Um Corpo Subterrâneo de Douglas Machado

Evandro Vasconcellos e Sara de Rizzo são graduandos em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Neste artigo iremos analisar o filme Um corpo subterrâneo (2007), de Douglas Machado, a partir de uma tendência contemporânea de intensificação dos efeitos de realidade na produção audiovisual. Também é interessante perceber que o filme mescla elementos tanto do “filme-dispositivo” como do “documentário de busca”, termos criados por Cezar Migliorin (2005) e Jean-Claude Bernardet (2005), respectivamente, para classificar certas produções de documentários que, por várias características, diferem das até então realizadas no campo cinematográfico.

Antes de começar as filmagens de Um corpo subterrâneo, Douglas Machado estabelece um conjunto de regras a serem seguidas por ele próprio durante a realização do filme, como no conceito proposto por Jean-Claude Bernardet de um “documentário de busca”. Deste modo o diretor não tem o controle absoluto sobre o resultado final do seu percurso. Ele deixa na mão do imprevisível, correndo determinados riscos, dos quais ele tem consciência que podem ocorrer, diferenciando-se, assim, dos documentários clássicos, onde o cineasta já tem um plano de realização para o filme e o caminho certo que vai traçar antes de começar a filmagem. Douglas estabelece a regra de achar o túmulo da última pessoa sepultada nos cemitérios de algumas cidades do estado do Piauí, escolhidas por ele antes do início da realização do filme, procurando em seguida a família, que contará aspectos da vida dessa pessoa como, por exemplo, origens, gostos e peculiaridades. É nesse ponto que o cineasta joga com os riscos, pois pode, por exemplo, não conseguir achar a família do falecido, ou, então, receber uma recusa deles em falar sobre o assunto.

Bernardet descreve o “documentário de busca” em seu texto como:

Projetos que partem de um alvo bastante preciso, bastante determinado, mas os cineastas não sabem se esse alvo será ou não atingido e não sabem de que forma será atingido. Portanto, a filmagem tende a se tornar a documentação do processo. Não há uma preparação do filme (a preparação é a própria filmagem). (BERNARDET, 2005)

No entanto, Um corpo subterrâneo se distancia do “documentário de busca” no momento em que, embora o cineasta seja um personagem, não é o protagonista, como é o caso do filme 33 (2003), de Kiko Goifman, e Passaporte húngaro (2001), de Sandra Kogut. Douglas é um personagem na medida em que, no começo do filme, conta seu objetivo de busca e o modo como vai proceder, e no decorrer do filme é ele quem dialoga com os entrevistados, porém os papéis de protagonistas ficam com as pessoas falecidas e suas histórias, contadas por seus familiares e pessoas queridas

No final de cada entrevista o cineasta entrega a câmera a um membro da família, pedindo a ele que registre algo que ele gostaria de mostrar ao parente falecido. Com este ato, Douglas “ativa um dispositivo”, nos termos criados por Cezar Migliorin (2005), perdendo o controle sobre o conteúdo das imagens que serão capturadas pela outra pessoa e criando uma situação que não aconteceria naturalmente fora do filme. O diretor brinca com o imprevisível, deixando que o parente, que, na maioria dos casos no filme, nem sequer sabe manusear uma câmera, conclua cada sequência do filme. Ao fazer isso, ele renega uma preferência estética em favor de uma imagem muito mais “verdadeira” e “expressiva”. Não há preocupação quanto à forma dessas imagens, mas sim a liberdade de mostrar o que a pessoa achar importante.

Podemos, então, compará-lo ao filme-dispositivo quando Cezar Migliorin diz:

O artista/diretor constrói algo que dispara um movimento não presente ou preexistente no mundo, isto é um dispositivo. É este novo movimento que irá produzir um acontecimento não dominado pelo artista. Sua produção, neste sentido, transita entre um extremo domínio – do dispositivo – e uma larga falta de controle – dos efeitos e eventuais acontecimentos (IDEM).

A linguagem do filme busca trazer a impressão de realidade como se fosse uma conversa com as pessoas entrevistadas. O filme trata a câmera como se fosse o olho humano, por exemplo, ao colocar o caderno de anotações na frente da câmera, assim como outros objetos que são apresentados no quadro. O cineasta opera a câmera com um mecanismo que a deixa presa ao seu corpo, deste modo o movimento dela se assemelha ao movimento humano.  O diretor usa planos longos, com poucos cortes durante as entrevistas, dando, assim, a impressão de uma conversa, na qual estamos presentes. No entanto, é necessário deixar claro que em nenhum momento o cineasta nos faz esquecer de que estamos vendo um filme, pois o aparato cinematográfico, no caso a câmera e o microfone, ficam evidentes o tempo todo. O microfone aparece diversas vezes no quadro e o mais nítido é o momento em que a câmera é passada para a outra pessoa.

A afirmação de realidade está fortemente presente no filme, no momento em que o diretor resolve abordar um assunto muito comum a todas as pessoas, mas que, ao mesmo tempo, é delicado e muitas vezes difícil de ser abordado: a morte de um ente querido. Um corpo subterrâneo mexe com sentimentos reais e fortes, como a dor da perda e a saudade. Fazendo com que o espectador se identifique com esses sentimentos, na medida em que, provavelmente, também já os vivenciou em algum momento de sua vida. No entanto, em nenhum momento o filme soa apelativo e explorador do sentimento do outro.  O modo como ele é construído cria uma rica e emocionante homenagem àquelas pessoas que se foram e deixaram saudade em seus familiares.

O propósito de Douglas com o filme é resgatar memórias do povo piauiense, mostrando, a partir da história daqueles que já morreram, um pouco da vida desse povo do Nordeste do país. Com isso ele valoriza a existência dessas pessoas anônimas que, cada uma ao seu modo, deixou algo naquele lugar.

Porém, é preciso ressalvar que as histórias são contadas pelos próprios familiares, em nenhum momento o cineasta faz uma pesquisa posterior para verificar a veracidade do que é contado, e nem é esse o intuito do filme. Portanto, jamais teremos certeza se os relatos contados pelos familiares são totalmente verdadeiros, ou se eles valorizaram a história do parente falecido para dar maior importância ao que é narrado. Mas o cineasta opta por privilegiar a história como ela é contada, sem fazer julgamento, o que enriquece a potência da oralidade, pois é através dela que essas memórias serão passadas às futuras gerações da própria família.

Douglas, ao filmar, na chegada a cada cidade visitada, a procura no cemitério municipal pelo túmulo mais recente, anotando as datas em um caderno de bolso que é mostrado para a câmera, atesta a veracidade e legitimidade de seu objetivo, mostrando que não escolheu as pessoas pela história que elas podiam contar, mas sim através das regras estabelecidas por ele e que ele comprova ao espectador estar cumprindo.

O filme, até certo ponto, pode ser considerado um road-movie, na medida em que o realizador percorre cerca de 1600 quilômetros para passar por todas as cidades que ele visita, fazendo uma viagem que atravessa grande parte do Piauí, seu estado natal e que, também por isso, é o destino desse percurso. A questão do deslocamento está presente em diversos filmes documentários ou ficcionais contemporâneos. Esse desejo de sair do espaço do conhecido, do certo, para ir ao encontro do desconhecido e da dúvida amplia as impressões de efeito de real da narrativa fílmica, devido ao fato da viagem ser um objeto de fascínio e concretização de um desejo do ser humano.

Pode-se concluir, a partir dos pontos abordados, que o filme de Douglas Machado, se enquadra em um panorama mais amplo de um cinema documentário que leva a fundo a questão da realidade nas relações humanas expressas através do filme. Entende-se também que, embora haja elementos, na construção do filme, que podem nos fazer refletir acerca da relação de Um corpo subterrâneo tanto com o “documentário de busca” quanto com o “filme-dispositivo”, o filme não se enquadra completamente em nenhum dos dois “gêneros” de documentário. Por fim, vê-se a preocupação de Douglas Machado com a memória histórica do povo piauiense, e o modo como ele trata essa realidade com ênfase, procurando legitimá-la, através de uma pesquisa da última pessoa enterrada e das suas origens. Enfim, é a realidade da memória.

Referências bibliográficas

BERNARDET, Jean-Claude. “Documentários de busca: 33 e Passaporte húngaro”. In: MOURÃO, Maria Dora; LABAKI, Amir (Orgs.). O cinema do real. São Paulo: Cosac & Naify, 2005, p.142-156.

FELDMAN, Ilana. “O apelo realista: uma expressão estética da biopolítica”. In: HAMBURGER, E.; SOUZA, G.; MENDONÇA, L.; AMANCIO, T. (orgs.). Estudos de cinema Socine. São Paulo: Fapesp/Annablume, 2008, p. 235-243.

MIGLIORIN, Cezar. “Filme-dispositivo: Rua de mão dupla, de Cao Guimarães”. In: FABRIS, Mariarosaria. Estudos Socine de Cinema Ano VI. São Paulo: Nojosa Edições, 2005, p. 143-150.

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