A ANTÍTESE DOS CORPOS: Os opostos que se atraem na narrativa homoerótica juvenil Você Não Está Sozinho

ANTITHESIS OF THE BODIES:

Opposites that attract each other in the teen homoerotic narrative You Are Not Alone

João Paulo Lopes de Meira Hergesel[1]

Resumo: Este artigo apresenta a relação entre cinema, juventude e homoerotismo, pelo ponto de vista semasioestilístico, com a finalidade de investigar a antítese como recurso para poetizar o homoerotismo masculino-púbere na narrativa audiovisual, com base na leitura estilística de uma cena (de 28’59” a 31 ’06”) do filme dinamarquês Você não está sozinho (Du er ikke alene), Ernst Johansen e Lasse Nielsen, 1987.

Palavras-chave: Narrativas; cinema juvenil; homoerotismo; semasioestilística; antítese.

Abstract: This paper presents the relation between cinema, youth and homoeroticism, by the semasiostylistic point of view, in order to investigate the antithesis as a resource to poeticize the pubescent male homoeroticism in an audiovisual narrative, based on the stylistic reading of a scene (from 28’59” to 31 ’06”) of the Danish film You Are not alone (Du er ikke alene), Ernst Johansen and Lasse Nielsen, 1987.

Key words: Narratives; teen movies; homoeroticism; semasiostylistics; antithesis.

1. A semasioestilística do homoerotismo juvenil no audiovisual

            Narrativas adolescentes, quando são eróticas, conseguem despertar o interesse do público-alvo com mais facilidade. Aqui, consideramos erótico não somente o relacionado ao ato sexual, mas o que, “como forma específica de linguagem, transcende o ato sexual para invadir a consciência” (SILVA, 2007, p. 76). Ao definir o erotismo como uma forma de comunicação, Carlos (2010, p. 17) mostra que a linguagem erótica é “capaz de abraçar o destinatário de forma concreta, sinestésica, materializando-se através de uma aproximação com o seu objeto, como se fosse possível ser aquilo que define ou nomeia”.

Entendemos o homoerotismo, portanto, como uma forma de conquista, uma relação harmoniosa, entre pessoas ou demais seres do mesmo gênero, podendo ambas estar concentradas na narrativa ou, até mesmo, na relação obra-espectador. O termo, por sua vez, é mais usado como um sinônimo atualizado de homossexualismo ou homossexualidade, dado que estas duas palavras remetem ao século 19, quando da sua criação (PAIVA, 2007).

Segundo Paiva (2007), “a história do cinema tem mostrado como o homoerotismo foi sendo diagnosticado como anormalidade, doença, desvio, sendo sistematicamente associado à loucura”. Acreditamos, no entanto, que há exceções e, como um dos principais objetivos deste trabalho, apresentamos uma delas: a relação entre os protagonistas do filme dinamarquês Você Não Está Sozinho (Du er ikke alene), Ernst Johansen e Lasse Nielsen, 1978.

O filme, cujo cenário é uma escola interna apenas para jovens do sexo masculino, foca-se na história de dois garotos: Kim, de 12 anos, filho do diretor do colégio e dono de um sorriso muito carismático que estilematiza[2] o personagem; e Bo, de 15 anos, estudante do colégio que se torna o melhor amigo de Kim. Juntos, os dois experimentam as aventuras da adolescência, desde festinhas à base de bebidas alcoólicas a dramas juvenis como a descoberta da sexualidade.

Utilizamos como recorte a cena que vai dos 28’59” aos 31’06” (VOCÊ NÃO ESTÁ SOZINHO, 2012), na qual fica evidente, por meio da relação homoerótica presente tanto no diálogo como no contato dos corpos, o início de uma paixão adolescente entre os garotos. Assim, expomos uma discussão sobre o uso da antítese como principal recurso expressivo para poetização da sequência, partindo do ponto de vista da semasioestilística.

A semasioestilística, conforme o próprio nome induz, é o campo de estudo que engloba a semasiologia e a estilística. Com isso, defendemos que “os valores expressivos/impressivos também podem atuar no campo dos pensamentos e sentimentos” (HENRIQUES, 2011, p. 148). Dentro da semasioestilística, portanto, encontram-se as figuras semânticas — entre elas, a antítese.

Compondo em conjunto com o paradoxo e o oximoro o grupo denominado contraste, que “consiste em explorar com expressividade palavras e ideias de campos semânticos opostos ou excludentes” (HENRIQUES, 2011, p. 148), a antítese “explora a oposição entre duas ideias” (idem), geralmente em elementos opostos ou que não interfiram entre si — diferente do paradoxo e do oximoro, que conciliam “duas ideias opostas de modo a contrariar o senso comum” (idem).

Na visão da dialética hegeliana, a antítese é vista como a negação de uma tese, como uma contradição a uma afirmação — “à tese Todas as coisas são ser deve ser contraposta a antítese Todas as coisas não são ser ou Nada é ser” (LIMA, 1994, p. 443). Para Lima (1994), tanto a tese como a antítese são declarações falsas, mas, quando unidas, têm grande relevância e justificam-se, pois “opostos contraditórios, quando somados, totalizam o universo” (p. 444).

Assim, dado que “não há uma modalidade de linguagem o suficientemente correta que possa traduzir o sentido das experiências afetivo-sexuais” (PAIVA, 2007, p. 15), oferecemos este pensamento sobre o homoerotismo no cinema juvenil e o uso da semasioestilística como proposta para refletir sobre — ainda que seja somente uma parcela de — a poética inserida em uma narrativa audiovisual que aborda a descoberta da sexualidade nos anos iniciais da adolescência.

2. A antítese como recurso expressivo: algumas observações

Uma relação homoerótica — com inserção do ato sexual, inclusive — que tem a finalidade de contribuir para autodescoberta da sexualidade pode ocorrer antes mesmo da puberdade. Ferreira (2004) comenta que “é cada vez mais cedo que se experiencia, no caso das sexualidades masculinas, o corpo de um outro homem” (p. 45), mas explica que isso “nem sempre será a elaboração de uma identidade homossexual ou mesmo a identificação de si mesmo como homossexual” (idem).

Se remetermos à era medieval, por exemplo, veremos que existia uma “ideia de que a juventude é uma época de rebeldia e mesmo da existência de uma sexualidade não inteiramente controlável” (FERREIRA, 2004, p. 45). Essa visão de normalidade, no entanto, foi dissolvida com o tempo e, em meio à burguesia, as experimentações homossexuais já eram feitas de forma clandestina.

Para romper o grande tabu da preocupação em abordar o tema com os adolescentes, surgiu o filme dinamarquês Você Não Está Sozinho (Du er ikke alene), Ernst Johansen e Lasse Nielsen, 1978. Embora no Brasil a obra tenha sido censurada para menores de 18 anos — talvez pelas cenas de nudez infantojuvenil, de insinuações sexuais e de ingestão de bebidas alcoólicas —, a intenção da narrativa é claramente atingir o público com idades entre 12 e 15 anos, em especial o do sexo masculino.

Focada na descoberta do corpo e na tentativa de apresentar ao espectador as dúvidas com relação à puberdade, a narrativa apresenta o dia a dia de diversos garotos adolescentes que vivem em um colégio interno e sempre se encrencam por possuírem revistas e filmes pornográficos e por escaparem para aventuras no campo, com direito a bebidas alcoólicas e flertes. De forma sensível, a narrativa não se prende ao físico, mas também ao sentimentalismo, revelando cenas em que os garotos choram por saudades da família ou que desabafam sobre alguma paixão fora da escola.

Como proposta de compreensão da forma “doce, lírica e honesta” que, segundo a sinopse da quarta-capa do DVD, é utilizada para compor a narrativa, apresentamos uma leitura estilística, com ênfase no uso da antítese, de uma das cenas mais relevantes do filme: o momento em que Kim e Bo tomam banho juntos e, enquanto se ensaboam, conversam sobre mudanças físicas e sexualidade.

2.1. O preto no branco: do vestido ao descoberto

A cena se inicia em um plano detalhe[3], apresentando o pé esquerdo de Bo coberto por uma meia preta. Kim está tirando a meia. Pelo senso comum, temos o pé esquerdo como símbolo da má sorte; iniciar a cena com o pé esquerdo presume que algo poderá sair do controle. Além disso, para Chevalier e Gheerbrant (2012, p. 696), “o pé é um símbolo erótico, de poder muito desigual, mas particularmente forte nos dois extremos da sociedade”. A meia, por sua vez, está cobrindo esse desejo sexual — até que ele é descoberto.

Notamos, também, a primeira antítese da sequência: o preto da meia contrastando com o branco da pele e do azulejo do banheiro. Para Chevalier e Gheerbrant (2012), o preto e o branco são opostos, mas são iguais em valor absoluto, pois podem “situar-se nas duas extremidades da gama cromática (…) [e o preto] torna-se então a ausência ou a soma das cores” (p. 740). Aqui temos ainda a formação de uma síntese, ou seja, a negação da negação, e que surge após a comprovação da falsidade da tese e da antítese (LIMA, 1994).

Fig. 1: Registro do frame 28'59'' do filme.
Fig. 1: Registro do frame 28’59” do filme.

Antes de o pé ser totalmente descoberto, a câmera faz um percurso de subida, mostrando que Bo ainda está de calça jeans, porém já se encontra sem camisa. Notamos, então, outra antítese: os membros inferiores vestidos e o tronco descoberto, e entendemos que isso gera um equilíbrio, de que a retirada das vestes deve ser feita vagarosamente e por partes. A câmera foca o rosto de Bo, com sua expressão séria e os olhos observadores.

Kim é apresentado em outra câmera, em plano conjunto. A linha dos azulejos remete aos meridianos e o garoto está centralizado. Kim usa uma camisa de manga-longa marrom e short azul. O olhar está direcionado para baixo e ele abre o zíper do short. Revela-se uma cueca do tipo slip cor bege estampada. Ele deixa o short no chão. Como antítese, verificamos a manga-longa como vestimenta para o frio e o short como vestimenta para o calor; além disso, há a relação entre fechado e aberto, no objeto do zíper — em analogia, o que até então era secreto será revelado.

Kim começa a tirar a camiseta, desajeitadamente, iniciando pelas mangas (característica de criança). Revela-se o umbigo. Para Chevalier e Gheerbrant (2012, p. 659), “o ônfalo é universalmente o símbolo do centro do mundo”, ou seja, ao revelar o umbigo de Kim, entendemos que a narrativa passará a ser centrada nele a partir daquele ponto: excluem-se os outros garotos, as outras ações; o cotidiano de Kim torna-se (ou reforça-se a ideia de que é) o plot principal da trama.

Bo é apresentado novamente pela câmera inicial, em primeiro plano, destacando a rotatividade dos olhos, que observam Kim de cima a baixo, configurando outra antítese — desta vez, compreendemos que o recurso é utilizado para representar que a noção do que está ocorrendo não pode ser observada de apenas um ângulo, mas sim em dimensão geral. A expressão mantém-se séria. Kim é apresentado em outra câmera, já terminando de tirar a camiseta.

Kim joga a camiseta no chão, como fez com o short, e posiciona as duas mãos para tirar a cueca, segurando-a na parte da frente. A mão faz a volta, e ele desce a cueca pelas laterais. Revela-se a região genital, o corpo se curva para fazer a cueca passar pelas pernas, e o olhar do garoto, que precede o sorriso marcante, dirige-se a Bo. Para Chevalier e Gheerbrant (2004, p. 418), o pênis é “símbolo do poder gerador” ou, de forma mais dirigida à narrativa, símbolo da masculinidade.

Quanto à expressão facial dos garotos, observamos uma nova antítese: o sorriso em contraste com a seriedade. Entendemos que o sorriso de Kim indica a naturalidade para ele no ato de se despir na presença de um amigo também do sexo masculino; enquanto isso, para Bo, mais velho e com pensamentos mais maduros, assistir ao amigo sem roupa é uma espécie de surpresa, admiração.

2.2. O falo na tela: o belo e a fera

Um corte seco, e o chuveiro é exibido em plano detalhe. É um objeto pequeno, praticamente um cano metálico com curvatura em 90º, com a água caindo também de forma estreita. A câmera desce na mesma direção da água e focaliza Bo em primeiro plano. Ele está molhado, de olhos fechados e boca aberta. Água escorre pelo queixo. Em seguida, ele cospe a água que entrou na boca, mas torna a abri-la.

Se levarmos em consideração os planos anteriores, estabelecemos uma antítese do seco e do molhado. Consideramos o conceito de que “longe de significar falta de coração, o seco encobre o fogo da paixão. O seu oposto, a água, é a morte da alma” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2012, p. 808). Fica a dúvida: qual é a “alma” que morre nos jovens ao serem molhados? Sustentamos a hipótese de que essa alma refere-se à pureza de ambos, que passará a dar lugar para aos assuntos sexuais.

            Kim é apresentado em outra câmera. Ele está molhado, cabisbaixo, de boca cerrada, passando sabonete pelos ombros. A cabeça, que está em perfil, se levanta, o garoto abre os olhos e sorri para o que está à sua frente. Mas continua se esfregando.

Outra câmera exibe, em plano conjunto, com um pouco mais de distância, o espaço em que os garotos estão. É possível vê-los entre as paredes de azulejo. Há o pedaço de uma pia e de um espelho no enquadramento. Kim é exibido inteiro, mas Bo só é apresentado em seu lado direito. Percebe-se que ambos estão nus. Kim está semiagachado e esfrega as pernas, enquanto Bo esfrega as mãos na altura do tórax. A velocidade é a mesma: rápida. Bo entra totalmente em cena, a câmera sobe levemente, e Kim fica de perfil. Apenas aos 29’39”, é possível enxergar a região genital de ambos, em contraste.

Notamos, aqui, uma série de antíteses. A primeira é com relação à altura das mãos: as de Kim estão abaixo da cintura, na região das pernas, enquanto as de Bo estão acima da cintura, na região do tórax. Para Chevalier e Gheerbrant (2012, p. 592), “a mão é às vezes comparada com o olho: ela vê”; assim sendo, ao lavá-la, estão sendo limpos os olhos para que as situações possam ser compreendidas.

Outra antítese é quanto à postura dos garotos: Kim está praticamente agachado, enquanto Bo está com a coluna ereta. A postura ereta é “o primeiro e mais importante dos critérios comuns à totalidade dos homens e a seus ancestrais” (CHEVALIER; GHEENBRANT, 2012, p 946), enquanto a postura curvada “é o resumo mais adequado da evolução pela qual uma espécie animal diferenciou-se radicalmente das outras, dando início a um processo que resultaria, um dia, na bipedia e na postura ereta própria do homem” (CHEVALIER; GHEENBRANT, 2012, p 947). Podemos estabelecer uma analogia, portanto, entre a evolução humana e o desenvolvimento provocado pela puberdade: Kim é pré-púbere e, assim, ainda está na fase curvada; Bo já é pós-púbere e, consequentemente, encontra-se em postura ereta.

            Checamos essa abordagem da fase púbere no momento em que os pênis entram no enquadramento e ocorre a antítese entre o pênis infantil (ainda não desenvolvido), o belo, o delicado, e o pênis adolescido (com pelos ao redor), o feroz, viril. Sobre isso, Chavalier e Gheenbrant (2012, p. 705) dizem que o pelo é “símbolo da virilidade, benéfico se se encontra apenas sobre uma parte do corpo”, que é o que ocorre na cena. Sobretudo, fica a ideia de que, acima de qualquer orientação sexual, os personagens são biologicamente do gênero masculino. Por fim, ainda há, de maneira geral, a antítese dos corpos: Kim totalmente franzino e Bo encorpado e com músculos.

Fig. 2: Registro do frame 29'39'' do filme.
Fig. 2: Registro do frame 29’39” do filme.

O pênis de Kim desaparece de cena, mas o de Bo continua no enquadramento. Kim está esfregando o tórax, e Bo continua esfregando as mãos. Bo faz a pergunta: “Você nunca lava o pênis?”. Ambos passam a lavar as genitais, estabelecendo, desta forma, uma relação verbo-visual. Kim responde: “Claro”, enquanto Bo está esfregando o abdome. Bo indaga: “Não, me refiro puxando o prepúcio” e modifica a expressão facial, com um sorriso. Kim, ainda lavando o pênis, pergunta: “É necessário?”, e Bo explica: “Sim, por que se não, fede” (sic). Ambos direcionam o olhar para o pênis de Kim.

Neste início de diálogo, o assunto sobre sexualidade e higiene é abordado de forma natural e, aparentemente, didática, com o garoto mais velho ensinando o garoto mais novo. Se levarmos em consideração que ambos não são circuncidados, podemos vincular isso à ideia de Chevalier e Gheenbrant (2012, p. 740) de que “o prepúcio é a materialização da alma fêmea do homem”, indiciando que, embora os garotos possuam a genitália característica do sexo masculino, têm em si marcas da feminilidade.

2.3. Enrolando o alisado: a malícia e a ingenuidade

Bo volta à posição em que metade do corpo se esconde. Kim está com o braço ensaboado e tenta lavar as próprias costas. Bo aparece esfregando as mãos e é recebido com a pergunta de Kim: “Me passa sabão nas costas?”. Ele consente, dizendo que “Sim”. Bo se aproxima de Kim pelas costas e passa a lhe esfregar os ombros. A câmera registra Bo em primeiro plano e, à esquerda, apresenta parte da cabeça (perfil) de Kim. É possível perceber os diferentes tipos cabelos: Kim, liso; Bo, enrolado.

Os cabelos, “assim como as unhas e os membros de um ser humano, possuem o dom de conservar relações íntimas com esse ser” (CHEVALIER; GHEENBRANT, 2012, p. 153). O contraste entre os cabelos, numa cena predominantemente homoerótica, estabelece um equilíbrio na relação íntima entre Bo e Kim. Além disso, compreendemos que os cabelos dos garotos, “atando o ramalhete de virtudes da alma, é a vontade e o amor” (CHEVALIER; GHEENBRANT, 2012, p. 156).

Fig. 3: Registro do frame 30'00'' do filme.
Fig. 3: Registro do frame 30’00” do filme.

Bo pergunta: “Você tem educação sexual em seu colégio?”. Kim vira-se e, com cara de surpresa, pergunta: “Que se aprende nessas aulas?”. O rosto de Kim permanece no enquadramento enquanto Bo responde: “A evitar ter filhos”. Kim exibe novamente o sorriso marcante e comenta: “Isso eu já sei”. A mão de Bo continua esfregando o ombro direito de Kim, como se passasse a impressão de carinho.

Novamente, as mãos assumem um significado relevante para o texto. Ao posicionar as mãos sobre os ombros de Kim, Bo assume uma relação de atividade e passividade entre os garotos. Chevalier e Gheenbrant (2012, p. 592) explicam que “a mão é como uma síntese, exclusivamente humana, do masculino e do feminino; ela é passiva naquilo que contém; ativa no que segura”.

A conversa continua, com o rosto de Kim no enquadramento, em primeiro plano, e Bo acrescenta: “Aprende também como se masturbar”. O sorriso de Kim é substituído por uma expressão de dúvida seguida da pergunta: “Se masturbar?”. Bo explica: “Bater uma punheta”, e Kim, demonstrando estar sem graça e meio deslocado, sorri novamente e consente: “Ah, isso!”. Bo continua a conversa, insistindo no assunto: “Se pode fazer de muitas formas diferentes”. Kim tenta desviar o assunto: “E o que mais se aprende?”, com olhar de curiosidade. Concluímos que ocorre uma antítese de relações: ingenuidade, por parte de Kim, e malícia, por parte de Bo.

2.4. Entre o ainda não chegou e o já foi: o pré e o pós-púbere

O rosto de Bo é enquadrado: os olhos bem abertos, a boca em forma de bico, o pescoço girando a cabeça para os lados como se estivesse tentando se lembrar de algo. Bo então revela com sorriso torto: “Que o sexo é maravilhoso”. E abraça Kim, posicionando os lábios na orelha do garoto. Consideramos, aqui, uma antítese na comunicação: a aproximação da boca, representando a fala, ao ouvido, representando a audição; em outras palavras, Bo está ali para falar, passar informações ou ordenar, e Kim, para escutar, aprender, obedecer — situação que alonga a relação de atividade/passividade supramencionada.

            Bo fecha o sorriso e acalma os ânimos, como se estivesse compreendendo o que acontecia, e desvia o assunto: “Me passa o xampu?”. Kim entrega-lhe: “Toma”. E Bo agradece: “Obrigado”. A câmera se mantém fixa enquadrando o rosto de Bo em primeiro plano durante toda a ação. Bo fecha os olhos bem forte e esfrega os cabelos com as duas mãos, fazendo espuma. O foco corta-se para Kim, em plano americano. Debaixo do chuveiro, ele agita o frasco de xampu com a mão direita, automaticamente remetendo ao ato da masturbação. Kim fecha os olhos delicadamente e abre a boca antes de despejar xampu na cabeça, com os dois braços levantados, exibindo o tórax franzino e as axilas sem pelos (marco da infância). Notamos, nesses dois momentos, uma antítese entre a obrigação de Bo em lavar os cachos e a diversão de Kim ao massagear os fios.

A cena corta para Bo, em plano americano. Ele esfrega o rosto com as mãos, mantendo a expressão de seriedade, mas dá uma risada ao olhar para Kim e exclama: “Que porra está fazendo?”. Ocorre, portanto, uma transformação na expressão facial e, consequentemente, uma antítese entre a seriedade e o riso — que, como já vimos, a relação entre sorriso e rosto sério perpassa toda a narrativa.

Kim é apresentado em outra câmera, em plano geral, sentado no chão do banheiro, com muita espuma ao redor. Kim brinca na espuma, jogando-a para o alto enquanto repete a fala de Bo: “Uau, o sexo é maravilhoso!”. Eis, então, a última antítese da sequência — a inocência de Kim contrastando com a maturidade de Bo — e a imagem que frisa a distinção entre a infância, o pré-púbere, e a adolescência, o pós-púbere.

Fig. 4: Registro do frame 31'06'' do filme.
Fig. 4: Registro do frame 31’06” do filme.

Vale, ainda, destacar em nossa leitura a presença da nudez masculina infantojuvenil como forma de poesia. Ainda que, para muitos espectadores, a amostragem do falo dos meninos possa provocar incômodo, o simbolismo do nu, neste caso, está relacionado à “pureza física, moral, intelectual, espiritual” (CHEVALIER; GHEENBRANT, 2012, p. 645), uma vez que, em nenhum momento, é possível notar a “vaidade lasciva, provocante” (idem) em prol da apelação.

3. Para encerrar este pensamento…

            Conforme a leitura apresentada a respeito desta cena que vai dos 28’59” aos 31’06” do filme dinamarquês Você Não Está Sozinho (Du er ikke alene), Ernst Johansen e Lasse Nielsen, 1978, a descoberta da sexualidade é tratada de forma gentil, sensível, abusando das simbologias e das virtudes estilísticas de pureza e naturalidade, notadas nas imagens e nos diálogos, texto verbal e não verbal.

Tais recursos estilísticos utilizados levam a crer que, ao tratar o homoerotismo no cinema juvenil, a narrativa, produzida no estilo coming-of-age story[4], faz uso de uma linguagem acessível (inclusive recomendada) à respectiva faixa etária. Entendemos, acima de tudo, que a relação entre Kim e Bo não configura um apelo sexual — não há ereções, masturbações, toques sensuais, plebeísmos linguísticos ou qualquer outra forma de obscenidade —, e sim uma aproximação natural entre dois garotos que passam pela fase da autodescoberta.

Quanto ao uso da aproximação de elementos opostos (o preto e o branco; o sorriso e a seriedade; o vestido e o descoberto; o seco e o molhado; o liso e o cacheado; a inocência e a malícia; o pré-púbere e o pós-púbere; etc.), que caracteriza o uso de antíteses, esta pode ser uma forma de remeter ao estado de espírito e às incertezas geradas na mente de um adolescente: ora segurança, ora dúvida; ora alegria, ora tristeza; ora necessidade, ora desejo; ora sim, ora não.

Por fim, defendemos que a quebra de tabu presente nesta obra revela que o cinema juvenil não se limita a construções clichês e prosaicas, mas pode abordar diferentes assuntos (inclusive relações homoeróticas entre dois garotos menores de idade) sem restrições; tudo depende da forma como a narrativa é desenvolvida e de quais são os recursos estilísticos utilizados para auxiliar na construção da poética.

REFERÊNCIAS

Bibliografia:

CARLOS, Míriam Cris. A pele palpável da palavra: a comunicação erótica em Oswald de Andrade. Sorocaba: Provocare, 2010.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT. Dicionário de símbolos. 26.ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.

FERREIRA, Marcelo Santana. Experiência homossexual e juventude — perspectivas novas para uma análise. In: RIOS, Luís Felipe et al. Homossexualidade: produção cultural, cidadania e saúde. Rio de Janeiro: ABIA, 2004.

HENRIQUES, Claudio Cezar. Estilística e discurso: estudos produtivos sobre texto e expressividade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

LIMA, Carlos R. V. Cirne. Carta sobre dialética: o que é dialética? Síntese Nova Fase, v. 21, n. 67, 1994. Disponível em: < http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/article/view/1137/1544>. Acesso em: 06 jul. 2013.

PAIVA, Cláudio Cardoso de. Imagens do homoerótico masculino no cinema: um estudo de gênero, comunicação e sociedade. Revista Bagoas, v. 1, n. 1, 2007. Disponível em: <http://www.incubadora.ufrn.br/index.php/Bagoas/article/view/528/452>. Acesso em: 06 jul. 2013.

SILVA, Míriam Cristina Carlos. Comunicação e cultura antropofágicas: mídia, corpo e paisagem na erótico-poética oswaldiana. Porto Alegre: Sulina; Sorocaba: EDUNISO, 2007.

VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. 2.ª ed. Campinas: Papirus, 2002.

 

Filmografia:

VOCÊ NÃO ESTÁ SOZINHO (Du er ikke alene, 1978). Direção de Ernst Johansen e Lasse Nielsen. Cult Classic: 2012.


[1] Mestrando em Comunicação e Cultura e licenciado em Letras pela Universidade de Sorocaba. Docente do Colégio Objetivo São Roque e administrador da Editora Jogo de Palavras. Dedica-se à produção literária e à pesquisa na área de Narrativas Midiáticas, com enfoque no estudo do estilo. Contato: j.hergesel@edu.uniso.br.

[2] Entendemos como estilema a marca (verbal, sonora ou visual) que caracteriza um ser.

[3] Todas as referências sobre enquadramento e movimentação de câmera são baseadas em VANOYE; GOLIOT-LETÉ, 2002.

[4] Chamamos coming-of-age story o tipo de narrativa que aborda o desenvolvimento humano (da infância à juventude e/ou da adolescência à fase adulta).

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