A manutenção do multiuniverso ficcional dos quadrinhos através de recursos de distorção temporal ou Como Não Matar o Batman?

The maintenance of the fictional multiverse of comics through temporal distortion features or How not to Kill Batman?

Matheus Machado MOSSMANN[1]

Marsal Ávila Alves BRANCO[2]

Resumo: O artigo tem como objeto o diálogo entre as necessidades estéticas do discurso dos comics com as demandas do mercado de conteúdo transmidiático. Propõe uma categorização de formatos como retcons, crossovers, histórias paralelas, what ifs, prequels e reboots e outros que usam o tempo da narrativa tanto como tensão estética quanto ferramenta comunicacional na orquestração e gerência dos personagens e histórias no mercado de quadrinhos.

Palavras chave: Distorções temporais; Quadrinhos; Narrativa; Super-Heróis; Transmídia.

Abstract: This paper aims to show the dialogue between the aesthetic needs of speech with the demands and constraints of a transmediatic market content. It proposes a categorization of formats like retcons, crossovers, parallel stories, what ifs and other proffer aesthetic tensions and important communication tools in the creation and the distribution in the content market.

Keywords: Temporal distortions; Comics; Narrative; Super-Heroes; Transmedia.

Introdução

Os estudos sobre a estruturação do tempo na narrativa – suas funções, deformações e formas de ligação – buscam ver de que maneiras os autores usam a passagem (ou não) do tempo para a construção da história e do discurso. Aparentemente, a deformação do tempo é uma imposição narrativa, uma vez que os acontecimentos narrados não se igualam à forma como aconteceram cronologicamente. Mas como todo engenho de autoria, o que pode ser uma imposição passa a ser – por obra do autor – forma de expressão e material de trabalho na perseguição de objetivos estéticos.

Na história, muitos acontecimentos podem-se desenrolar ao mesmo tempo; mas o discurso deve obrigatoriamente colocá-los um em seguida ao outro; uma figura complexa encontra-se projetada sobre uma linha reta. Mas a maior parte do tempo o autor não tenta encontrar esta sucessão “natural” porque utiliza a deformação temporal para certos fins estéticos. (TODOROV, 2004)

Para além do papel que a deformação temporal tem nos objetivos estéticos dos textos, ela também instrumentaliza fins que extrapolam as estratégias discursivas dos autores: respondem às necessidades de mercado e de estratégias comunicacionais dos produtores de conteúdo. No mundo de super-heróis e franquias, que caracteriza o gigante mercado dos comics[3], brincar com o tempo dos personagens e sua cronologia estabelece-se como modus operandi nas estratégias de comunicação e marketing das grandes editoras. As histórias em quadrinhos – produtos síntese de uma indústria criativa que mistura autoria com estratégias de distribuição em escala industrial – tornou o universo dos super-heróis um dos mais ricos e complexos campos de testes comunicacionais entre os diversos mercados de “contação de histórias”, tensionando de formas inovadoras e criativas o uso de ferramentas narrativas em sua intersecção entre objetivos estéticos com objetivos de mercado.

Os quadrinhos têm explorado a estrutura narrativa como nenhum outro meio. Estas técnicas – que incluem coisas como arcos, crossovers, team-ups, reboots e múltiplos títulos “ligados” em séries maxi-story – vendem mais quadrinhos, mas no processo, eles podem estar desvendando caminhos para novas formas de contar histórias complexas. (WHITEHOUSE, 2012)

O presente artigo propõe uma categorização do uso do tempo na narrativa a partir das relações que as histórias e personagens mantém entre os diferentes títulos e marcas ofertadas pelas editoras. A narrativa – especificamente aqui, o uso do tempo – passa a atuar como importante ferramenta de mercado, ajudando a criar novos públicos, gerenciar marcas e gerar negócios dentro do “ecossistema” midiático contemporâneo.

Cada meio atua com o seu melhor – então uma história pode ser iniciada em um filme, ser expandida através da televisão, das séries e dos quadrinhos, e seu mundo pode ser explorado e gerar uma experiência através dos videogames. A entrada de cada franquia deve ser auto-suficiente o bastante para garantir um consumo autônomo. Assim, não é necessário que o filme seja visto para que se divirta com o videogame e vice-versa. (JENKINS, 2003)

Esta autossuficiência defendida por Jenkins (2003) reflete um cenário em que as editoras de quadrinhos utilizam-se de recursos que alteram a narrativa do universo dos super-heróis em função de sua necessidade de se manifestarem e se relacionarem em/com outros meios. Os super-heróis dos comics interagem em seriados de tv, filmes de Hollywood, séries animadas para vídeo, games, etc. Personagens como Batman, Os Vingadores ou Superman são maiores do que a indústria de quadrinhos, ainda que dela retirem parte importante de sua força de mercado e criativa e tenham nela seu grande espaço de experimentações. Dentro desse contexto, é natural o desenvolvimento de ferramentas narrativas que gerenciem e vinculem coerentemente esse emaranhado de histórias e manifestações midiáticas, orquestrando mundos ficcionais e personagens a partir de uma série de dispositivos que se destinam a públicos, suportes e linguagem diferentes. Acrescente-se em complexidade o fato de que essa orquestração de conteúdos frequentemente deve ser planejada considerando-se as ações pontuais de marketing de cada editora/estúdio. É o caso do lançamento de um filme que deve suceder os comics, que referencia o game, que é lançado com o brinquedo, que complementam um ao outro, caracterizando narrativas pensadas para sobreporem-se, completarem-se, potencializarem as redes de comunicação e estimularem formas interessantes de fruição e usos que o consumidor possa ter com o universo ficcional proposto. Ao mesmo tempo, os produtores de conteúdo devem levar em consideração de que as diferentes manifestações dos personagens têm de encontrar um equilíbrio entre as novidades que cada meio traz, com o respeito à história e à cronologia já construídas em outros meios. Para os fãs de comics do Batman, é importante que o cinema respeite minimamente sua história e cronologia, e vice-versa. No entanto, para a conquista de novos públicos e fidelização do personagem em um novo meio, o filme (ou o game, ou o quadrinho) de Batman terá que propor intervenções em seu universo que são próprias àquele meio em específico. Para equilibrar essa demanda entre diferentes mercados e objetivos, os quadrinhos têm desenvolvido novas maneiras de lidar com o tempo na narrativa.

Tempo nos comics

A narrativa se constitui na tensão de duas forças. Uma é a mudança, o inexorável curso dos acontecimentos, a interminável narrativa da “vida” (a história), onde cada instante se apresenta pela primeira e última vez. É o caos que a segunda força tenta organizar; ela procura dar-lhe um sentido, introduzir uma ordem. Essa ordem se verifica pela repetição (ou pela semelhança) dos acontecimentos: o momento presente não é original, mas repete ou anuncia instantes passados e futuros. A narrativa nunca obedece a uma ou a outra a força, mas se constitui na tensão das duas. (TODOROV, 2004, p. 22)

Nos comics, a passagem de tempo para as personagens é muito diferente do tempo real. Caso o tempo fosse seguido à risca, tanto Batman quanto Superman estariam à beira dos 100 anos de idade[4]. O fato de estarem presos em um tempo que “não passa” não se atém apenas aos aspectos físicos e psicológicos que afetam seus trabalhos como super-heróis. A utilização de distorções temporais na narrativa abre a possibilidade de exploração de um universo atemporal, onde vilões e heróis estão sempre disponíveis para a batalha, uma vez que a prisão, morte, desaparecimento ou qualquer outra coisa que possam lhes acontecer é “zerada” quando inicia-se a história do mês seguinte. Igualmente importante, o que aconteceria se Batman supostamente fosse privado de sua luta contra Coringa, Charada, Hera Venenosa, Pinguim, entre outros?  Caso todos morressem ou – pior – se reabilitassem, a indústria perderia um de seus elementos mais importantes, que é a empatia e o conhecimento já adquirido de personagens e mundos por parte do leitor. Coringa, para o bem da franquia, não deve morrer.

Esse sentido de completude da história, de capítulo que se encerra dentro da revista nos comics, faz parte de um tipo de uso do tempo que o meio ajudou a criar e refinar. Assim como gera tensões estéticas, potencializa e se aproveita do consumo de produtos que vêm fazendo sucesso há muitas décadas. Imerso em batalhas, intrigas, capturas, fugas, assassinatos, mortes e “ressurreições”, o universo dos super-heróis – principalmente dos norte-americanos geridos pelas grandes editoras Marvel e DC Comics se construiu sobre esse ciclo de reaproveitamento de personagens em histórias que não chegam nunca a um destino final. Ou melhor, a cada edição chegam a seu destino final, mas que é ignorado na próxima edição.

No entanto, diferente dos universos e personagens que ajudam a criar, os autores e a indústria de quadrinhos são bastante sensíveis ao tempo. Os comics passaram por muitas transformações nas últimas décadas e vários foram os fatores causadores dessas mudanças. Dentre esses, os mangás[5], sem dúvida, ocupam lugar especial na trajetória dos super-heróis ocidentais. A tensão que provocaram foi ao mesmo tempo industrial (uma mudança drástica nos paradigmas de produção), comercial (algo como uma blietzkrieg que “tomou” o mercado mundial de quadrinhos) e narrativo. O último diz respeito às “novas expressões narrativas” trazidas pelos mangás, que ajudaram a promover uma série de mudanças na contação de histórias dos comics. Uma das principais foi, sem dúvida, a utilização do tempo em sua narrativa.

Em um contexto onde os heróis dos comics não envelhecem, os mangás apresentam heróis com tempo de vida delimitado. Suas histórias são marcadas pela passagem do tempo. Heróis amadurecendo, envelhecendo e, eventualmente, morrendo. O personagem evolui do ponto de vista narrativo. A ruptura é radical. E misturada ao sucesso comercial que se seguiu, obrigou a indústria a testar algumas novas fórmulas. Evidentemente, não é que a passagem do tempo nunca tivesse existido, mas, sem dúvida, a chegada dos mangás obrigou a indústria criativa a testar novos elementos não mais em suas periferias criativas, mas no próprio mainstream. Como um monstro arquetípico de Campbell, os mangás exigiram dos comics uma tomada de posição: “decifra-me ou te devoro”.

Assim, com os mangás assaltando os portões do castelo, os comics buscaram seus campeões. Ao chamado, alguns apareceram: Miller, Moore e outros, nos anos 1980. Como resultado, a narrativa se complexifica de maneira radical. O tempo, esse ilustre desconhecido, invade a cidadela dos comics pelo portão principal, trazendo para a indústria um dos maiores desafios de sua história: “como sobreviver ao tempo (como indústria) quando nosso universo ficcional envelhece (como narrativa)”? A pergunta é: como não envelhecer o Batman? Como matar o Morcego e ainda rentabilizar sua marca?

Mas como dissemos anteriormente, não só os mangás foram responsáveis por isso. O mercado (outro monstro arquetípico de Campbell) tem outras demandas: as tecnologias da informação potencializam novos sistemas de distribuição, novos públicos e, em consequência, novas maneiras de contar histórias. A indústria do entretenimento aprende novas formas de potencializar lucros. Cinema, quadrinhos e games necessitam relacionar-se de maneira mais sofisticada. O uso do tempo na narrativa precisa ir além para dar conta dessas demandas. Na sequência, apontamos algumas das respostas criativas que a indústria tem utilizado. Certamente não são as únicas e tampouco são necessariamente inéditas, tendo já sido usadas em um momento ou outro pela própria indústria de quadrinhos. Mas, o que antes eram experimentações pontuais, agora fazem parte do mainstream, compondo estratégias de discurso e de marketing a um só tempo.

Histórias paralelas à cronologia

Histórias paralelas são aquelas que não fazem parte das histórias de linha apresentadas nos títulos mensais mas que podem ter seus elementos absorvidas por elas conforme sua aceitação. Normalmente se apresentam como graphic novels isoladas ou em arcos completos. Mostram recortes explorando a psicologia do personagem, relacionamentos ou elementos específicos daquele universo ficcional. Referenciam o universo dos personagens, mas de maneira geral o fazem através da exageração de seus elementos: heróis de passado sombrio como Batman são apresentados como psicopatas em potencial; ou pelo uso de um recorte específico de seu folclore: a Mulher Maravilha contada a partir da ótica de uma Rainha Amazona; ou em grandes acontecimentos daquele mundo: a morte do Capitão Marvel por câncer. Essas histórias tensionam o universo ficcional “regular” apresentado pelas revistas de linha, distorcendo, exagerando, ignorando ou acrescentando coisas na vida dos personagens.

Este tipo de histórias normalmente se passa em um “não-tempo” em relação ao universo do personagem. Elas podem se situar antes ou depois de momentos marcantes da vida do personagem, mas não necessariamente afetam a cronologia principal desse – que fica por conta das revistas mensais.

De fato, as histórias paralelas são um bom exemplo de como o universo original do super-herói tende a ser blindado e protegido pelas editoras, não dando brechas para séries que poderiam dar um fim à cronologia original, fechando seu ciclo. Uma vez que os heróis são publicados ao longo de décadas, devem ser protegidos de grandes alterações ou eventos que mudem significativamente o rumo dos acontecimentos. Não é que sejam totalmente impermeáveis ao tempo, mas as revistas mensais – produto principal das editoras e força alavancadora das franquias – são o último espaço a ser afetado por mudanças radicais. As histórias paralelas são como um posto avançado para esses heróis: testam-se elementos, propõem-se novidades, como novos relacionamentos e eventos não-triviais, que nas revistas mensais podem sinalizar mudanças no posicionamento da franquia e do público que visa atingir e devem, portanto, serem introduzidas com muito cuidado. A história paralela age como uma sondagem de mercado. A editora tem condições de ver o que funcionou e o que repeliu o público naquela história. Por outro lado, são vendidas frequentemente como “obras” de autor, reunindo desenhistas e roteiristas famosos do mundo editorial, que são “convidados” a propor suas visões pessoais dos super-heróis. São revistas mais caras e podem ser extremamente rentáveis. Para uma distribuidora de conteúdo, as histórias paralelas representam o melhor de dois mundos: servem como pesquisa e teste de mercados para outras linhas da franquia bem como são produtos de sucesso comercial por si só.

Um dos exemplos mais conhecidos é The Dark Knight Returns (1986), de Frank Miller, revelando um Batman aposentado aos 55 anos de idade.

Dark Knight Returns é um movimento radical na história da narrativa dos comics, pois foi o primeiro trabalho que tentou compor uma história que fizesse sentido por ela mesma, ao invés de apenas virar outra no folclore de Batman. Pode ser considerada parte desse universo, mas conscientemente organiza toda essa tradição ao comentar 45 anos de histórias. Isto veio a complicar as premissas e a estrutura de tal tradição (KLOCK, 2002, p.30)

A partir do sucesso de The Dark Knight Returns, o universo dos comics percebeu uma nova maneira de contar suas histórias, utilizando-se de narrativas com ambientes mais “sérios” e mostrando uma pretensa “realidade” dentro do universo de super-heróis, uma novidade naquele momento. Ao mesmo tempo, a série foi um sucesso de mercado, onde representou, junto com Watchmen de Alan Moore, quase metade das vendas da DC Comics em 1986 (GIASETTI, 1996). O interessante é que, apesar do sucesso, a história de Dark Knight não afetou automaticamente o conteúdo dos produtos mensais do personagem, mas acordou as editoras para uma nova maneira de lidar e contar as histórias dos heróis. Sobretudo, demonstrou de forma clara que havia um mercado pronto para aquele tipo de narrativa. Nos anos que se seguiram, o tipo de universo proposto por Miller naquele primeiro Dark Knight passou a ser um padrão da indústria, afetando a maior parte de seus personagens e sendo absorvido de maneira gradual pelas revistas mensais.

O que aconteceria se… ?

Nas histórias do tipo “O que aconteceria se…?” existe uma ruptura radical com o universo ficcional proposto pelas revistas mensais. No momento em que os autores se direcionam às histórias destoantes do construto vigente articulado pelas revistas mensais, ocorre a possibilidade de geração de conteúdos não-usuais.

As histórias What If[6], da Marvel Comics, mostram como seriam eventos e personagens caso eles acontecessem em um universo paralelo. A primeira edição, datada de fevereiro de 1977, dá o tom da brincadeira mostrando “O que aconteceria se o Homem-Aranha integrasse o Quarteto-Fantástico?”. A resposta pode ser conferida na própria capa, com o Homem-Aranha anunciando que agora eles eram o… “Quinteto Fantástico”.

Deste modo, os roteiristas da Marvel Comics podem criar histórias absurdas à revelia, gerando uma expectativa sobre qual universo seria “corrompido” dentro dessa linha, sem desapontar os leitores com este tipo de evento acontecendo em uma história que fizesse parte da cronologia oficial. Assim, a cronologia continua intacta, com o público tendo a oportunidade de ver fatos curiosos e “impossíveis” de acontecerem nas revistas de linha, através deste tipo de narrativa totalmente experimental e sem compromisso com o universo ficcional “oficial” da editora. É uma boa oportunidade para que a indústria dos super-heróis faça testes que verifiquem a recepção deste conteúdo.

Ao colocar a história em uma “suspensão de credibilidade”, assumindo que os eventos narrados não são “verdadeiros”, os editores tangenciam o risco de ofender leitores fiéis. E o leitor, por sua vez, assume a história como uma brincadeira desde o princípio. Diferente do que ocorre nas histórias paralelas, que podem influenciar o universo principal de revistas, os eventos que ocorrem nessas histórias são totalmente afastados da cronologia oficial, ocorrendo efetivamente em um “não-tempo” que jamais vai ser assimilado pela história. É interessante notar que enquanto as histórias paralelas normalmente vêm na forma de graphic novels (portanto separadas fisicamente das edições mensais), as “O que aconteceria se…?” podem ser publicadas dentro de títulos mensais.

Crossovers[7] entre editoras

Crossover é a técnica de juntar em uma mesma história personagens e/ou eventos de mundos ficcionais distintos. O cruzamento de personagens de uma mesma editora ocorre com bastante regularidade em suas revistas de linha, englobando inúmeros personagens em arcos e sagas, normalmente culminando em edições especiais para o desfecho da história. Também existem os crossovers entre duas editoras diferentes. Nesse caso, são fatos totalmente isolados às cronologias oficiais dos personagens, especialmente em função das questões de direitos autorais, que impedem a citação e o uso dos heróis em futuras edições. Em relação ao tempo, o que ocorre em um crossover entre diferentes editoras não é acrescentado à cronologia dos personagens. Os personagens que participam dessas histórias não terão lembrança daquilo.

Em 1976, foi publicado Superman vs. The Amazing Spider-Man. O êxito deste primeiro movimento entre as duas editoras permitiu a criação de novos crossovers entre seus personagens. Batman x Hulk (1981) foi o lançamento seguinte, reunindo dois ícones dos comics. Outro famoso crossover ocorreu em 1982, com o lançamento de Teen Titans x X-Men (BRAZ JÚNIOR, 1995). O movimento mostrou-se favorável e aconteceram outros encontros de heróis das editoras, inclusive entre vilões, como em Darkseid x Galactus, no ano de 1995.

Em 1996, foi lançada uma iniciativa conjunta, novamente entre as duas maiores editoras de comics dos Estados Unidos, para o desenvolvimento da série Marvel x DC Comics, reunindo um grande número de heróis das duas editoras lutando contra, obviamente, seus maiores vilões.

As editoras parecem perceber que o consumo de super-heróis de uma editora não impossibilita ao público que consuma super-heróis da outra. Os crossovers entre personagens famosos de editoras diferentes têm a vantagem mercadológica da sinergia entre os títulos e a expectativa de um público que deseja ver juntos personagens que não compartilham o mesmo mundo. Em adição a isso, essas histórias não comprometem cronologias e seus eventos não sobrevivem além daquela edição em particular. Na revista mensal dos personagens, a vida segue como se nada tivesse acontecido. O universo, salvo com sacrifício pelos heróis mais poderosos do mundo, amanhece tranquilo e sem as memórias de suas dores.

Até aqui, todos os elementos de deformação temporal elencados neste artigo apontam as soluções encontradas pelas editoras em eventos paralelos à cronologia tratada como “oficial” pelas editoras em seus respectivos universos ficcionais. Mas o que acontece quando o universo, construído pela editora ao longo dos anos é alterado na própria revista de linha? Quais fatores levam a quebrar essa linearidade na cronologia? Como ou por que alterar fatos que influem diretamente nos acontecimentos e na vida de determinado super-herói, recriando sua realidade e cronologia?

Retcons [8]

“Esse é o clima onírico das histórias de super-heróis, em que teve de acontecer e o que aconteceu depois aparecem de uma maneira nebulosa. O narrador pega o fio da meada de novo e de novo, como se tive esquecido de dizer alguma coisa e quisesse acrescentar detalhes ao que já foi dito.” (ECO, 1979 apud. KLOCK, 2002)

Earth 2, um universo alternativo da DC Comics, mostra os heróis da chamada “era de ouro” dos quadrinhos (primeiros heróis criados, na década de 1930 e 1940) vivendo conforme a origem retratada em suas criações e com uma correspondência entre o tempo de narração e o tempo cronológico dos personagens. Sendo assim, nos anos 1980, Superman estava com 60 anos de idade e Batman já havia morrido e sido substituído por sua filha, Huntress. No universo de Earth 1, entretanto, todos super-heróis mantém perpetuamente a mesma idade. Os personagens são os mesmos, mas o uso do tempo na narrativa em relação à cronologia estabelecida pelas outras revistas difere. Em Earth 2, os heróis de All-Star Squadron estavam alocados durante a Segunda Guerra Mundial. Assim sendo, todos os eventos que ali aconteceram tiveram influência na continuidade contemporânea do multiuniverso criado pela DC Comics, que englobava Earth 1 e Earth 2. Cada acontecimento muda a história do ambiente ficcional pré-estabelecido. Este recurso foi denominado “continuidade retroativa” e posteriormente abreviado para “retcon”. Seu uso faz emergir uma série de ambiguidades e sobreposições entre os tipos de deformações narrativas que tendem a produzir.

Segundo a Wikipedia, os próprios leitores estabeleceram diferentes categorias de retcon, feitas a partir da maneira como se propõem adicionar, alterar ou remover elementos da continuidade narrativa. Tais categorias provocam reações diferentes aos leitores. São elas:

Adição: algumas retcons não necessariamente se contradizem perante fatos estabelecidos previamente, mas preenchem a história do herói com pequenos detalhes que auxiliam a amparar a narrativa em determinado ponto. Tal recurso foi utilizado por Kurt Busiek na obra Untold Tales of Spider-Man, série que mostra histórias que sanam lacunas em determinados pontos da revista de linha The Amazing Spider-Man, geralmente explicando as descontinuidades entre as histórias anteriores. Outros autores também utilizaram este recurso aditivo, como John Byrne em X-Men: The Hidden Years, que segue a mesma premissa de completar as lacunas de acontecimentos anteriores; e Alan Moore, que ao adicionar informações pertinentes em O Monstro do Pântano não alterou nenhum dos acontecimentos relativos ao personagem, porém proporcionou uma mudança na forma interpretativa do leitor.

Alteração: o acréscimo de informações pode ocasionar conflitos na dinâmica narrativa em que os fatos que o leitor viu, mudaram, apresentando versões diferentes da história. Um bom exemplo é quando um personagem é dado como morto e posteriormente ele reaparece, com a história sendo levada a explicar que o quê aconteceu anteriormente não é exatamente aquilo que o leitor presume. Jason Todd[9], que havia morrido em eventos datados de 1988 e ressurgiu, anos mais tarde, devido a alterações no universo da DC Comics, é um exemplo de como a mudança na história é sentida através do recurso de alteração da retcon.

Subtração: às vezes, histórias impopulares ou embaraçosas são mais tarde ignoradas pelos editores e nunca referidas novamente, são efetivamente apagadas da continuidade de uma série. Os editores podem publicar histórias que contradizem a anterior ou então simplesmente estabelecer explicitamente que determinado evento nunca ocorreu, assumindo que foi um “mau passo” ou utilizando algum artifício, como dizer que os eventos em uma edição anterior eram delírios ou sonhos de um personagem.

A adição, alteração e subtração das retcons, como proposta pelos leitores, não são novidades contemporâneas, mas as formas pelas quais vêm sendo usadas em função das múltiplas demandas do mercado, as refinaram e elevaram em escala dentro da indústria, passando a fazerem parte das ferramentas de gerenciamento e marketing disponíveis pelas editoras de comics. Tais deformações, principalmente em uma realidade transmidiática, surgem como alternativas, tanto autorais quanto mercadológicas, para os esforços de sincronização entre os universos ficcionais propostos pelas editoras de quadrinhos em conjunto com os universos produzidos para a televisão, cinema, games e web.

Prequels

Prequel consiste em uma obra fechada como unidade narrativa (pode ser lida e entendida isoladamente), mas que se relaciona com eventos e personagens de outra história específica já contada. Assim, ela tem relações com a história que se segue, mas não faz parte da mesma unidade narrativa.

A intenção, com este movimento de distorção temporal, é proporcionar uma experiência “continuada” da história, mostrando elementos e eventos diretamente relacionados a ela, fechando lacunas (ou propondo outras), bem como aparando arestas narrativas que desencadearam na história inicial.

Com prequels sendo exibidas posteriormente ao seu produto original, a expectativa de eventos e personagens se referenciarem ocupa o imaginário do público, que fica vislumbrando e procurando “pistas” na narrativa que remetam aos acontecimentos futuros (ou passados) desenrolados na outra história com que se relaciona.

Ao final da primeira trilogia de X-Men, iniciada em 2000, ocorreu o lançamento de Wolverine: Origins, retratando a origem do herói antes de adentrar ao grupo dos mutantes. Lançada três anos após o último filme da trilogia, a história passa-se muitos anos antes do início da narrativa do primeiro (2000). Evento similar ocorreu com o lançamento do filme X-Men: First Class (2010), que mostra a formação do grupo, ainda nos anos 1960, da mesma forma que aconteceu nos comics, em fatos narrados a partir de 1963.

Ao lançar mão deste expediente, as produtoras criam links entre as histórias para que sejam consumidas como um universo único e próprio. Ao consumir uma das histórias, o leitor/expectador é convidado a percorrer as outras narrativas, espalhadas por comics, tv, cinema ou games. Este tipo de experiência lhe proporciona um maior envolvimento com a trama e o universo ficcional. Além disso, para as produtoras de conteúdo, os esforços de sinergia entre os produtos da franquia potencializam os lucros e diminuem os custos de comunicação e, eventualmente, de produção.

Reboot

Reboots podem ser definidos como recomeços dentro do universo ficcional. Obedecem aos princípios da retcon, mas tem como principal diferença a escala: afetam todos os heróis de determinado universo ficcional. As regras e a história daquele universo mudam. A partir do lançamento de um reboot, o que estava em vigência antes não tem mais influência nem validade na continuidade da história.

A utilização de reboots deixa clara a posição das editoras/produtoras em renovarem seu aparato, tanto na parte autoral quanto mercadológica, vislumbrando a criação de novos públicos ou na tentativa de atualizar a percepção do público fiel em relação ao seu super-herói. O uso de reboots é sempre controverso, uma vez que uma parcela do público – mais fiel – frequentemente sente que a alteração no universo de seu personagem afronta de alguma maneira sua “essência”. Tipicamente, essa é uma reação padrão em muitos fãs de quadrinhos em relação às adaptações de seus heróis para o cinema.

Um exemplo conhecido de reboot é o de Crise nas Infinitas Terras (DC Comics, 1986), quando foi zerada a cronologia da já supracitada Earth 2 para entrar em concordância com os acontecimentos de Earth 1. O mesmo aconteceu ocorreu em 1994 com a série Zero Hora, que deu fim a uma série de eventos e fez emergir novas origens para os super-heróis, havendo uma quebra na continuidade desenvolvida pelos roteiristas até aquele ponto. A ruptura foi tão radical a ponto de ser expressada, inclusive, por uma reorganização nos nomes e numeração das revistas de linha: a partir daí, recomeçaram sua contagem a partir da edição #0.  No ano de 2012, um novo reboot por parte da DC Comics gerou a série The New 52, com cinquenta e dois títulos da editora recontando universos já existentes. Após o lançamento da edição #12 de cada número, a editora colocou no mercado a edição #0 de cada título, para explicar melhor os acontecimentos que causaram tamanha reviravolta no universo dos super-heróis. Neste ponto, o que era conhecido tradicionalmente como a “origem” dos heróis já não corresponde necessariamente à nova proposta. Esse expediente demonstra claramente as relações de tempo/cronologia em tensão com os movimentos de demanda de um mercado alterando-se para angariar novos colecionadores e conquistar gerações com novos hábitos de leitura e consumo.

Considerações finais

Verificou-se a existência de formas de estruturação narrativa que têm na categoria tempo usos que extrapolam as necessidades e intenções narrativas do autor, mas se estendem às demandas, estratégias e táticas de sobrevivência das empresas de comunicação a que são ligadas. Tais formas, histórias paralelas, crossovers, what ifs, retcons, prequels e reboots são ao mesmo tempo artifícios de narrativa e ferramentas de gestão de conteúdo por parte das editoras, que as articulam para ajudar a orquestração das franquias entre diferentes títulos e meios.

A criação e desenvolvimento dessas formas narrativas parecem ser respostas da indústria criativa às imposições estéticas e de linguagem de outras vertentes dos quadrinhos, como, por exemplo, os mangás (para ficar no exemplo mais óbvio). Mas ao mesmo tempo, é também resposta ao incremento da complexidade e interdependência entre os diferentes players que fazem parte do “ecossistema” da criação e distribuição de conteúdo midiático. Em função do fenômeno da convergência das mídias, o processo de remediação faz com que essas influências estéticas e de linguagem atravessem as fronteiras dos quadrinhos, adotando narrativas híbridas que tensionam as formas tradicionais que cada meio adota para a contação de histórias.

A mesma configuração midiática complexa, mencionada acima, obriga essa orquestração entre os diferentes títulos de uma franquia, que passa a depender e planejar suas histórias também em função de agendas e objetivos de outros meios, como o cinema, a tv ou os jogos digitais. Os heróis das histórias em quadrinhos, para o bem ou para o mal, passam a viver também nesses outros meios. Mas diferente desses, seu sistema de produção e modelo de negócio exige da indústria de quadrinhos uma regularidade de histórias dificilmente igualada pelos outros meios. Na prática, as histórias em quadrinhos necessitam grande capacidade de adaptação porque têm uma produção constante e seriada, permanecendo uma das mídias mais sensíveis e eficientes para sondar o mercado e para testar novas formas de narrar histórias e gerir conteúdos de franquias milionárias.

É importante notar que as categorias elencadas aqui não se preocupam em como a passagem do tempo ocorre dentro da unidade narrativa (a história ou, no máximo, a revista), mas em como são usadas para articular cada unidade narrativa com as outras com que tem de dialogar dentro da composição midiática.

Por último, a adoção dessas ferramentas narrativas parece indicar a existência de uma “blindagem” ou rede de proteção que impede que as mudanças propostas pelos roteiristas – especialmente as mais radicais: aquelas que têm uma passagem do tempo “sem volta” – sejam aplicadas diretamente na cronologia e folclore principal dos heróis. Os recursos descritos – histórias paralelas, crossovers, recons e outros -, servem como campos de teste ou de reconhecimento de mercado, onde heróis, eventos e demais possibilidades são testadas junto ao público tradicional daquele mundo ficcional para – só então e se aprovado pelo público – migrar para as revistas mensais.

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WHITEHOUSE, Kendall. The Avengers, Comic Books and the Future of Storytelling. http://knowledge.wharton.upenn.edu/article.cfm?articleid=3039 Posted in May, 2012. Acesso em 03/10/12.


[1] Graduando do Curso de Comunicação Social, habilitação em Publicidade e Propaganda, da Universidade Feevale – Novo Hamburgo, RS. E-mail: matheusmossmann@gmail.com

[2] Professor titular e Coordenador do Curso de Tecnologia em Jogos Digitais da Universidade Feevale – Novo Hamburgo, RS. Doutor em Comunicação Social – Teoria dos Jogos Digitais (Unisinos, 2011); Mestre em Comunicação Social – Estruturas discursivas digitais (Unisinos, 2005). E-mail: marsal@feevale.br

[3] Entenda-se “comics” por “histórias em quadrinhos”.

[4] Leve-se em conta que, à época do lançamento dos super-heróis, Superman (1938) e Batman (1939), tinham cerca de 25 anos de idade, configurando que teriam nascido em torno de 1910, aproximadamente.

[5] Histórias em quadrinhos feitas no Japão. Geralmente feitas em preto e branco, tendem a gerar produtos midiáticos, como os animes (desenhos animados), que em seguida geram linhas de brinquedos. Comumente o ciclo inverso também ocorre, onde a empresa de brinquedos cria personagens, encomenda um desenho animado a determinada produtora e, devido ao sucesso, as personagens vão para o mangá para atrair também outro tipo de público. Formam um ciclo de mercado que é muito forte no Japão.

[6] A lista com as edições e seus temas está disponível em <http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_What_If_issues> Acesso em 04.10.2012.

[7] Cruzamento de duas séries que, teoricamente, não são de um mesmo universo e que, ao serem inteligadas, geram um universo novo para ser explorado. Geralmente são séries de curta duração, com um forte apelo comercial.

[8] É uma abreviação de “retroactive continuity”. A primeira vez que o termo “continuidade retroativa” foi cunhado ao se referir a alguma alteração em narrativa ficcional foi na sessão de cartas da edição 18 de All-Star Squadron (1983), da DC Comics.

[9] Maiores informações disponíveis em <http://en.wikipedia.org/wiki/Jason_Todd>. Acesso em 11/10/12.

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