da realidade, bem como a consideração de uma transparência expositiva fílmica diretamente ligada à tradição documentária e seu compromisso com a verdade, sofreram rupturas latentes nas produções cinematográficas da escola documentária.
Santiago, documentário nacional escrito e dirigido por João Moreira Salles, é revelador dessa ruptura. A exposição das estratégias de um realizador documentarista ao lidar com seu objeto de trabalho atinge a relação estabelecida entre o realizador, seu personagem e o espectador, revelando a manipulação dos fatos filmados.
João Moreira Salles se coloca no banco dos réus ao mostrar-se dirigindo um personagem de forma imperativa, eliminando espontaneidades, definindo e modificando convenientemente a caracterização do espaço fílmico, ditando as normas do discurso, calculando os resultados. A pertinência da ideia de transparência enunciada é completamente re-significada através de mutações radicais no conceito: traços da existência de uma equipe de filmagens, questionamentos diretos através da voz over sobre a legitimidade daquilo que se vê, etc.
Dessa forma, percebe-se uma eloquente ruptura do modo de se pensar documentários em relação à tradição documental, reformulando-se noções básicas da exposição da realidade e criando-se uma consequência para o processo de fruição: a completa relativização de tudo o que se vê e se ouve, a quebra da indubitável legitimidade da obra documental. O filme seria um documentário sobre o mordomo Santiago, mas é também, além disso, uma questão acerca do “fazer-documentário”.
Referência bibliográfica:
BERNARDET, Jean-Claude. “Documentários de busca: 33 e Passaporte húngaro”. In: MOURÃO, Maria Dora; LABAKI, Amir (orgs.). O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
CAMARGO, Gustavo Arantes. “Sobre o conceito de verdade em Nietzsche”. Revista Trágica – 2° semestre de 2008, n° 2, p. 93-112. ISSN 1982-5870
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 1997.
FELDMAN, Ilana. “O apelo realista: uma expressão estética da biopolítica”. In: HAMBURGER, E. ET AL (org.) Estudos de Cinema Socine. São Paulo: Fapesp/Annablume, 2008.
JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real: estética, mídia e cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
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