A retomada e o cinema político italiano dos anos 60 e 70

Marco Alexandre de Aguiar é Doutor em História pela Unesp de Assis.

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Resumo: Durante o governo do presidente Fernando Collor de Melo, o cinema brasileiro praticamente desapareceu. A partir de 1994 há um “ressurgimento” deste cinema, com uma produção razoável de filmes. Esse período convencionou-se chamar de retomada do cinema brasileiro. Este artigo realiza uma reflexão a respeito, com uma análise de dois filmes, Lamarca (1994) e O que é isso companheiro? (1997). Como forma de enriquecimento dessa análise, optamos por fazer uma comparação com os filmes do cinema político italiano dos anos 60 e 70.

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A retomada e os filmes Lamarca e O que é isso companheiro?

Ao observar a história do cinema brasileiro, constatamos que este tematizou aspectos diferentes da realidade do país. A denominada retomada do cinema brasileiro, ocorrida a partir de 1994, apresentou filmes com diferentes perspectivas. Devido à diversidade dos filmes deste período, não podemos falar em um movimento cinematográfico. Na retomada existiram diretores estreantes e veteranos, como Cacá Diegues e Hector Babenco, além de contar com cineastas em nível intermediário de carreira, como Beto Brant e Tatá Amaral. Utilizando-se da discussão da minha tese1 em que analiso dois filmes com a mesma temática, ou seja, Lamarca2, de Sérgio Rezende e O que é isso companheiro?3, de Bruno Barreto, pretendo fazer uma reflexão levando em consideração estes filmes e o cinema político italiano dos anos 60 e 70.

Ao enfocar a retomada, utilizaremos o livro O Cinema da retomada, de Lúcia Nagib. Neste existem depoimentos de vários cineastas, que recordaram uma época em que no Brasil a diversidade cinematográfica existia de forma intensa, nos filmes italianos, franceses e de outras nacionalidades. A produção cinematográfica em nosso país apresenta um desempenho razoável, mas o maior empecilho está na distribuição e exibição dos filmes. A maioria dos filmes listados por Lúcia Nagib, com exceção daqueles que tiveram grande projeção, como O Quatrilho, Central do Brasil e Carlota Joaquina Princesa do Brazil, não chegaram ao grande público, uma vez que além de serem raramente exibidos nas salas de cinema, também não aparecem nas locadoras.

A partir da análise de filmes podemos captar características da sociedade no momento da sua produção. Além disso, sabemos do poder dos filmes na acirrada disputa pela memória. Ao trabalhar com o cinema, o historiador deve realizar uma problematização dos filmes escolhidos por ele. Assim, se faz necessário observar a trajetória dos diretores em questão e fazer a decupagem realizando uma transcrição das seqüências do filme. Eduardo Victorio Morettin, no artigo O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro, enfatiza o caráter polissêmico de um filme e realça a importância de uma análise interna da obra. Nesta perspectiva, optamos por seguir a metodologia sugerida por Morettin: “Refazer o caminho trilhado pela narrativa e reconhecer a área a ser percorrida a fim de compreender as opções que foram feitas e as que foram deixadas de lado no decorrer de seu trajeto”. (MORRETIN, 2003, p. 29).

No livro De Caligari a Hitler. Uma história psicológica do cinema alemão, Siegfried Kracauer afirma que os filmes refletem características de uma nação, e o autor coloca a seguinte questão: “Que temores e esperanças varreram a Alemanha imediatamente após a Primeira Guerra Mundial?” (KRACAUER, 1988, p. 20) O que nos leva a perguntar que temores e esperanças passaram pela cabeça de Sérgio Rezende e de todos os envolvidos na produção do filme Lamarca, já que não podemos esquecer o caráter estritamente coletivo da obra cinematográfica? No depoimento de Sérgio Rezende ele coloca o desejo de combater o predomínio do neoliberalismo, hegemônico nos anos noventa. Ele fez questão de falar sobre Lamarca, porque entendeu que este contrariava tudo o que estava em evidência naquele período.

Ao abordar a questão da produção de filmes históricos, Sérgio Rezende mencionou filmes como O Encouraçado Potemkim4 e O Nascimento de uma Nação5. Em relação ao gênero de “filme histórico” considerou: “O cinema trabalha com aquilo que ficou no inconsciente coletivo das pessoas, um personagem é a representação de um inconsciente coletivo”. (NAGIB, 2002, p. 382). No livro Memória e Sociedade, Ecléa Bosi faz uma profunda análise sobre a questão da memória, ao abordar o ponto de vista de Bérgson e de Halbwachs, quando esse último enfatiza o fato da produção da memória ser sempre coletiva. Normalmente ela relaciona-se com grupos familiares, profissionais, políticos, religiosos. Ecléa Bosi deixa claro que as pessoas, ao tentar lembrar e comentar com outros, um vai confirmando ou acrescentando algo e assim a memória de um determinado grupo vai se constituindo (BOSI, 1994, p. 54). Dessa maneira, no momento da produção do filme, a figura de Lamarca estava no inconsciente coletivo de pessoas mais politizadas e de esquerda e a sua realização visava atingir um grupo maior.

Bruno Barreto, assim como Sérgio Rezende, possui uma longa trajetória na história do cinema brasileiro. Ele começou muito jovem e em família. O seu pai, Luis Carlos Barreto, teve expressiva atuação na produção dos filmes do Cinema Novo e depois continuou a sua carreira como produtor de muitos filmes. Bruno iniciou sua carreira com o filme Tati, a garota (1973), e em 1976, dirigiu o filme de maior bilheteria do cinema nacional, Dona Flor e seus dois maridos. Em seu depoimento que está no livro O cinema da retomada, ele aponta uma característica dos filmes da retomada, ou seja, a narratividade. Há a visão de que o cinema brasileiro desprezou a função narrativa e, quando se preocupou com essa, obteve sucesso. Ao analisar os filmes da retomada, Bruno Barreto ponderou: “por isso a resistência do público brasileiro aos filmes brasileiros diminuiu consideravelmente” (NAGIB, op. cit. p. 92). No entanto, essa visão está esquecendo, por exemplo, as grandes bilheterias que o cinema nacional obteve nos anos 70. Podemos começar inclusive com o filme do próprio Bruno Barreto, Dona Flor e seus dois maridos, que obteve mais de doze milhões de espectadores, mas podemos mencionar: A dama da lotação (1978), de Neville D’Almeida, com 7,5 milhões; Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977), de Hector Babenco, com cinco milhões; Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues, com dois milhões e quatrocentos mil. 6 Portanto, devemos ao menos relativizar essa afirmação de resistência ao cinema brasileiro.

No depoimento de Bruno Barreto percebemos que este teve um posicionamento privatizante em relação ao cinema, mas depois mudou de visão, argumentando que, com exceção dos Estados Unidos, país em que Bruno morou por muitos anos, o cinema constitui-se em uma atividade subsidiada. O posicionamento político de Bruno Barreto, que logicamente acabou repercutindo no filme O que é isso companheiro?, considera o engajamento partidário ou ideológico um estorvo para a atividade criativa. Isso fica claro, na seguinte frase: “Não tenho muito respeito por artistas politicamente engajados, que têm um discurso ideológico, acho isso extremamente pobre e limitador” (NAGIB, op. cit. p.93).

Em relação ao cinema da retomada, Ismail Xavier considera que o cinema brasileiro, apesar de não conseguir realizar uma síntese elaborada ou uma grande obra como a de Glauber Rocha, está mais leve e aliviado, “caminha menos culpado, sem carregar o peso das grandes decisões nacionais, sem aquele sentimento de urgência em que cada filme mostrava atrás da câmera um intelectual a diagnosticar o país” (XAVIER, 2001, p.54).

Depoimento de cineastas italianos e a retomada.

Na Itália das décadas de 60 e 70 do século passado houve uma grande produção de filmes com ênfase na política. No livro Cinema político italiano. Anos 60 e 70, de Ângela Prudenzi e Elisa Resegotti, existe um ensaio, artigos de críticos, e depoimentos de dezesseis cineastas que produziram filmes nos anos sessenta e setenta.  Como se trata de um livro recente (2006), há um bom distanciamento do período em que foram produzidos os filmes. Podemos observar esse distanciamento no depoimento do cineasta Vittorio de Seta, quando este afirma: “é preciso dizer que, naquele tempo, todo o cinema era de esquerda. Hoje quase nos envergonhamos de dizer isso, mas havia aquela crença, aquela expectativa de poder mudar o mundo” (PRUDENZI, RESEGOTTI, 2006, p. 94). Evidentemente não estamos diante de nenhuma novidade, mas não deixa de ser importante pensar essa questão, ou seja, o desejo de algumas cinematografias daquele período, com o desejo de tentar mudar o mundo e nos dias atuais a inibição, o receio de assumir tal postura.

Na apresentação realizada dos irmãos Tavianni7, no livro mencionado acima, estes são caracterizados como um dos poucos cineastas que não fizeram concessões ao mercado. Essa idéia é reforçada pelo fato de que durante quarenta anos de carreira produziram apenas quinze filmes. Na ótica de Ângela Prudenzi e Elisa Resegotti, isso demonstra o rigor e dedicação que estes cineastas possuem ao fazer um filme. Numa visão capitalista essa característica dos irmãos Tavianni se apresenta como demérito, uma vez que nessa perspectiva importa a quantidade e lucratividade e não a qualidade da produção em si. No depoimento de Vittorio Taviani (ele representa a dupla publicamente), ao falar sobre sua juventude, este apresenta a importância para a vida ter sentido, de uma “ética cuja força residia no fato de convivermos sem distinções de classe”. (PRUDENZI, RESEGOTTI, op.cit., p. 106) Também há uma referência importante a uma influência cinematográfica, a do neo-realismo italiano. Taviani afirma que foram impactados por essa linguagem nova, que mostrava, por exemplo, características do sul do país que eles nem imaginavam. Há uma menção e admiração, tanto aos filmes, como a pessoa de Glauber Rocha. No depoimento do cineasta Bernardo Bertolucci, este fala da convivência com os jovens brasileiros, Glauber Rocha, Paulo César Saraceni e Gustavo Dahl.

Entretanto houve um momento de crise dos ideais. As conseqüências dessa crise ainda se manifestam nos anos noventa do século passado, momento da realização de Lamarca e O que é isso companheiro? e atinge os nossos dias. No depoimento de Vittorio Tavianni, ele coloca a visão de que no período dos anos sessenta era fácil enxergar o bem e o mal, mas que essa realidade modificou-se e tornou-se complexa. Ele enfoca a crise dos ideais, citando seu filme, Os Subversivos (1967), onde há a seguinte conjuntura: “Cada um dos protagonistas manifesta a seu modo um mal-estar por não saber mais o que fazer, por sentir que as respostas que até naquele momento vinham da política já não eram suficientes”. (PRUDENZI, RESEGOTTI, op. cit. p. 107).

Lucia Nagib escreveu o livro A utopia no cinema brasileiro, onde a retomada do cinema brasileiro é estudada, através da análise de filmes, como Terra Estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995), Central do Brasil (Walter Salles, 1998), Crede-mi (Bia Lessa e Dany Roland, 1997) O Invasor (Beto Brant, 2002), Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002), dentre outros. Lúcia Nagib analisa a questão da utopia, bastante presente tanto nos filmes políticos italianos dos anos sessenta e setenta, como no cinema novo brasileiro. Esta autora estabelece um período dentro da denominada retomada do cinema brasileiro. O filme Terra Estrangeira (1995) representaria, principalmente para o cinema, o fim de um período de desânimo e falta de perspectiva, iniciado a partir do governo Collor. Inclusive os personagens desse filme possuem como principal objetivo, deixar o Brasil e tentar a vida na Europa, uma vez que o governo de Collor não oferecia muitas expectativas. A partir desse momento, de acordo com Lúcia Nagib, existe a ascensão da utopia em vários filmes, como Corisco e Dada (1996), Baile Perfumado (1997) e Crede-mi (1997). Essa fase termina com Abril Despedaçado (Walter Salles, 2001), onde ocorre uma decadência utópica. Esse período de utopia no cinema brasileiro corresponde a um momento de “certo otimismo”, em relação ao país, vivido principalmente no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, onde além do Plano Real havia certa crença no neoliberalismo, como se o país estivesse “entrando nos trilhos”.

Na sua análise, Lúcia Nagib afirma que assim como o cinema novo passou por uma fase utópica, seguida de um declínio, o cinema da retomada também passou por isso. No caso do cinema novo, a primeira fase pode ser exemplificada com o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1963), em que o desejo de revolução é evidente. No período pós-golpe militar de 1964, surgem filmes como O Desafio (Paulo César Sarraceni, 1964) e Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967), em que a perplexidade toma conta diante da nova situação. Em O Desafio, o intelectual protagonista está em crise, assim como em Terra em Transe. No final deste último, o personagem Paulo Martins acena com a possibilidade da luta armada, para enfrentar a situação de adversidade. Em relação à questão da utopia, recorreremos a uma questão levantada por Lucia Nagib:

O momento da retomada da produção cinematográfica no Brasil, a partir de meados de 1990, trouxe de volta mitos e impulsos inaugurais ligados à formação do Brasil e á identidade nacional, abrindo novamente espaço para o pensamento utópico. Mas, num mundo globalizado, pós-utópico e desprovido de propostas políticas, em que projetos nacionais há muito deram lugar a relações transnacionais, a nova utopia brasileira necessariamente significou olhar para trás e reavaliar propostas centradas na nação. (NAGIB, 2007, p. 25)

Nessa perspectiva, o cinema da retomada apresenta-se nostálgico e pronto para homenagear os cineastas do passado, ao contrário do cinema novo, que possuía uma postura bastante crítica e irreverente em relação aos seus antecessores. Os integrantes do cinema novo se colocavam na posição de estar criando uma cinematografia nova, assim como ocorria na Europa. Nesse sentido, os cineastas da retomada são mais modestos, tanto na questão estética, como na possibilidade de interferência na realidade. Naturalmente a conjuntura pós-guerra fria, influenciou neste posicionamento. Enquanto o cinema novo possuía uma ênfase no caráter nacional, muitos filmes da retomada possuem uma postura transnacional. Assim o diretor “Walter Salles sente-se à vontade fazendo filmes em português, inglês ou espanhol, como no latino-americano Diários de Motocicleta” (NAGIB, op. cit. p. 21).

Retomando a questão do cinema político italiano, abordaremos algumas questões levantadas no depoimento do cineasta Bernardo Bertolucci. Este começa dizendo que os filmes dos anos sessenta e setenta possuíam um grande potencial devido à conjuntura histórica vivida naquele período. Em relação a seu filme Antes da Revolução (1964), realizado quando era jovem e onde a chama da utopia se colocava de maneira intensa, Bertolucci considera o filme muito pessoal, ou seja, o protagonista possui muita relação com o que o jovem Bertolucci pensava a respeito da vida. Sobre essa questão o cineasta afirmou: “Maior parte dos jovens com um discurso contra a moderação, para não dizer o reformismo do Partido Comunista, naquele momento nada mais era do que um olhar para a política de modo muito romântico, até infantil”. (PRUDENZI, RESEGOTTI, op. cit. p. 126) Além dessas questões, Bertolucci coloca uma preocupação com a linguagem cinematográfica adotada por certos filmes políticos, lembrando que estes “eram na verdade, escritos e narrados à maneira de velhos filmes, e não havia nenhuma experimentação”. (Ibid.p. 130) .

Filmes do cinema político italiano dos anos 60 e 70 e a retomada.

Para enriquecer a nossa reflexão, analisaremos dois filmes italianos deste período, A Batalha de Argel (Itália, 1966, Gillo Pontecorvo) e Sacco e Vanzetti (Itália, 1971, Giuliano Montaldo). O primeiro a temática se aproxima aos filmes Lamarca e O que é isso companheiro?, ou seja, a atuação de grupos guerrilheiros. O filme começa com uma unidade narrativa, onde um homem esquelético e acabado, depois de uma sessão de tortura, acaba aceitando mostrar o esconderijo onde estão outros líderes da FLN, organização guerrilheira criada para tentar a independência da Argélia. Não vemos a tortura, mas sim um homem trêmulo, desesperado e humilhado, uma vez que é obrigado a vestir o uniforme do exército francês e mostrar o esconderijo onde estão seus companheiros. Depois da chegada ao esconderijo inicia-se um enorme flash-back, onde se desenvolve o filme. No início deste há uma preocupação esboçada por um líder guerrilheiro, de primeiro organizar e unificar os argelinos, para depois atacar os franceses.

No filme A Batalha de Argel, a presença da população argelina é intensa. Depois de um ataque francês a rebeldia é mostrada e percebemos uma grande união. Nos momentos de colocar bombas, as mulheres são representadas com dignidade e com solidariedade em relação à causa guerrilheira. Também a população sempre está pronta a esconder um líder quando se faz necessário. No caso dos filmes Lamarca e O que é isso companheiro? isso não acontece. Em Lamarca o primo de Zequinha sai para denunciar Lamarca e seu companheiro. Talvez isso ocorra, por que como mostraram alguns autores, como Lúcia Nagib, os filmes da retomada tendem a enfocar os dramas dentro de uma linha mais individual do que coletiva. Podemos questionar, se a opção do diretor Gillo Pontecorvo, de representar a população argelina sempre pronta e unida, não se trata de uma visão muito idealizada.

No livro Cinema Político Italiano, existe um ensaio, intitulado O Paraíso do espectador, de José Carlos Avellar.  Neste o autor aborda a cena de tortura mencionada acima: “Esses olhos dentro da cena, fixos nos olhos do espectador na sala de cinema, são uma presença especialmente incômoda: o olhar mudo desse espectador torturado interfere no nosso modo de ver” (PRUDENZI, RESEGOTTI, op. cit. p. 176). Essa questão dessa presença incômoda pode estar relacionada com uma visão de que certos filmes que causam incômodos ou dificuldades ao espectador conseguem levar este a uma reflexão e crescimento intelectual. Ao contrário filmes que não colocam muitas dificuldades de entendimento, podem seduzir, mas não contribuem para o crescimento do espectador.

No filme O que é isso companheiro? temos imagens alternadas dos guerrilheiros, discutindo sobre sua próxima ação, com os militares torturando o personagem Oswaldo que havia sido preso em um assalto a banco. Logo após a prisão deste, a câmera focaliza um prédio com a bandeira do Brasil na frente, e o som do gemido em off de Oswaldo. Dentro do prédio, dois policiais de terno na frente, e atrás militares fardados arrastando Oswaldo. No aparelho9, Maria critica Oswaldo dizendo que foi um frouxo por não ter atirado no guarda. No retorno a Oswaldo, temos uma cena de tortura, um “afogamento”. Ela possui um tom eufemístico perto do que imaginamos como uma tortura real, ou se comparada com cenas de outros filmes, como Lamarca e Roma Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, ou ainda tendo como referência depoimentos de torturados.

Em relação ao filme A Batalha de Argel, José Carlos Avelar, nos informa que vários interpretes do filme não são atores profissionais. O torturado da cena inicial, ele é um ladrão que viveu em Argel durante a guerra civil. Depois de trabalhar no filme, voltou para a prisão. Saadi Yacef, um dos produtores do filme, faz o seu próprio papel, o de Djafar, enquanto o seu sobrinho, fez o garoto Omar e um camponês analfabeto, fez o papel de Ali La Pointe. Avelar considera A Batalha de Argel, uma espécie de ponte entre o neo-realismo italiano e o cinema político italiano dos anos 60 e 70. O neo-realismo italiano surgiu na década de 40, do século passado e podemos mencionar o filme Roma, cidade aberta (1945, de Roberto Rosselini), como grande marco desta vertente, que questionou o modelo hegemônico de se fazer cinema, ou seja, o hollywoodiano. A ênfase do neo-realismo italiano está em mostrar a realidade, sem o melodrama, as grandes estrelas e toda encenação glamourosa produzida nos estúdios. O cinema político italiano dos anos sessenta e setenta seguiu esses passos, fazendo algumas modificações, como por exemplo, a de que não necessariamente é preciso ficar colado na realidade, para passar alguma visão de mundo sobre a sociedade. Além disso, não possuía o desejo, de “somente constatar” a realidade, mas também de apontar soluções.

Ao pensar nos filmes Lamarca e O que é isso companheiro?, podemos observar um claro critério na seleção dos atores. Atores profissionais e de preferência conhecidos da televisão. Essa característica fica mais evidente em O que é isso companheiro?, que apresenta os seguintes atores: Pedro Cardoso, Luis Fernando Guimarães, Fernanda Torres, Cláudia Abreu, Matheus Natchergaele, Selton Mello, Du Moscovis, dentre outros. O cantor Lulu Santos faz um pequeno papel, o guarda que recebe uma denúncia sobre o seqüestro do embaixador norte-americano. Naturalmente enxergamos no critério esboçado acima uma estratégia mercadológica. Em Lamarca há certa nuança. O protagonista, que faz o papel de Carlos Lamarca, Paulo Betti contracena com um ator desconhecido do grande público, Eliezer de Almeida (Zequinha). Também há uma cena em que temos uma pequena participação de um camponês atuando. Em nossa primeira imagem, constatamos o cantor Lulu Santos atuando em O que é isso companheiro?:

Figura 1. Atuação do cantor Lulu Santos em O que é isso companheiro?
Figura 1. Atuação do cantor Lulu Santos em O que é isso companheiro?

Ao analisar uma matéria do Jornal do Brasil, sobre o filme Lamarca (10/06/1994), na seção do leitor, encontramos um apaixonado pelo filme e pela recuperação do cinema nacional. Em relação a Lamarca teceu as seguintes considerações: “O filme é uma obra de arte, é um filme forte na linha do neo-realismo italiano. As imagens do interior nordestino são um soco no estômago do pequeno-burguês”.10 Essa visão apresenta uma percepção limitada, já que o filme de Sérgio Resende não apresenta características do neo-realismo. Este buscava um realismo cru, sem efeitos de luz, em preto em branco, com atores amadores e de preferência o próprio povo atuando. Nas cenas em que Lamarca e Zequinha estão no morro, na área de campo, existe um efeito de luz bastante intenso e aprimorado. Portanto, se há alguma relação com o neo-realismo italiano, como a apresentação do povo pobre, em termos estéticos há muitas diferenças. O ator Paulo Betti fez exercícios para enrijecer os músculos e uma dieta em que emagreceu 15 Kg. Preocupou-se até em estudar o tipo de caligrafia do capitão guerrilheiro para realizar uma reconstituição primorosa. Essa postura possui bastante ligação com a linha cinematográfica clássica, onde há uma busca de naturalidade e de precisão. Na imagem abaixo podemos constatar o esforço do ator Paulo Betti:

Figura 2. Momento de fuga de Lamarca. Constatamos o emagrecimento do ator Paulo Betti e o personagem Zequinha, com expressão de preocupado. Durante o filme há um enaltecimento do personagem Lamarca. Filme Lamarca.

Giuliano Montaldo, um cineasta importante do cinema político italiano, realizou vários filmes com temática histórica, como Sacco e Vanzetti (1971) e Giordano Bruno (1973).  Sacco e Vanzetti conta à história de dois anarquistas italianos que migraram para os Estados Unidos, no início do século XX. Foram acusados injustamente de homicídio, e são executados na cadeira elétrica. Em relação ao início do filme, temos uma unidade narrativa de três minutos antes de começar os créditos. A ação se desenvolve de maneira tensa, e a primeira imagem é de um carro preto escrito Police Patrol. A cena ocorre no amanhecer, com muitos soldados caminhando (o som dos passos é marcante), quebrando vidros, arrombando portas e destruindo papeis. Na parede há a placa: Circolo del Lavoratori Italiano. Pôster de Karl Marx é lançado no chão, junto com outro pensador.

Numa comparação com os filmes Lamarca e O que é isso companheiro?, podemos constatar que em Sacco e Vanzetti, os diálogos são mais politizados, a questão política é central e intensa.  No filme O que é isso companheiro? há pouco espaço para discussões políticas e ficamos sem saber as motivações do projeto guerrilheiro. A estrutura narrativa do filme fica em função de como poderão ocorrer as coisas concretas, como, por exemplo, como a personagem René conseguirá informações?, como acontecerá o seqüestro do embaixador?, como será a sua liberação?. De tal maneira que a questão política fica esvaziada.  Além disso, não há referencias a evento culturais e políticos do período, como as greves de Osasco (SP) e Contagem (MG) em 1968, as enormes passeatas ocorridas. Essa movimentação possuía relação com a atuação da guerrilha. O estilo cinematográfico do filme, ou seja, um thriller contribui para uma valorização da ação em detrimento do debate político.

No livro História e Cinema, existem vários artigos sobre a relação entre essas duas áreas. Há um artigo de Henri Arraes Gervaiseau, intitulado Entrelaçamentos: Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho. O autor faz uma análise desse filme, é afirma que a ação da protagonista (a viúva Elizabeth) não é supervalorizada em detrimento das outras pessoas. Ao contrário ela sempre se coloca como nós quando se refere, por exemplo, ao sofrimento vivenciado por ela durante todos os anos de clandestinidade devido à ditadura militar (1964 a 1985). Há a recordação dos companheiros que foram mortos e também no filme existem os depoimentos dos “sobreviventes” que contam das terríveis torturas sofridas, portanto o sentimento faz parte de um grupo específico.

Sem mencionar nenhum filme, no final do seu artigo, Gervaiseau, comenta sobre filmes de ficção posteriores a Cabra marcado para morrer sobre a ditadura militar, em que há um deslocamento operado para a esfera psicológica, onde ocorre “uma sobreposição entre a moldura que a dimensão sócio-histórica oferece e a evolução individual dos personagens” (Ibid.p. 235). Em Lamarca há uma concentração das qualidades em único personagem, de tal maneira, que os outros personagens, como Clara, Zequinha, Fio são muito submissos e “inferiores” a Lamarca. Essa característica possui muita relação com o momento em que o Brasil vivia nos anos 90 do século passado, onde havia uma valorização do individualismo. Ao contrário, os filmes do cinema político italiano dos anos 60 e 70 estavam em um contexto diferente e apresentavam a perspectiva da utopia de forma mais intensa.

Bibliografia.

AGUIAR, Marco Alexandre. A disputa pela memória: os filmes Lamarca e O que é isso companheiro? Assis, 2008. Tese. Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista. (Área de conhecimento: História e Sociedade).

BOSI, Ecléa, Memória e Sociedade. Lembranças de Velhos. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 54.

GERVAISEAU, Henri Arraes. Entrelaçamentos: Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho. CAPELATO, Maria Helena… [et al.]. História e Cinema. São Paulo: Alameda, 2007.

NAGIB, Lucia, O cinema da retomada. São Paulo: Ed. 34, 2002.

_____ A utopia no cinema brasileiro. São Paulo: cosacnaify, 2007.

KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler. Uma história psicológica do cinema alemão. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1988. p. 20.

MORETTIN, Eduardo Victorio. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro. História Questões & Debates. Ano 20 – n. 38 – Janeiro a Junho de 2003. p. 29.

PRUDENZI, Angela, RESEGOTTI, Elisa. Cinema político italiano. Anos 60 e 70. São Paulo: cosacnaify, 2006. P. 94.

SILVA NETO, Antônio Leão. Dicionário de Filmes Brasileiros. São Paulo: A. L. Silva Neto, 2002.

XAVIER, Ismail. O Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p. 54.


1 AGUIAR, Marco Alexandre. A disputa pela memória: os filmes Lamarca e O que é isso companheiro? Assis, 2008. Tese. Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista. (Área de conhecimento: História e Sociedade). Ela se encontra no site www.assis.unesp.br.

2 Lamarca. Direção: Sérgio Rezende. Produção: Mariza Leão e José Joffliy. Intérpretes: Paulo Betti, Carla Camurati, José de Abreu, Deborah Evelin, Eliezer de Almeida, Ernani Moraes, Roberto Bomtempo. Roteiro: Alfredo Oroz e Sérgio Rezende. Baseado no livro Lamarca, o capitão da guerrilha, de Emiliano José e Oldack Miranda (130 min). Rio de Janeiro, 1994.  Sinopse: O filme focaliza o último ano da vida de Carlos Lamarca (1971), e através de flash-backs, mostra a sua história. Trata-se de uma interpretação da história verídica da vida do personagem. O capitão Carlos Lamarca, um dos melhores atirador do exército brasileiro, rebela-se contra os militares no poder e adere à guerrilha de esquerda. Transforma-se num revolucionário, que sonhava com um país livre de injustiças, opressões e misérias.

3 O que é isso companheiro? Direção: Bruno Barreto. Produção: Lucy Barreto e Luis Carlos Barreto. Intérpretes: Alan Arkin, Fernanda Torres, Pedro Cardoso, Luis Fernando Guimarães, Cláudia Abreu, Nélson Dantas, Matheus Natchergaele, Maurício Gonçalves, Caio Junqueira, Selton Mello, Du Moscovis, Caroline Kava, Fernanda Montenegro, Lulu Santos, Milton Gonçalves, Othon Bastos. Roteiro: Leopoldo Serran. Baseado no livro homônimo de Fernando Gabeira (105 min) Rio de Janeiro, 1997. Sinopse: Trata-se da história do sequestro do embaixador dos Estados Unidos Charles Elbrik ocorrido em Setembro de 1969. O sequestro é realizado por um grupo de jovens, pertencentes ao Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8) que se une a outro grupo guerrilheiro Aliança Libertadora Nacional (ALN). Os guerrilheiros condicionam a soltura do embaixador, a leitura de um manifesto nos principais meios de comunicação no horário nobre e a libertação de quinze companheiros presos.

4 A direção deste filme é de Sergei Eisenstein, importante cineasta russo do início do século XX. Em O Encouraçado Potemkim (1925) houve a preocupação de não enaltecer nenhum indivíduo (protagonista) ou casal, como normalmente ocorre nos filmes norte-americanos, ao contrário há uma ênfase na atitude coletiva dos marinheiros revolucionários. A cena da escadaria de Odessa, com cortes muitos rápidos, teve grande impacto e constituiu-se numa inovação cinematográfica. O “realismo soviético” foi uma das tendências rebeldes à hegemonia do cinema norte-americano.

5 Filme de 1915, com direção do cineasta norte-americano David Wark Griffith. Este criou as bases do cinema Hollywoodiano, como o flashback e montagem paralela. O filme O Nascimento de uma Nação, enfocou a Guerra da Secessão, possuía um ponto vista sulista e instigou a Ku Klux Klan. O papel dos negros era realizado por atores brancos “pintados de negros”. Grifft fazia um filme por semana e no início do cinema, os filmes eram muito curtos. Assim quando este fez um filme de uma hora, havia um receio da empresa cinematográfica, argumentando que o público não agüentaria um filme com esta duração.

6 Esses números de bilheteria foram retirados do Dicionário de Filmes Brasileiros de Antônio Leão da Silva Neto. Exceção do filme A Dama da Lotação, onde o número de espectadores é retirado do depoimento de Neville D’Almeida contido no livro O cinema da retomada.

7 Os irmãos Vittorio Taviani e Paolo Taviani, sempre trabalharam juntos na direção, formando uma dupla de sucesso nos anos 60 e 70 do século passado.

9 A denominação aparelho trata-se de uma linguagem específica dos guerrilheiros dos anos 60 e 70. Significava um apartamento ou casa onde os guerrilheiros viviam na clandestinidade.

10 MORIER Luiz. Lamarca obra de arte para leitor. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro: 10 jun. 1994. Caderno B.

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