O monstro, o cinema e o medo ao estranho

Verônica Guimarães Brandão[1]

Resumo: Revelamos comportamentos, conhecimentos, criamos imagens em movimento para transmitirmos medos,obsessões, fobias, costumes estranhos que, às vezes, revelam um mal-estar cultural imenso em nós. Há gerações e gerações, aprendemos a temer os monstros que nós mesmos engendramos. Criado a nossa barbárie e semelhança, o monstro é o que é a sociedade, quase como nós, por todos os lados, e na tela o monstro age conforme a sociedade o molda.
Palavras-chave: Monstro. Medo. Cinema. Horror. Psicanálise.

Abstract: Reveal behaviors, knowledge, create moving images to convey fears, obsessions, phobias, strange customs that sometimes reveal an immense cultural malaise in us. For generations and generations have learned to fear the monsters that we ourselves engender. Created our barbarity and likeness, the monster is what society is, almost like us, on all sides, and the monster on the screen acts as the society shapes.
Keywords: Monster. Fear. Cinema. Horror. Psychoanalysis.

As representações das monstruosidades no campo cultural nos diversos setores do conhecimento (ciências da religião, mitologia, filosofia, história, antropologia, psicologia, arte, comunicação, entre outras) têm como pressuposto a ordenação de um conjunto de estratégias utilizadas para suscitar um determinado conjunto de efeitos nos seus receptores. Em obras religiosas, a representação da monstruosidade é utilizada para manter a ordem, a moral, a organização interna através do horror; através do dualismo, separando aquilo que no concreto vem junto (bondade, maldade). Já na mitologia, a dualidade coloca “e”, onde o dualismo colocou “ou”: bem e mal, belo e feio, verdadeiro e falso, ordem e desordem, realidade e ficção. O engendramento de monstros começou na dualidade, pois os monstros; como descortina a filosofia, a psicologia, a antropologia, são reflexos do humano; são parte do homo sapiens (racional, realista), são seus demens (produtor de mitos, magias, fantasmas). O saber cultural se apoia na engenhosidade da unidualidade de um homem complexo, de um homem que tece seus pensamentos em devaneios, de um ser metafísico e físico que deseja construir monstros como remissão constante em um futuro inquietante e desconhecido.

Transmitimos comportamentos, conhecimentos, que tentamos explicar racionalmente. Esquecemos, porém, que transmitimos medos, obsessões, fobias, costumes estranhos que, às vezes, revelam um mal-estar cultural imenso em nós. “O mundo”, escreveu o poeta Rainer Maria Rilke (1875- 1956), “é grande, mas em nós ele é profundo como o mar”[2].

Há gerações e gerações, aprendemos a temer os monstros. “O monstro, em sua irrupção, era considerado como signo anunciador e precursor de acontecimentos destinados, por decisão transcendente, a revolucionar a ordem do mundo e da História” (NAZÁRIO: 1998, página 43). Vivemos e sentimos a dimensão trágica do encontro com a alteridade. O outro me é estranho, pois não é meu reflexo. O encontro deve ser inesperado, como o encontro de um monstro com um humano. “Se não esperas o inesperado, não o encontrarás” (HERÁCLITO apud MORIN: 2001, página 50). Para Freud (1856-1939), em O mal-estar na cultura (2010), a maior fonte de nossos sofrimentos se encontra em nossos relacionamentos. Mas sem este outro, um inferno corporificado, não haveria mundo humano. Todo desejo nasce de uma falta, de um sofrimento. Se esperamos ansiosos por mais uma representação da monstruosidade, é porque sentimos falta de olhar curiosamente a alteridade, fato ou estado de ser outro; definição do sujeito em relação a outro.

O estranho é um não-eu, uma exterioridade absoluta; assim, ele “não hesitará em me prejudicar, caso tenha oportunidade” (FREUD: 1976, página 131). Quando este estranho não nos prejudica, começamos, assim, a amá-lo como a nós mesmos, amando o nosso próximo como ele nos ama. A perseguição movida pelos monstros é uma perseguição interior. Devemos amar o nosso próximo como a nós mesmo, pois é o outro que nos socorrerá no desamparo estrutural de nosso ser. As prostitutas, os loucos, os pobres, os marginalizados, os homossexuais, os ladrões, eram considerados (alguns ainda o são) monstros que deveriam ser repudiados. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), em O crepúsculo dos ídolos, afirma que “os antropólogos entre os criminalistas dizem que o criminoso típico é feio: monstrum in fronte, monstrum in animo [monstro na face, monstro na alma]” (2006, página 07). Fomos educados a repudiar o que é diferente, feio. Porém, quando nos entendemos por seres pensantes, tomamos noção que as belezas singulares nunca estão livres da noção de escória e de impureza. O feio torna-se parte do belo, o feio existe ao lado do belo. “O belo tem apenas um tipo, o feio tem mil (…). Aquilo que chamamos de feio é o detalhe de um grande todo que nos escapa e que se harmoniza, não com o homem apenas, mas com a criação inteira” (HUGO: 1827 apud ECO: 2007, página 281).

A monstruosidade não nós é estranha. Alguns nem são feios por defeitos da natureza, mas por desarmonia das feições. Sartre escreveu sobre sua infância em As Palavras (1964), narrando que o espelho lhe prestava grande auxílio, pois o escritor existencialista se encarregava de informar ao espelho que o pequeno Sartre era um monstro: “O espelho me ensinara o que eu sabia desde sempre: eu era horrivelmente natural. Nunca mais me refiz” (SARTRE: 1964 apud ECO: 2007, página 300).  Por qual motivo o monstro é útil? Porque é na sua fealdade que encontramos o prazer. “Para certos espíritos mais curiosos e entediados, o gozo da feiúra, provém de um sentimento ainda mais misterioso, que é a sede do desconhecido e gosto do horrível” (BAUDELAIRE: 1846 apud ECO: 2007, página 352). E é esta sede do desconhecido que faz a representação da monstruosidade persistir e existir por séculos. Temos sede, mas também medo do desconhecido, medo do estranho[3], do monstro, do inquietante. Para H. P. Lovecraft, escritor norte-americano de fantasia e horror, “a emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido”. O que nos era exterior, que acontecia ao nosso redor, era assimilado pelos povos em formas de representações monstruosas[4]. Se haviam guerras, depressões, falências, conflitos, perseguições, lá estava o monstro representando nossos medos. Criado a nossa barbárie e semelhança, o mostro era o que era a sociedade, quase como nós, por todos os lados. Os monstros rememoram nossa animalidade, por isso nos fascinam. Nascem como corporificação de certo momento cultural de uma época[5], de um sentimento e de um lugar.

Por que sentimos medo dos monstros? Os seres humanos já foram “superprimatas num planeta minúsculo” (MENCKEN apud HOEBEL, 2006, página 79), foram presas, mas com a curiosidade e o desenvolvimento cerebral[6] tornaram-se homo sapiens, seres pensantes. No período anterior à escrita[7], a natureza dominava as ações dos hominídeos. Feras famintas transformavam homens primitivos em carne[8], alimento. Passamos de antropóides dominados pelo instinto a seres humanos adaptáveis culturalmente. O desenvolvimento humano foi “biológico e cultural” (HOEBEL: 2006, página 77). Tinham fome, caçavam. Tinham frio, esfolavam. Produzir fogo, produzir armas, aprimorar artigos de caça, pintar em rochas; arte rupestre, pintar o corpo e o rosto; celebrar, invocar ancestrais, amedrontar espíritos ruins, monstros, nossos medos.

A cultura está apinhada de animais que não tem equivalentes exatos na natureza. Uma fauna de monstros, prodígios e maravilhas imensa e de mentirinha serpenteiam e enxameia e assalta todas as artes, como se o mundo natural fosse de certa forma deficiente. É preciso perguntar: qual é o fim dessas criaturas imaginárias? Elas são realmente substitutas para animais comuns ou tem seus próprios propósitos? O que são elas, de onde vêm e o que fazem aqui? (…) Nosso medo noturno de monstros, provavelmente tem suas origens nos princípios da evolução de nossos ancestrais primatas, cujas tribos foram desbastadas por horrores cujas sombras continuam a elicitar nossos gritos de macacos em teatros escuros. (SHEPARD: 1997, página 275 apud QUAMMEN: 2007, página 238).

A repugnância e o encantamento que os monstros exercem atravessam séculos. Eles são a própria representação dos medos e perigos presentes na experiência humana, em nosso processo evolutivo. Todos nós expurgamos nossos medos e, ás vezes, eles ganham forma iconográfica.

Somos, a todo o momento, bombardeados com imagens de monstros. Vampiros, Lobisomens, Zumbis, Bruxas, Titãs, e toda uma sorte de demônios que saem das sombras para dominar pessoas, casas e objetos. Desde a tenra infância, somos moralizados pela figura do monstro: boi da cara-preta, bicho-papão, monstro do armário, fantasma que mora debaixo da cama, homem do saco, saci. Todos estes foram citados em algum momento de nossas vidas, apenas para nos fazer dormir na hora estipulada pelos pais; comer verduras; tomar banho ou somente para nos amedrontar. Com o tempo, a figura do monstro foi perdendo lugar para a violência urbana. Meninos de rua, assassinos, pedófilos, pais que jogam filhos da janela do apartamento, ladrões e os noticiários que a todo o momento, aterrorizam a sociedade. Em contraparte, as artes souberam aproveitar contextos vários, em diferentes épocas para, metaforicamente, criar monstros com singularidades humanas (e vice-versa).

Por medo do desconhecido construímos sociedades com muralhas e fronteiras, nostálgicos, contamos histórias para não esquecer sua pálida presença. As trevas, os seres monstruosos, os fantasmas, os cemitérios, a magia, os bosques impenetráveis e (a partir do século XVIII) as ruínas e os mistérios da ciência são os elementos principais das histórias de horror. Eles surgem assim que a noite cai: na Mesopotâmia, no Egito, na Índia, no Japão, na China, na Grécia. Em Roma, curiosamente, o horror se confunde com o que é proibido ou vulgar. Quando o pai de Sêneca pede ao escritor Albúcio Silo que enumere alguns temas “horríveis” (sordissima), este responde: “Rinocerontes, latrinas e esponjas, e prossegue: “animais domésticos, pessoas adulteras, fontes de alimento, a morte e os jardins”. (MANGUEL: 2009, página 09).

Por qual razão a cultura contemporânea reproduz figuras monstruosas com novas contextualizações e novas roupagens é nosso maior interesse; assim como entender: vampiros vegetarianos, lobisomens sem a carga animalesca, zumbis ágeis que cozinham o cérebro antes de saborear, medusas que entendem de moda, bruxas adolescentes que trabalham para se sustentar, sereias deprimidas e a noiva cadáver que desiste do casamento. Hoje vamos aos cinemas encarar o sofrimento dos monstros para saber que, em algum momento, também estamos sós, sofrendo e, talvez, os monstros possam nos mostrar como agir em meio à truculência desse mundo tão volúvel.

[O espectador] vai para ver, sentir e se identificar. Durante aquele breve intervalo de tempo, é transportado para além das limitações de seu ambiente; passeia pelas ruas de Paris; vê o dia nascer com o caubói do faroeste; mergulha nas profundezas da terra com mineiros cobertos de cinzas, ou se lança ao mar com marinheiros e pescadores. Sente, além disso, a emoção de solidarizar-se com os pobres e necessitados… O artista cinematográfico é capaz de tocar cada uma das teclas do grande órgão da humanidade (FITCH: 1910 apud STAM: 2006, página 40).

O cinema de horror funciona como “catarse programada”, purga nossos medos em segurança. Para Luiz Nazário, em entrevista concedida a revista Superinteressante, “o monstro foi banalizado pela indústria cultural e deixou de (…) ser índice de transgressão, de porta-voz da diferença. O monstro já foi uma metáfora do outsider; hoje é um objeto de consumo” (NAZÁRIO, 2009).

No horror pós-moderno desintegram-se os valores, monstros e homens se confundem. Mas por que vamos ao cinema olhar os monstros? Às vezes somos incautos e, por isso, entramos na casa do diabo, assim como sentamos para ver um filme de horror e aguardamos a sua revelação. A espera, porém, demora, eterniza-se. Porque ele apenas se mostra quando (nos) olhamos no espelho, ou vemos um monstro humanizado na tela.

(…) também vamos ao cinema por outras razões: para confirmarmos (ou questionarmos) nossos preconceitos, para nos identificarmos com as personagens, para sentirmos emoções e “efeitos subjetivos” intensos, para imaginarmos uma outra vida, para experimentarmos prazeres cinestésicos, para sentirmos glamour, erotismo, carinho e paixão (STAM, 2006, p.267).

Somos seres desviantes de qualquer norma convencionada. Segundo a teologia cristã, começamos com o pecado e não paramos de pecar. Fomos e somos monstros. A simples tentativa de eliminar um monstro não resolve qualquer problema.

A estranheza do que não é familiar é a chave para entender tudo aquilo que nos assusta e também nos fascina. Stephenie Meyer, autora da saga Crepúsculo (2005), no qual vampiros vegetarianos e lobisomens carentes passaram de monstros/vilões a queridinhos das adolescentes, cita por qual motivo os monstros deixaram de ser perigosos sem perder o charme sobrenatural: “Eles são atraentes porque fazem aflorar aspectos ocultos do desejo e do instinto. São fascinantes porque geram medo e desejo a um só tempo” [9]. Para o repórter da revista Época, Danilo Venticinque, a história de amor entre vampiros, lobisomens e humanos parece não desagradar os pais. “Para quem via as filhas se descabelar por astros pop imprevisíveis e atores rebeldes, os monstros também viraram heróis” (2009).

Filmes de horror são aqueles que pretendem provocar a sensação de medo, sentimento que proporciona um estado de alerta. As histórias de horror/terror sempre fizeram parte do imaginário coletivo. Segundo o minidicionário da língua portuguesa, as definições de monstro e monstruoso são:

Monstro (sm). 1. Corpo organizado que apresenta, parcial ou totalmente, conformação anômala. 2. Ser, mitológico ou lendário, de conformação extravagante. 3. Individuo que causa pasmo. 4. Pessoa cruel ou horrenda.

Monstruoso (ô) adj. 1. Que tem conformação de monstro. 2. Enorme, extraordinário.  3. Que assombra pela grande perversidade. 4. Feio em demasia. (FERREIRA: 2009, página 470).

O medo, a fonte nos filmes de terror e horror, pode provocar reações físicas, como: descarga de adrenalina, aceleração cardíaca, tremor, atenção exagerada a tudo que ocorre ao redor, depressão, pânico, entre outros sintomas. Mas o medo proporcionado por um filme de terror é o mesmo proporcionado por um filme de horror?

Duas palavras que parecem sinônimas, mas não são, porque, linguisticamente, não se justifica a existência de dois termos para um conceito idêntico […]. Falamos em “filme de terror”, mas seria mais apropriado “filme de horror”. A diferença entre essas duas palavras está no sujeito que, ao assistir ao filme, se horroriza […]. O verbo horrorizar normalmente é reflexivo: horrorizar-se. Para funcionar, o verbo horrorizar necessita da colaboração do horrorizado. No caso de horrorizar-se, eu me horrorizo na medida em que estou suscetível a sentir o horror. O terror é outra história. Dificilmente alguém diz “aterrorizei-me vendo aquelas imagens”, pois o terror é produzido por outro sobre mim, e quem aterroriza (e isso é horrível e terrível!) não está aterrorizado nem horrorizado consigo mesmo. O terror vem de fora. O horror vem de dentro. Horror é um sentimento de receio, de medo, de pavor perante algo ameaçador, odioso e perverso. Em sua origem latina, horrere significava ficar com os cabelos em pé. O horripilante, no horror, é essa sensação de um frio no estômago, na espinha, o suor frio, o frio da morte (PERISSÉ: 2001).

Conforme Carroll (1999: página 13), “o horror tornou-se um artigo básico em meio às formas artísticas contemporâneas, populares ou não”. O cinema de horror sempre abusou do estado de alerta para fascinar suas vitimas, para avisá-las que alguém sabe o que foi feito no verão passado, para visitá-las nos pesadelos ou em uma sexta-feira treze, para avisar por telefone que alguém quer vingança, ou simplesmente, para que você (vitima/público) aperte o braço da pessoa sentada ao lado.

O cinema de horror forma uma ligação entre nossa fantasia sobre o medo e nossos verdadeiros medos. Os filmes de terror nos deixam desconfortáveis e quanto mais desconfortáveis, mais fascinados. O cinema de horror tem necessário papel de purgar nossos medos e atirá-los fora, de elevar a produção de adrenalina, dando a entender que seriamos capazes de lutar pela vida. O cinema horror é sim, a favor da vida.

O gênero horror tem a capacidade de provocar certo afeto (affect) […]. Os membros do gênero horror serão identificados como narrativas e/ou imagens (no caso das belas-artes, do cinema etc.) que têm como base provocar afeto de horror no público. (CARROLLL: 1999, página.28).

O horror analisado nesta pesquisa é o “horror artístico”. Uma forma de “gênero que atravessa várias formas artísticas e vários tipos de mídia” (CARROLL: 1999, página 27). O horror como elemento artístico remonta à Idade Média, quando proliferou a meditação sobre a morte perante uma caveira, que despertava pensamentos moralizadores sobre a variedade da curta existência terrestre (SOUSA: 1979).

O horror, a fantasia, o medo, não se contentaram em ficar apenas na literatura. No campo audiovisual, tais expressões ganharam representação cinematográfica, ganharam olhos e corações em salas escuras e, figuras como, vampiros, zumbis, marcianos, lobisomens, bruxas, demônios, seres criados em laboratórios, feras gigantescas, pessoas deformadas e os mais diversos monstros, passaram a habitar o imaginário social.

Utilizando um cinematógrafo (máquina de filmar e projetor de cinema), inventado em 1892 por Lèon Bouly, os irmãos Louis e Auguste Lumière deram o primeiro susto no público (em formação) da sétima arte. Em 28 de setembro de 1895, na comuna francesa de La Ciotat, sudeste da França, surge à provável primeira sala de cinema do mundo. Mas foi em Paris, no dia 28 de dezembro de 1895, que os irmãos Lumière, no subterrâneo do Grand Café, realizaram a primeira exibição pública e paga de cinema, com uma série de dez filmes, com duração de 40 a 50 segundos cada, dentre os quais estava o filme que daria o primeiro susto no público – “A chegada do trem à Estação Ciotat”. Nesta sessão estava presente aquele que é considerado “o pai dos efeitos especiais”- Georges Méliès. Criador de mundos fantásticos, Méliès foi um dos primeiros cineastas a dar vida aos primeiros monstros do cinema. Mas ao contrário dos irmãos Lumiére, Méliès não assustou o grande público, pelo contrário, seus monstros eram mais cômicos que horripilantes.

O cinema, maior expoente da arte que se estabeleceu e marcou o século XX, começou com sustos, correria e cadeiras derrubadas na plateia. O homem da sétima arte viu que aquilo era bom e resolveu explorar o reino desconfortável do medo, este sentimento que causa fascínio por ser uma questão cultural que inspira apreensão, pois estamos constantemente diante da morte ou perdidos em nossos pesadelos.

[…] O homem sempre abominou a morte e, provavelmente, sempre a repelirá. Do ponto de vista psiquiátrico, isto é bastante compreensível e talvez se explique melhor pela noção básica de que, em nosso inconsciente a morte nunca é possível quando se trata de nós mesmos. É inconcebível para o inconsciente imaginar um fim real para nossa vida na terra e, se a vida tiver um fim, este será atribuído a uma intervenção maligna fora de nosso alcance… A morte em si está ligada a uma ação má, a um acontecimento medonho, a algo que em si clama por recompensa ou castigo (KUBLER-ROSS: 1994, página 13).

Parece estranho que quanto mais desconfortáveis pareçamos diante de um filme de horror/terror, melhor será nossa opinião sobre aquele filme. Mas o coração acelerado não é sinônimo de filme de terror/horror, pois com o passar do século XX e começo do século XXI, observaremos uma mudança de comportamento, de recepção, de afeto do público, diante de um filme de horror, com um monstro na tela. O que era criado para assustar, não assusta mais. Os monstros, conforme veremos, não serão mais seres disformes, anormais, estrangeiros, mal quistos e mal vistos, mas tornar-se-ão queridinhos do cinema.

O primeiro filme do gênero horror feito, segundo a Enciclopédia dos Monstros, foi L´ Inferno (1911). Foi a primeira adaptação para o cinema da obra A Divina Comédia de Dante Alighiere. Os cineastas Francesco Bertolini, Adolfo Padovan e Giuseppe De Liguoro realizaram uma jornada pela obra de Dante e gravuras de Gustave Doré[10], que fez ilustrações sobre A Divina Comédia de 1861 a 1868.

Depois do susto proporcionado pelos irmãos Lumière, dos monstros de Méliès e dos 71 minutos de pavor em movimento no filme L´Inferno, o expressionismo alemão surge em filmes de Robert Wienne com sua obra Das Cabinet des Dr. Caligari (1919) e F.W. Murnau com Nosferatu (1922). As obras de Wienne, Murnau, a gótica fotografia e atmosfera sobrenatural influenciaram/influenciam o cinema de horror até hoje. O medo proporcionado pelos monstros do expressionismo alemão era repleto de uma carga psicossocial. A Europa está em período bélico. A Grande Guerra (1914-1918) apresenta a fome, a morte, desconfiança, violência, solidão nas trincheiras (“terra de ninguém”) e é neste contexto horrendo que os filmes alemães ganham maior expressão, pois mostravam “por meio de imagens do real, conceitos abstratos da alma e do espírito”, terreno fértil para o “conceito de expressionismo”, ligado à ideia que Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche desenvolveram sobre “o consciente e inconsciente humano” (GONÇALO, 2008, p.163-164). Os filmes de horror revelam que o horror é visionário, pois capturam de maneira consistente nossos medos e ansiedades coletivas. Muitos filmes de horror dão a entender que o inimigo vem de dentro, que está entre nós, não do desconhecido, mas de nossa mente.

Aqui está a verdade final sobre os filmes de horror. Eles não amam a morte, como alguns têm proposto, eles amam a vida. Eles não celebram a deformidade, mas, habitando a deformidade, cantam a saúde e a energia. Eles são os purificadores da mente, tirando não rancor, mas ansiedade. (KING: 2003, página 259).

Os monstros somos nós do outro lado da tela. Seres que amam como nós, mas têm medo de não serem correspondidos, pois sabem de antemão que não serão aceitos e que a verdadeira felicidade é repentina e, portanto, rara. “Nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos” (GOETHE: 1810 apud FREUD: 2010, página 95).

Enfrentar monstros é superar medos. É enfrentar a esfinge e deixá-la muda. Segundo Lutz Müller as “figuras amedrontadoras da fantasia humana” (demônios, diabos, bruxas, divindades más, figuras horrorosas e monstros) causam medos e sensações de perigo à personalidade humana. Os medos representados em todos os tempos e em todas as culturas são arquetípicos, “são experiências universais básicas que determinam a vivência e o comportamento do indivíduo, tanto no presente como no futuro” (1997, p. 93).

Se no passado o outro era de fato diferente, distante e compunha uma realidade diversa daquela de meu mundo, hoje, o longe é perto e o outro é também um mesmo, uma imagem do eu invertida no espelho, capaz de confundir certezas, pois não se trata mais de outros povos, outras línguas, outros costumes. O outro hoje é próximo e familiar, mas não necessariamente é nosso conhecido (GUSMÃO: 1999, página 44-45).

A monstruosidade (ou o monstro) é a metáfora que usamos para referir o mal transposto para o reino estético, das sensibilidades e emoções. Os homens precisam de monstros para se tornarem mais humanos, para pensar sua própria humanidade. Pedimos aos monstros que nos inquietem, que nos provoquem vertigens, que abalem nossas certezas (GIL, 2006).  Amamos os monstros não porque tenham se tornado bons, mas justamente por causa da feiúra que nunca perderam. “Da Perfeição da Vida. Por que prender a vida em conceitos e normas? O Belo e o Feio… O Bom e o Mau… Dor e Prazer… Tudo, afinal, são formas. E não degraus do Ser!” [11].  Se o monstro se reconhece em toda sua horripilância existencial e mesmo assim é extremamente bom, nós humanos temos que os admirar e tentar sermos amigos de seres diferentes.

George Romero, diretor de A noite dos mortos vivos e outros filmes de terror, em uma declaração de poética, enquanto se detém sobre a tocante ternura de Frankenstein, King Kong ou Godzilla, recorda que seus zumbis têm a pele rugosa e putrefaciante, dentes e unhas negras, mas são indivíduos com paixões e exigências como as nossas. E acrescenta: “Nos meus filmes sobre zumbis, os mortos que voltam à vida representam uma espécie de revolução, uma reviravolta radical num mundo que muitos dos personagens humanos não conseguem entender, preferindo marcar os mortos vivos como o Inimigo, quando na realidade eles são nós. Utilizo o sangue em toda sua horrenda magnificência para que o público entenda que meus filmes são antes uma crônica sociopolítica dos tempos do que (…) aventuras com molho de terror” (ECO: 2007, página 422).

O cinema é destinado a contar histórias, por ser uma arte narrativa, usada para “mostrar um objeto de forma que ele seja reconhecido, é um ato de ostentação que implica que se quer dizer algo a respeito desse objeto” (AUMONT: 1995, página 90).

Como consequência da intimidade por aí constituída, os monstros são a sinestesia em nós, simultaneamente a tranquilidade e a inquietude, a amizade e a angústia, a solidão, a compaixão, o sofrimento. Afinal, nada mais assusta ao público, já anestesiado, após a avalanche visual que fez com que os monstros deixassem de provocar medo.


[1] Produtora Audiovisual pela Universidade Estadual de Goiás, Mestranda no Programa de Pós-Graduação pela Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Linha de Imagem e Som. Pesquisadora da “Estética da Monstruosidade”.  Contato: vguibrasil@gmail.com

[2] Rilke apud Campbell: 2006, página191.

[3] Freud, em O mal estar na cultura, usa a palavra alemã Unheimlich (estranho, sinistro) como sendo algo procedente da psique humana do individuo e que é, segundo definição do filosofo idealista Schelling e aprovada por Freud, “tudo aquilo que deveria ter permanecido em segredo e oculto veio à luz” (2010: página 25).

[4] Tais representações, possivelmente, seriam criadas e transmitidas oralmente, ritualmente (incorporação em seres inumanos), em forma de desenhos em cavernas, pinturas, esculturas, literaturas, fotografias, representações imagéticas, entre outras.

[5] Compartilho a definição de Jeffrey Jerome Cohen nas notas de seu artigo “A cultura dos monstros: sete teses” (2000, página 55) sobre a palavra Zeitgeist usada como ‘fantasma do tempo’, espírito incorpóreo que estranhamente incorpora um “lugar” (ou série de lugares, como a encruzilhada que é um ponto de movimento em direção a um incerto outro lugar). Diferentes culturas têm diferentes Zeitgeist, como têm diferentes eras e diferentes localizações geográficas.

[6] O cientista britânico Robert Winston (1940) realizou pesquisa, em sua obra Instinto Humano, sobre a curiosidade humana e o cérebro em desenvolvimento (2006: página 78-115).

[7] Período Pré-Histórico, aproximadamente 4000 a. C.. Tomemos como ponto de partida a Era Terciária (50 milhões de anos) e o aparecimento dos hominídeos (Australopithecus).

[8] Na contracapa de Monstro de Deus: feras predadoras: história, ciência e mito (2007), do cientista norte-americano David Quammen (1948), encontramos a seguinte afirmação: “Uma coisa é estar morto, outra coisa é ser transformado em carne. A idéia de sermos devorados evoca em nós terror profundo”.

[9] MEYER apud VENTICINQUE: 2009.

[10] Paul Gustave Doré (Estrasburgo, 6 de janeiro de 1832 — Paris, 23 de janeiro de 1883) foi um pintor, desenhista e o mais produtivo e bem-sucedido ilustrador francês de livros de meados do século XIX, com forte inclinação para a fantasia.

[11] QUINTANA, Mário. Pensador. INFO. Disponível em: < http://www.pensador.info/p/feio_e_belo/1/>. Acesso em: 20 nov. 2009.

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SOUSA, Maria Leonor Machado de. O horror na Literatura Portuguesa. 1979. Disponível em: <http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/L/literatura_horror.htm>. Acesso em: 01 nov. 2009.
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