Alternativas de produção com baixo orçamento: o caso de O Invasor

Alessandra Brum é doutoranda em cinema pelo Programa de Pós-graduação em Multimeios, Instituto de Artes/UNICAMP, desenvolvendo a tese “O tempo subjetivo. A recepção da crítica brasileira a Hiroshima mon amour de Alain Resnais”. O Invasor foi tema de sua dissertação de mestrado.E-mail: alesbrum@yahoo.com.br

——————————

O filme O Invasor (2001, 97 min) é o terceiro longa-metragem do diretor Beto Brant, que estreou neste formato com Os Matadores (1997, 90 min) e em seguida realizou Ação Entre Amigos (1998, 76 min). Brant faz parte do que se convencionou chamar “geração anos 90”, cineastas que iniciaram suas trajetórias no formato de curta duração como Carla Camuratti, Eliane Caffé, Tata Amaral, Lírio Ferreira, Paulo Caldas, entre outros, e fizeram suas estréias no longa-metragem após o desastroso governo de Fernando Collor de Mello, que pôs fim à política de incentivo ao cinema nacional extinguindo a Embrafilme. Com o impeachment de Collor e a posse do novo presidente, Itamar Franco, uma série de medidas contribuiram decisivamente para alavancar a produção do longa-metragem no Brasil, dentre elas o Prêmio Resgate e a aprovação no congresso nacional da Lei do Audiovisual (Lei nº 8.685/93).

Os frutos começaram a ser colhido em 1995, com significativas produções como O Quatrilho, de Fábio Barreto, Carlota Joaquina, de Carla Camuratti e de Walter Salles Jr. e Daniela Thomas Terra Estrangeira, que chamaram a atenção do público e da crítica. Esse momento de produção ficou conhecido como cinema da retomada, conceito amplamente difundido entre teóricos e jornalistas para caracterizar certa regularidade na produção cinematográfica brasileira.

Em continuidade à política de incentivos do governo, em 2000, a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura promove o concurso “Programa Cinema Brasil” para a realização de filmes considerados de baixo orçamento, ou seja, com recursos de até um milhão de reais, sendo o roteiro de O Invasor contemplado pelo Programa.

Orçado inicialmente em dois milhões de reais, O Invasor precisou passar por adequações para que fosse realizado dentro das limitações orçamentárias impostas pelo “Programa Cinema Brasil”. A produtora Drama Filmes[1] recebeu do Programa trezentos e oitenta mil reais, captaram, pela Lei do Audiovisual, quatrocentos e vinte mil reais junto à BR Distribuidora e Fininvest, que assinam os créditos do filme como patrocinadoras, e duzentos mil de contrapartida foram trocados por serviços das empresas Tibet Filmes, Europa Filmes, Videofilmes e Quanta, que assinam a co-produção. Os Estúdios Mega, através do laboratório Mega Color, com interesse em promover o seu mais novo produto, o HDTV, estabeleceu, com a produtora Drama Filmes, um pacote fixo para utilização desta nova tecnologia durante a etapa de finalização do filme.

As limitações impostas pela falta de recursos refletiram em todo o processo de realização e soluções práticas e, principalmente, criativas, surgiram para que o filme saísse do papel. A equipe de filmagem precisou ser reduzida, foram contratados profissionais com pouco nome no mercado e os figurantes eram amigos ou integrantes da equipe. Os gastos com trilha sonora, cópias para distribuição, além da promoção e distribuição do filme em circuito comercial foram resolvidos com parceria, alternativa esta encontrada em todas as etapas de produção para que O Invasor conseguisse fechar com o orçamento de um milhão e chegasse às salas de cinema.

Os produtores Renato Ciasca e Bianca Villar impuseram ainda algumas condições ao diretor Beto Brant. A primeira delas era de que as cenas deveriam ser realizadas em locações, ou seja, não criar nada em estúdio e nem mesmo transformar o espaço cenográfico das locações escolhidas. A segunda, redução dos equipamentos de iluminação. Não utilizar qualquer tipo de maquinário para operação de câmera, era a terceira condição. Em quarto, não filmar em campo / contracampo[2].

Diante das imposições orçamentárias, o diretor Beto Brant aguçou sua criatividade e buscou meios alternativos para garantir seu projeto estético. A ausência de maquinária para a movimentação de câmera fez Beto Brant construir uma narrativa inquieta e dinâmica, já que todos os planos do filme foram realizados com câmera na mão. Filmar 100% em locação deu vida e realismo ao filme. A equipe praticamente não alterou os ambientes e Beto Brant fez questão de filmar cada lugar sem alterar sua rotina de funcionamento.

A pouca interferência da produção nos locais de filmagem uniu-se a outra exigência dos produtores: a redução na utilização de equipamentos de luz. A iluminação existente nas locações nem sempre eram suficientes para que a imagem final tivesse um bom resultado técnico, mas a possibilidade de ter, no processo de pós-produção, a tecnologia do HDTV, garantiu liberdade e segurança neste quesito. Beto Brant aproveitou-se ainda do aparato do sistema digital para dar à iluminação um conceito narrativo.

Ao abrir mão do recurso do campo e contracampo[3], Beto Brant teve que organizar os planos para que pudessem ser realizados em tomadas longas. O resultado: grandes planos-sequências orgânicos e bem conduzidos, demonstrando domínio técnico e narrativo.

Esta cena do restaurante é exemplificadora dos caminhos e soluções práticas que Beto Brant encontrou ao filmar.  A câmera está atrás de Gilberto e vai permanecer ali durante todo o plano. Nesta seqüência, o contracampo não é utilizado,  mas no momento em que Ivan entra no restaurante, Gilberto é mostrado através de sua imagem refletida  no espelho decorativo do restaurante, funcionando, portanto, como outro ponto de vista.
Esta cena do restaurante é exemplificadora dos caminhos e soluções práticas que Beto Brant encontrou ao filmar. A câmera está atrás de Gilberto e vai permanecer ali durante todo o plano. Nesta seqüência, o contracampo não é utilizado, mas no momento em que Ivan entra no restaurante, Gilberto é mostrado através de sua imagem refletida no espelho decorativo do restaurante, funcionando, portanto, como outro ponto de vista.

A locação é uma boate que estava funcionando normalmente na hora da filmagem. Os fotogramas acima são exemplos  da liberdade de filmagem e do desafio de trabalhar com iluminação existente no próprio local.
A locação é uma boate que estava funcionando normalmente na hora da filmagem. Os fotogramas acima são exemplos da liberdade de filmagem e do desafio de trabalhar com iluminação existente no próprio local.

Do ponto de vista temático, O Invasor possui uma trama que nos prende do início ao fim do filme. Dois sócios de uma empresa de construção civil se desentendem com um terceiro sócio e resolvem o problema contratando um matador profissional para eliminá-lo. O homem contratado para realizar o serviço sujo resolve tirar proveito da situação e participar da vida dos dois sócios.

A temática provocadora que entrelaça as classes sociais e as aproximam pelo viés da violência e ausência de caráter provocou uma inquietação entre os críticos e espectadores. Por várias vezes a equipe de O Invasor se incomodou com a recepção fria do público em algumas exibições pelo país. Marçal Aquino comenta este fato: “A primeira vez que O Invasor foi exibido em público foi lá em Brasília, no Festival, claro que lá é a temperatura de Festival, você quer saber… começa o filme, tem uma piada que você colocou lá, ninguém riu… riram quando o Paulo Miklos entra pela primeira vez, houve uma empatia… quando apareceu o Sabotage, aplaudiram em cena aberta, eu falei: o Beto ganhou o público. Quando acabou o filme os aplausos foram protocolados, meia dúzia de aplausos…  você via as pessoas saindo, estava todo mundo chocado, impactado, sabe?… Eu percebi que isso é uma marca do filme, mesmo na pré-estréia, onde é festa. Ninguém desgosta de um filme numa pré-estréia, porque geralmente são os amigos e é uma festa, lá fora no vinho… bacana o Paulo, mas estava todo mundo muito tenso.”[4]

A recepção pouco calorosa por parte do público também foi registrada pelo crítico de cinema e editor do suplemento “Cultura” do jornal O Estado de São Paulo, Luiz Zanin Oricchio. “Ninguém é herói, ou sequer anti-herói. Nenhum personagem se oferece como modelo viável de identificação para o espectador. O final em aberto aponta para várias direções e não existe redenção em nenhuma delas… Esse final em acorde dissonante tem deixado em choque platéias que viram O Invasor em pré-estréias. Não há aplausos, não há lágrimas. Apenas perplexidade. Talvez seja o preço que o filme tem a pagar pelo retrato sem complacência que faz de um condomínio social falido” [5], diz Oricchio.

“Diante dessa visão tão negativa – ninguém presta – o espectador fica sem centro”, afirma Luiz Carlos Merten, crítico de cinema do jornal O Estado de São Paulo. Embora reconheça as qualidades audiovisuais da película de Beto Brant, Merten considera o filme um grande equívoco. “… Os personagens podres de O Invasor podiam matar-se logo na primeira cena. Não teríamos o filme, é verdade, mas também não ficaríamos durante quase duas horas à mercê dessas figuras que não inspiram nada” [6], diz ele. Próximo desta análise é a crítica de Almir de Freitas, da Revista Bravo, ao afirmar que “O Invasor representa apenas o ápice de um tipo de cinema que, amparado numa produção literária, há anos vem procurando, com maior ou menor eficiência, dar conta da realidade do país. Nessa evidente dificuldade, o que se acabou cristalizando foi um gênero que simplesmente imita o imaginário coletivo, hesitante entre o mero entretenimento de suspense e denuncismo vazio”[7].

Apesar da recepção fria e até mesmo de algumas críticas negativas incisivas, como as apontadas acima, o filme foi bem acolhido de uma maneira geral. “O Invasor é um filme extremamente arrojado que disseca o universo da ambição e confronta classes sociais dispares” (O Globo, 30/03/2002), afirma Eros Ramos de Almeida; “Grande arte sem exaltação. O Invasor é filme solitário que descartou o histrionismo e a pieguice” (Gazeta Mercantil, 05/04/2002), manchete do texto de Rosane Pavan; Mário Sérgio Conti intitula sua matéria: “São Paulo ganha uma existência cinematográfica à altura de sua complexidade protéica com longa de Brant. Estilhaços viram um todo multifacetado.” (Folha de São Paulo,05/04/2002).

Em meio às inúmeras matérias, favoráveis ou não ao filme, Beto Brant ficou satisfeito com o resultado do filme na mídia. “Tem muita gente que lê errado o filme, encontra apologia ao crime, vê lado ruim. Grandes articulistas dos jornais e colunistas falaram muito… todo muito colocou e isto é bacana. Ninguém ficou… inserindo o filme no contexto de filme, cinema novo, cinema brasileiro, transcendeu esta questão do cinema, passou a discutir a coisa pública…” [8], diz Brant.

No ano de 2002, segundo relatório da Secretaria do Audiovisual[9], foram lançados 24 filmes de longa-metragem, sendo 7 documentários e 17 ficções, incluindo O Invasor. Dos filmes com narrativa ficcional estavam: Cidade de Deus, de Fernando Meirelles; Abril Despedaçado, de Walter Salles; Avassaladoras, de Mara Mourão; A Paixão de Jacobina, de Fábio Barreto; Bellini e a Esfinge, de Roberto Santucci; Sonhos Tropicais, de André Sturm; Houve uma Vez Dois Verões, de Jorge Furtado; Uma Onda no Ar, de Helvécio Ratton; O Príncipe, de Hugo Giorgetti; Uma Vida em Segredo, de Suzana Amaral; Dias de Nietzsche em Turim, de Júlio Bressane; As Três Marias, de Aloízio Abranches; Latitude Zero, de Toni Venturi; Duas Vezes Helena, de Mauro Farias; Gregório de Mattos, de Ana Carolina e Eu não Conhecia Tururu, de Florinda Bolkan.

Entre estes filmes, Cidade de Deus, do diretor Fernando Meirelles, foi o que mais chamou a atenção da crítica e do público. Lançado no dia 30 de agosto de 2002 em circuito nacional, o filme, por tratar da temática da violência, propiciou e tornou inevitável a comparação por parte dos críticos com O Invasor. Ivan Bentes e Micael Herschmann, no artigo O Espetáculo do Contradiscurso, na tentativa de compreender a expansão e a incorporação de uma cultura periférica pela indústria midiática, estabeleceu a seguinte relação entre os dois filmes: “… Cidade de Deus (baseado no livro de Paulo Lins), filme-sintoma da reiteração de um prognóstico social sinistro: o espetáculo de jovens pobres se matando entre si, como num filme de gângsteres dos anos 30. Mais interessante e complexo é o trânsito do marginal em O Invasor, que compartilha música, droga, sexo, atitude e funde valores da periferia com a cultura empresarial paulista.” [10]

Independente das questões éticas que envolvem cada um dos filmes, gostaria de ressaltar um dado de produção: o baixo custo da produção de O Invasor se comparado aos valores médios do cinema brasileiro da atualidade. Como já dissemos, O Invasor foi realizado com um milhão de reais enquanto que a película de Fernando Meirelles contou com um orçamento de três milhões e trezentos mil dólares[11] e ainda teve sua distribuição patrocinada pela Miramax Internacional. Diferenças que foram sentidas numericamente nas ruas: enquanto O Invasor se lançou com 16 cópias em circuito comercial, alcançando um público de 105.731 espectadores[12], Cidade de Deus estreou com 150 cópias e bateu o recorde de público do ano com 3.117.220[13]. Neste aspecto, O Invasor se distancia de Cidade de Deus e também de algumas produções recentes marcadas por uma preocupação comercial e pela superprodução.

Podemos dizer, sem medo de errar, que O Invasor se encaixa na lista dos filmes de importância singular para o cinema brasileiro ao contornar a falta de recursos financeiros e encontrar caminhos e possibilidades estéticas.

O chamado “cinema da retomada”, estruturado sob as rédeas da Lei do Audiovisual, foi marcado por um apelo comercial que encontra ressonância em filmes que se aproximam dos padrões hollywoodianos. O cinema brasileiro atual vem apresentando, pelo menos em produções de maior sucesso, não somente altos custos nas produções como uma acomodação estética, pautado em fórmulas convencionais da indústria cinematográfica norte-americana e/ou em estruturas já experimentadas pela televisão[14]. Existe hoje, no Brasil, pouco espaço para o cinema de “revelação”, para empregar o termo utilizado por Beto Brant ao falar sobre o seu processo de criação em cinema. Aquele cinema criativo, provocativo, inteligente, experimental que tanto nos engrandece e nos faz refletir.

Não estamos propondo amarras ao cinema brasileiro. Toca Seabra, diretor de fotografia de O Invasor, fez crítica feroz aos dez mandamentos de realização do movimento Dogma 95 por impor regras no processo de criação. Concordamos que a criação artística se funda pela liberdade de expressão. Mas o Dogma 95 ganha força ao propor um cinema de baixo custo e, principalmente, por colocar em xeque a tendência cada vez mais agressiva da indústria cinematográfica de priorizar o lucro à criação.

A ausência de recursos obriga o artista a novas idéias, a encontrar caminhos para a realização de sua obra. “Trabalhar com pequeno orçamento é uma garantia contra o academismo. A qualidade artística de um filme está, por vezes, em proporção inversa aos meios empregados. Se filmar num mercado, no meio da multidão, minha imagem balança, passantes dão uma olhada para a câmera, há um monte de imperfeições técnicas. Mas capta-se, ao vivo, coisas extraordinárias,”[15]afirma Eric Rohmer.

Beto Brant comprovou que mesmo com pouco dinheiro é possível realizar um cinema de qualidade técnica e artística. O Invasor é um filme singular no cinema brasileiro por romper com uma tendência. Serve de parâmetro para que se aposte em políticas de incentivos à produção de filmes de baixo orçamento, como forma de estimular o aparecimento de novos cineastas. Condição esta essencial para a consolidação da cinematografia de um país. Beto Brant, ao apresentar inúmeras possibilidades de driblar os custos de produção, encoraja aqueles que pretendem enfrentar o desafio do primeiro filme.


[1] Criada em 2001, O Invasor é o primeiro filme produzido pela Drama Filmes, que tem como sócios Beto Brant, Renato Ciasca e Bianca Villar.

[2] No caso de O Invasor este recurso é utilizado somente duas vezes em todo o filme.

[3] Importante observar que filmar em campo e contracampo exigiria também maior tempo e preparação do set para que a iluminação fosse montada.

[4] Entrevista com Marçal Aquino concedida à autora em 18 de outubro de 2002.

[5] ORICCHIO, Luiz Zanin. O Invasor disseca o caos social brasileiro. O Estado de São Paulo, Caderno 2, 05 de abril de 2002.

[6] MERTEN, Luiz Carlos. Ninguém presta e o espectador fica meio perdido. O Estado de São Paulo, Caderno 2, 05 de abril de 2002.

[7] FREITAS, Almir de . Violência Vazia. Revista Bravo. www.bravonline.com.br

[8] Entrevista com Beto Brant, p.110.

[9] Anexo I do Relatório de Atividades da Secretaria do Audiovisual. Dados registrados até 14 de outubro de 2002. Em novembro, segundo dados da Filme B, foram lançados ainda Madame Satã de Karin Aïnouz e Lara de Ana Maria Magalhães.

[10] BENTES, Ivana; HERSCHMANN, Micael. O Espetáculo do Contradiscurso. São Paulo: Folha de São Paulo, MAIS! 18 de agosto de 2002.

[11] Aproximadamente oito milhões de reais de acordo com a cotação da época em que o filme foi rodado.

[12] Esses dados nos foram disponibilizados pela Pandora Filmes, responsável pela distribuição de O Invasor. É bom ressaltar que uma das marcas do diretor Beto Brant é procurar formas alternativas de exibição, como por exemplo, em escolas e universidades pelo país, o que aumenta consideravelmente o número de espectadores do filme, dado não computado.

[13] Dados obtidos através do Guia Brasileiro de Festivais de Cinema e Vídeo. Pesquisa: Filme B, São Paulo, Kinoforum, 2003.

[14] Em 2003 a participação da Globo Filmes no público dos filmes brasileiros foi de 92%. Fonte: Filme B.

[15] Trecho de entrevista do cineasta Eric Rohmer à revista francesa Télérama. Tradução de Jorge Coli em artigo intitulado Radical Trash publicado na Folha de São Paulo de 21 de setembro de 2003. Entrevista na íntegra através do site www.télérama.fr.

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Deixe uma resposta