Serras da Desordem como Oposição ao Espetáculo

Lucas Pelegrino e Mariana Martins são graduandos em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

O filme Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, conta a história de Carapiru, um índio que escapou de um massacre da sua aldeia e percorreu sozinho o interior do Brasil, de 1977 a 1988, até ser encontrado por fazendeiros e localizado pela FUNAI, que o leva de volta a tribo. Tal acontecimento fora extremamente divulgado na época pelas mídias, inclusive por jornais ou mesmo pelo programa Globo Repórter (como o próprio filme demonstra). O fato é tratado como espetacular pelas reportagens: além de sobrevivente, descobre-se o filho de Carapiru no índio tradutor que fora enviado para traduzir seu “tupi arcaico”.

Porém, o filme não traz uma abordagem espetacularizada do fato espetacular. Entretanto,  a televisão e os jornais acompanharam e reproduziram toda a história do índio Carapiru seguindo a lógica de uma sociedade do espetáculo apontada por Debord (2000). Segundo a autora Ilana Feldman, a tentativa de simular um espetáculo visando “um acontecimento real” ocorre segundo os princípios do capitalismo imaterial ou cognitivo, cujo núcleo da produção econômica é a própria vida, o conhecimento, a criatividade, o imaginário, a comunicação e a informação.

O filme Serras da Desordem, que não foi exibido comercialmente, sendo visto apenas no circuito de faculdades e festivais de cinema, não passa por um comprometimento com uma dimensão mercadológica. Em entrevista concedida a Eugênio Puppo e Vera Haddad, Tonacci relatou sua experiência com os índios:

“o contato com o ‘universo indígena’ havia sido motivado, inicialmente, por um projeto utópico, de busca pelo ‘olhar do outro’. A idéia era encontrar uma possível nova visão da realidade” (MELO, 2008, p.25).

Segundo Tonacci, a diferença ocorreria no “condicionamento” a que cada realidade nos força. Aqui, a percepção humana do real adquire caráter relativo, aproximando-se de uma proposta de cinema moderno e de um discurso opaco (XAVIER, 2005).

A diversidade dos registros audiovisuais, utilizando-se de diferentes tipos de material sensível, tais como película em preto em branco e vídeo digital colorido, é um elemento que se dá nesse sentido na medida em que aponta para uma multiplicidade de olhares e uma fragmentação no registro que costumeiramente é apresentado em apenas um formato ou um registro: a alternância causa desorientação, evidenciando o dispositivo.

Utilizando-se de imagens documentais e trechos de telejornais, Serras da Desordem provoca um “choque do real” (JAGUARIBE, 2007), o que torna o filme paradigmático tanto pela mistura de suportes tecnológicos quanto pela vinculação a imagens que aparentemente pré-existem ao filme.

A utilização de imagens de arquivo também pode provocar o “estranhamento”. Um exemplo é a inserção do plano de um gato que corre rapidamente para fora do plano quando a cozinheira da fazenda que acolheu Carapiru olha rapidamente para baixo. Ou mesmo a inserção de um quadro granulado da Santa Ceia quando Carapiru almoça com a família de fazendeiros.

Há momentos em que se busca [nas imagens de arquivo] a complementaridade, o fio narrativo linear, a harmonia na sucessão dos planos; em outros trechos, verifica-se o predomínio do choque, o desequilíbrio proposital na relação entre os universos ficcionais e documentais, tornando-se mais evidente o artifício da montagem (MELO, 2008, p.35).

O exemplo contrário seria a chegada de Carapiru a tribo que se dá juntamente com a reportagem do Globo Repórter, que registra o fato. Aqui, a utilização da reportagem complementa o que a narrativa do filme mostra: Carapiru, após tudo que passou, volta às origens acompanhado por uma equipe de televisão registrando o que seria o final de uma história que acabara bem. A reportagem, então, cessa no momento em que o índio é recebido de volta com alegria pela tribo.

Porém, o filme vai mais longe: continua a retratar o cotidiano da tribo. Novamente, a imagem bucólica e alegre dos índios tomando banho, ora antes desconstruída, é retomada. Aqui, as imagens perdem o valor de espetáculo – Carapiru retornara a sua tribo, não haveria nada mais a ser mostrado. Mas o filme persiste no “depois disso”, ao invés de se conter no “final feliz”. Não há mais narração de reportagem, somente o som da mata e de uma tribo que agora veste roupas. A agitação da cidade é substituída pela vida na selva.

Logo, volta a questão da “outra realidade” que norteia todo o filme e é responsável pela busca que ele se propõe na articulação de múltiplas visões e sentidos a serem apreendidos e a fragmentação e conseqüente não espetacularização do mesmo. O efeito de opacidade é conseqüência dessa proposta vinculada à idéia de cinema moderno, contrapondo-se a uma visão de mundo norteada pelo rápido fluxo de informação e tecnologia. Tonacci diz:

“Porque eu vivo num universo que me condicionou à linha reta, à superfície plana, à cor única (…). Quem vive lá [na floresta] desde a infância, a única linha reta que viu foi a corda do arco (…)” (MELO, 2008, p.26)

Nesse sentido, o discurso da opacidade que é instaurado na obra pode ser repensado como recurso que colabora para alcançar essa humanidade condicionada diferentemente, que necessita ser vista por uma ótica diferente da linguagem clássica domesticada, ou mesmo da transparência¹ vinculada a uma impressão de autenticidade do “apelo realista das renovadas narrativas do audiovisual contemporâneo” (FELDMAN, 2008, pág.241), sendo essa última vinculada a uma idéia de espetacularização.

O filme apresenta sua especificidade ao misturar estilos, ora sem coordenadas precisas, trazendo um discurso no qual oposições tradicionais são problematizadas: natureza e cultura, rural e urbano e campo e cidade. Porém, Serras da Desordem aborda essas questões por um olhar que as decompõe e as redefine, levando ao espectador uma sensação de ter apreendido um novo olhar, que o leva a refletir sobre o mundo e as várias formas de apreensão e construção da realidade.

¹ o conceito de transparência no cinema moderno é distinto do que fora para o cinema clássico: hoje, a reflexividade e suas marcas -como rastros da filmagem, presença de equipe, tematização do dispositivo- torna-se condição da própria transparência

Bibliografia:

XAVIER, Ismail. As artimanhas do fogo, para além do encanto e do mistério. In: CAETANO, Daniel (org.). Serras da Desordem. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2008.

MELO, Luís Alberto Rocha. O lugar das Imagens. In: CAETANO, Daniel (org.). Serras da Desordem. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2008.

Cohn, Clarice. Reflexões sobre Serras da Desordem. In: CAETANO, Daniel (org.). Serras da Desordem. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2008.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.

XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: opacidade e transparência. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

FELDMAN, Ilana . O apelo realista: Uma expressão estética da biopolítica. 2008. (Apresentação de Trabalho/Comunicação).

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