A ficção de busca: Viajo porque preciso, volto porque te amo

Maria Cristina Couto e Michelle Marcelino são graduandas em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Em Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, as imagens documentais do sertão nordestino norteiam o percurso realizado por José Renato, geólogo que parte para uma pesquisa de campo do solo sertanejo com o objetivo de avaliar um possível percurso de um canal que será construído a partir do desvio das águas de um dos rios da região. À medida que a viagem avança, as diversas considerações a respeito das conseqüências da construção do canal, como a submersão de algumas cidades e o decorrente isolamento das pessoas que habitavam a região, passam a interferir no estado emocional do personagem, que enuncia a existência de um conflito amoroso, o seu fim, na verdade, como principal motivação de sua viagem.

O deslocamento é acompanhado durante toda a narrativa por uma câmera por vezes subjetiva, e por vezes aparentemente objetiva, que fornece ao espectador apenas o relato em voz over de Zé Renato. A ausência da presença física do personagem e as imagens da estrada e do sertão intensificam a carga emotiva do discurso e, consequentemente, a identificação do espectador com o mesmo. A partir das considerações feitas por Jean-Claude Bernardet em “Documentários de busca: 33 e Passaporte Húngaro” (2005), a respeito da expressão documentário de busca e das transformações que ocorrem com o personagem ao longo da viagem e em decorrência da mesma, pode-se analisar no filme questões referentes à intensificação não apenas da identificação, mas também de carga realista, no que se refere às asserções feitas sobre a realidade histórica a partir da utilização das imagens de caráter documental e do relato em voz over, aproximando assim características de narrativa ficcional às de narrativa de documentário.

A presença do personagem por meio da voz (mesmo com a ausência de sua imagem física) permite que o espectador entre em contato direto com o mesmo, como se o olhar de Zé Renato e do espectador se confundissem. A predominância do discurso em voz over intensifica a representação de realismo do filme, uma vez que o espectador pode associá-la à voz-de-deus do documentário clássico, detentora da verdade, assim como as diversas vozes do documentário moderno, como depoimentos e entrevistas, que intensificam a credibilidade do discurso. No filme, a voz de Zé Renato apresenta-se tanto como uma voz-de-deus, quanto de um depoimento de um entrevistado em uma narrativa documental, fazendo com que a identificação com o seu discurso seja imediata e que carregue consigo um caráter mais realista.

Segundo Jean-Claude Bernardet, a expressão documentário de busca (mesmo sendo considerada, segundo o autor, vaga e imprecisa) refere-se a projetos que partem de um alvo determinado, uma finalidade, que será atingida ou não, de modo que “a filmagem tende a se tornar a documentação do processo” (BERNARDET, 2005, p. 144). Esses projetos, além de caracterizarem-se pela indeterminação no processo de filmagem, possuem também “regras” de realização às quais o cineasta deve obedecer, independente dos resultados obtidos. Apesar de não se tratar de uma narrativa documentária, mas sim ficcional, Viajo porque preciso, volto porque te amo dialoga, em certo sentido, com o documentário de busca, na medida em que o percurso realizado por Zé Renato é a busca do seu afastamento do fracasso do relacionamento com Galega, partindo para o contato com o desconhecido, com o indeterminado. A indeterminação não se faz latente e o percurso não é imprevisível, já que as imagens que o espectador vê, mesmo sendo assertivas da realidade, não mostram um percurso do cineasta, mas sim do personagem. Porém, a necessidade de deslocamento, como forma de contato com o ignorado é a motivação do personagem, se aproximando da busca feita pelo “documentarista de busca”. Desse modo, a intensificação da identificação e da crença no discurso de Zé Renato pode ocorrer em decorrência da compatibilidade do personagem com o documentarista, sendo que ambos partem em busca do não conhecido. Ideia reforçada pelas imagens evidentemente documentais utilizadas na narrativa.

Nesse sentido a identificação do espectador com as imagens apresentadas permite que o mesmo realize o mesmo percurso que o personagem, além de possibilitar a lembrança de situações de sua própria memória afetiva que se relacionem com a ideia de viagem. Os longos planos de estrada remontam percursos realizados por aqueles que assistem à obra, assim como o anseio da chegada ao destino.

No que diz respeito à montagem, Bernardet considera que, ao final da captação não há mais atitude de busca ou incerteza quanto ao caminho a ser percorrido durante as filmagens ou ao resultado obtido, o que possibilita uma reordenação do material, com a finalidade da construção de um discurso, que denuncia a si próprio (considerando aqui o filme de documentário como sendo passível de manipulação como qualquer obra cinematográfica). No caso do documentário de busca, e mais particularmente nos casos citados pelo autor, 33 (2003) de Kiko Goifman e Passaporte Húngaro (2001) de Sandra Kogut, a construção de um discurso e a manipulação do material obtido nas gravações, verificadas na utilização do estilo de filme noir em 33 e pela inserção de imagens de arquivo da Hungria na obra de Kogut, são evidentes, permitindo que o espectador se afaste e tenha uma postura crítica frente ao que é mostrado e ao papel do realizador enquanto manipulador, haja vista se tratar de um discurso que faz asserções sobre a realidade histórica. Na obra de Gomes e Aïnouz, no entanto, a verificação da construção do material documental, com a finalidade de um discurso que não suspende a descrença e que é, portanto ficcional, aumenta a aproximação e a crença no discurso.

Outra característica que reforça a construção de um discurso que visa à imersão do espectador é a utilização de músicas populares na trilha do filme, que por vezes se mostra não diegética e por outras apresenta a possibilidade de ser, criando a ideia de que o personagem pode em alguns momentos estar partilhando as músicas junto com o espectador. Nesses momentos, além de ver o que ele vê também ouvimos aquilo que ele ouve no momento, afirmando a aproximação entre personagem e espectador.

O relato do personagem principal, antes de ser o relato de um geólogo que viaja a trabalho, é o relato de um homem que sofreu uma decepção amorosa, e que por isso parte em uma busca de si próprio a fim de esquecer o sofrimento pelo qual está passando. Zé Renato afirma: “fiz essa viagem pra voltar a viver”, revelando um discurso sobre a perda e a busca de reparação dessa perda. Jean-Claude Bernardet, em seu blog, faz uma série de considerações a respeito do assunto:

O sentimento que deixa VIAJO é de perda. Não é apenas a confissão de Zé Renato abandonado pela mulher amada que nos comove. O desvendamento progressivo da situação e as imagens e seu ritmo vão aos poucos nos provocando uma melancolia pela perda de não sabemos o quê, não a perda de algo, mas a perda em si, irreparável e definitiva (BERNARDET, 2010).

A viagem causa uma mudança não a partir do encontro com o outro, não há uma troca, um contato efetivo entre Zé Renato e outros personagens. O envolvimento dele com as personagens femininas não lhe causou uma transformação, a transformação veio de dentro dele, foi causada pelos lugares por onde ele passou, pelo tempo que ele esteve sozinho a pensar enquanto passava por esses lugares. Primeiro a transformação se dá com ele mesmo e depois com a relação que ele tem com o outro, permitindo a mudança de comportamento frente ao sentimento de abandono.

Viajo porque preciso, volto porque te amo apresenta-se, por fim, como uma ficção de busca. A apropriação da expressão usada por Bernardet é justificada pela presença de características próprias ao documentário, e mais precisamente ao documentário de busca, permitindo que a ausência da figura do personagem principal intensifique as características ficcionais, garantindo a identificação e a imersão da narrativa. Ao contrário do observado nesse caso de narrativa documental, a evidência da presença da montagem, ou da reconstituição da narrativa sem que o percurso realizado seja necessariamente seguido no filme de Gomes e Aïnouz, dificulta o questionamento sobre a postura do realizador ou sobre a credibilidade do discurso, possibilitando maior grau de catarse. Os métodos que “ficcionalizam” a narrativa documentária presentes no documentário de busca reforçam a possibilidade de crença no discurso da obra ficcional, aspecto intensificado por outras características do filme, como a utilização das músicas e da voz over.

Bibliografia

BERNARDET, Jean-Claude. “Documentários de busca: 33 e Passaporte Húngaro”. In: LABAKI, Amir e MOURÃO, Maria Dora. O Cinema do Real. São Paulo:            Cosac Naify, 2005.

BERNARDET, Jean-Claude. “Viajo porque preciso, volto porque te amo – 5”. <www.jcbernardet.blog.uol.com.br/cinema/> acessado em 28/05/2010.

RAMOS, Fernão. “Fundamentos para uma teoria do documentário”. In: __________ Mas afinal…O que é mesmo o documentário? São Paulo: Senac, 2008. p19-55.

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