A Partida, de Yojiro Takita, numa perspectiva psicanalítica do corpo.

Bianca Scandelari[1]

Resumo: Propomos abordar pontos introdutórios sobre o corpo em psicanálise através da perspectiva apresentada no filme A Partida, de Takita (2008). Neste sentido, a trama da história faz lembrar nuances do que é possível chamar em psicanálise de lugar psíquico. Segundo a intersecção encontrada, a vida que anima um corpo, que o constitui e o autoriza como vivente é ilustrada numa perspectiva simbólica que une sentido e imagem.
Palavras-chave: vida; morte; corpo; psíquico; psicanálise.

Yojiro Takita’s Okuribito in a psychanalytic perspective of the body

Abstract: We propose to address introductory points on the body in psychoanalysis from the perspective presented in the film Okuribito of Takita (2008). In this sense, the story line is reminiscent of the nuances that you can call the psychic place in psychoanalysis. According to the intersection found, the life that animates a body that is permitted and is shown as living in a symbolic perspective that unites sense and image.
Key-words: life; death; body; psychic; psychoanalysis.

Longe de pressupor uma completa análise dos dois temas, e esgotar as possibilidades de sua intersecção, a proposta deste artigo é antes abordar, de forma ilustrativa e introdutória, algumas questões possíveis de serem comentadas sobre a significação de corpo na psicanálise em virtude de alguns aspectos que o filme A Partida (2008), de Yojiro Takita, traz em sua articulação interna de cenas.

O tema que primeiramente “salta aos olhos” no decorrer inicial do filme é a relação existente entre vida e morte. A morte, sem sombra de dúvida, apenas pode ser pensada a partir da significação de vida, que é por si só um tema de difícil abordagem. É claramente absorvido nos campos da Biologia e da Física, além de outras ciências que esperam extrair seu significado através da análise minuciosa da matéria, seu funcionamento e dinâmica.

Mediante a discussão permanente entre as neurociências e a psicanálise, em virtude do funcionamento do corpo ou sobre o que o anima, a suposta relação entre o que é físico e o lugar do que é psíquico, propomos alguns comentários sobre trechos da obra inicial de Freud – que trazem justamente a articulação sobre como funcionaria o corpo na histeria -, complementando com passagens de textos de Lacan sobre a assunção de uma imagem na formação do eu. Desta forma, seria possível relacionar algumas passagens da história do personagem, Daigo Kobayashi – mobilizadas de forma direta e, ao mesmo tempo, leve, pela abordagem um tanto cômica, – à questão da relação com o corpo, considerado como o que encarna os significados de vida e morte.

Para começar a trazer a história de Daigo, faremos desde o início, do filme, não o de sua vida. Filho único de um casal proprietário de um pequeno café da cidade de Yamagata, no Japão, o personagem aparece em cenas de sua lembrança com o violoncelo em mãos, tocando em frente aos pais. Estas cenas de sua memória se tornam importantes para a trama, pois demonstram as reminiscências que Daigo tem da sua relação com o pai, cujo rosto teria sido “apagado” de sua memória. Outra lembrança relacionada seria aquela da “pedra-carta”. O personagem, ainda menino, faz uma troca de pedras com o pai que teria o propósito subjacente de significar algo quase inominável, posto que os sentimentos que as pedras buscam simbolizar, assim como qualquer outro, não caberiam em palavras. Como as palavras ditas ou escritas não o exprimem por completo, não poderiam as pedras “encarná-los”? Assim, o garoto ganha uma pedra grande e áspera que ilustraria a doação do sentimento em dificuldades, e o pai recebe uma pequena pedra branca e lisa que denotaria o coração sereno do menino.

Da relação com o pai e da infância do personagem temos somente essas passagens e a declaração em que, aparentemente, pouco importa para Daigo se o pai é vivo ou morto. Quando passamos à sua vida em Tóquio, as passagens também são escassas. Assistimos ao momento em que, já adulto, o violoncelista vê sua chance de trabalho se esvair com a dissolução da orquestra onde tocava, obrigando-o a traçar um novo rumo em sua vida. Também podemos ver a cena em que ele conta à sua mulher sobre o ocorrido, chegando a assumir o violoncelo como um “peso morto” em muitos aspectos. Ainda em relação à última passagem, temos a curiosa aparição do polvo que sua mulher traz para casa como um presente para o jantar, mas que num assalto de preservação de vida, aparentemente se lança ao chão movendo seus tentáculos. O jantar estava vivo, havia se tornado digno de toda consideração, o que causa desespero no casal que resolve restituí-lo ao mar. Ao chegar o momento de salvamento, Daigo e a esposa percebem que o polvo já estava morto. Encerram-se aí as cenas de Tóquio, dando a impressão da frustração perante aos projetos não realizados do emprego e do salvamento, trazendo um aspecto da morte que parece antever o tema do andamento da história de vida do personagem.

Ao retornar para Yamagata, o casal se instala na antiga casa em que Daigo viveu com os pais, e, posteriormente, com sua solitária mãe, já falecida. Na busca de um emprego, ele depara-se com a agência funerária NK, que desenvolve um ritual antigo e tradicional de acondicionamento ou embelezamento de corpos, antes realizado pelas famílias das pessoas falecidas. Possivelmente, em virtude da boa remuneração, ele aceita começar. A partir desse momento experimenta uma passagem que transforma sua significação sobre os corpos com que lida e sobre a morte, o que parece trazer algum sentido para sua história, uma expressão para sua vida.

Uma perspectiva do corpo em Freud

A propósito desse contexto geral do filme, é possível introduzir alguns comentários sobre o início do empreendimento de Freud, quando se debruçava sobre as significações que produziam os sintomas na histeria.  Para introduzir, notamos que esta neurose era definida a partir de um desequilíbrio na dinâmica de excitações cerebrais e seu tratamento consistia especialmente numa correção desses mecanismos anormais que tiveram lugar em determinado momento de predisposição do paciente, tornando-se traumático e comprometendo sua saúde física e psíquica desde então. A hipnose, com o uso da sugestão, também portava uma definição semelhante a uma intervenção pedagógica que acabava por desconsiderar importantes e possíveis conexões causais (sexualidade infantil, complexo de Édipo), formuladas ao longo dos anos posteriores, em detrimento da gradual superação do acento no método para a valorização da palavra do paciente.

De certa forma, quando a “fala” da histérica foi tomando lugar no momento do tratamento, percebemos uma relativização da concepção do corpo, que passa de objeto tomado apenas em sua dinâmica fisiológica para outra que carrega, “encarna” uma significação. Ou seja, Freud percebia que o restabelecimento do equilíbrio e bem estar físico dependia das palavras e sentimentos atrelados, e a via de escoamento ou alívio curativo poderia portar um caráter de outra natureza.

É o que denota o curioso, mas não incomum relato de Freud sobre a conversão histérica como a simbolização de vivências aflitivas no corpo, no texto Estudos sobre a Histeria, 1895.  Ele ilustra o que a dificuldade do “não poder dizer” representou para as pacientes, restando apenas se contentar com a saída possível no correspondente disfuncional do corpo:

E não é de toda forma verossímil que a inversão “engolir algo”, aplicado a um insulto ao qual não se apresenta réplica, se deva de fato às sensações de inervação que sobrevêm à garganta quando se nega o dizer, se impede a reação frente ao ultraje? Todas essas sensações e inervações pertencem à “expressão das emoções”, que, como nos ensinou Darwin |1872|, consiste em operações em sua origem providas de sentido e de acordo com um fim; por mais que se encontrem hoje debilitadas na maioria dos casos, a tal ponto que sua expressão linguística nos pareça uma transferência figural, é bem provável que tudo isso tenha sido entendido literalmente, e a histeria acerta quando restabelece para suas inervações mais intensas o sentido original das palavras. E até pode ser incorreto dizer se cria essas sensações mediante simbolização; talvez não tenha tomado o uso linguístico como modelo, mas se alimenta junto com ele de uma fonte comum. (FREUD e BREUER, 1893, p.193)

Este é o momento em que Freud se vê obrigado a formular uma explicação para a conexão das significações da vida através da linguagem e suas marcas no corpo. Apesar de encontrar correlatos nas sensações inervatórias da faringe, é curioso como o sintoma se molda de forma a comunicar algo, mesmo que a vontade forte e resoluta o queira impedir. Este é um exemplo de que o que não é falado, não sai pela palavra, fica no corpo, não como um desequilíbrio qualquer, mas como um que chama a atenção, que “quer dizer algo”. Dessa forma, é possível que se atribua um significado a um sintoma, ao corpo em sua dinâmica e até a uma pedra.

Seria demasiado ousado pensar que o que dota o corpo, algo vivo e pulsante, de um significado, pode dotar algo inanimado de sentimentos? Bem, sem forçar uma conclusão sabemos que uma pedra não sente, mas não é necessário escrever ou ler nela para que ela represente um sentimento. Assim, também um violoncelo pode pesar muito mais do que sugere o peso de sua real matéria, sob vários aspectos. Igualmente, quando usamos a expressão “coração sereno” não queremos dizer que o órgão correspondente tenha essa qualidade, assim como a “cabeça” não pensa. Mas então, o que pensa? O que sente? Alguém? De que é constituído esse alguém? Não obstante, assim como uma faringe não engole um insulto, uma pedra pode portar um sentimento tão significativo que é possível afirmar que ela signifique apenas esse sentimento. Não cumpre mais sua função como pedra, é bem mais que isso.

Assim um corpo é mais que um coração, uma faringe, um cérebro. Mesmo que sua dinâmica fisiológica possa ser assumida por Freud naquele momento como objeto de tratamento, o meio para que se interfira era o da palavra, mas não a qualquer. No texto de 1890, Tratamento Psíquico ou Anímico, o contexto em que a palavra é empregada e quem a profere é analisado e sugerido como instrumento do tratamento. A fala não pode ser dita apenas, mas tem que estar atrelada a uma significação não qualquer, também, como a que sugere uma etimologia, por exemplo, mas uma que parte do paciente, que é imprevisível e insuspeitada. Assim a cura dos pacientes fica subordinada à simpatia que o médico suscita.

O que mais interessava a Freud neste momento era a “influência da vida anímica no corporal”, que correspondia à influência da sugestão fornecida pelo hipnotizador. Assim, Freud nos diz que os efeitos da influência do “médico que trata pela fala” causam: “de um lado, a obediência, mas de outro há um aumento da influência corporal de uma idéia. A palavra, nesse caso, volta realmente a tornar-se magia”. (FREUD, 1890, 126/127) Esta magia corresponde ao poder do médico em desalojar os sintomas do corpo do paciente é comparado ao poder de um curandeiro ou sacerdote. Apesar da já trabalhada desconexão da causalidade da histeria com a localização anatômica, há um vínculo dos fenômenos histéricos com o corpo, este que funcionaria a partir de então como um representante psíquico.

É certo que até esse momento da obra não estaria bem definido um conceito de psíquico em Freud e sua relação com o corpo estava trabalhada pela via neurofisiológica, o que não impede, porém, de levantar questões interessantes sobre como a histeria toma o corpo e modifica seu modo de funcionamento.

Voltemos agora, à trama do filme. O acondicionamento de corpos parece ser definido de forma direta e sucinta como uma limpeza e embelezamento para seu velório. Ainda, para que seja escondida sua característica de morte, de putrefação. Lembramos o horror que causa a Daigo o confrontamento com o corpo de uma senhora há duas semanas falecida e a reação que o toma ao ver no jantar, tão carinhosamente preparado por sua mulher, o corpo de uma galinha para ser comida crua. É interessante notar que esta seria encarada como uma iguaria ao paladar se o acontecimento prévio não a tivesse dotado de um significado enojante. Aparentemente, a cabeça da galinha parecia até possuir um semblante que encara nosso personagem.

Mas devemos lembrar que não se trata, nesse ritual, somente do que poderia se considerar como sua utilidade, mas de um significado. De acordo com as palavras do mestre de Daigo nesta experiência, a limpeza serviria também para tirar a fadiga, a dor e os desejos deste mundo e representa o primeiro banho de um novo nascimento, assim como o ritual de vestir é para preservar a dignidade do morto.

É possível observar que, com a significação dada ao corpo, sua função muda drasticamente de objeto a ser preservado e dignificado, para um objeto de consumo. No caso, a metáfora de corpo como comida aparece em várias cenas do filme, começando com a do polvo que restitui seu lugar de merecedor da vida, seguido pela galinha e seu semblante perturbador. Há também os salmões que prendem a atenção de Daigo em seu esforço em direção à morte, para voltarem ao lugar onde nasceram. Não obstante, os corpos são vistos como seu único meio de vida, seja porque é preciso comer o de “outros” para sobreviver, seja porque “os mortos são seu ganha pão”.

De qualquer forma, um corpo fica restrito ao sentido que leva, e é disso que parece se tratar o trabalho de Daigo que, em outras palavras, é definido no filme como “fazer reviver um corpo frio e dar a ele a beleza eterna”. Notemos que aqui a aparência do corpo também pode ser relacionada a um sentido próprio que faz com que a despedida dos familiares fique mais humana e sentida como mais verdadeira. Assim, o pai de Tomeo só reconhece o filho após a preparação, bem como a mãe de Miyuki não reconhece a filha nem após o ritual. Fica claro, em outras passagens, que o ritual possibilita como que o último reencontro com a pessoa querida que “revive para se despedir”.

Ainda em relação ao que sugere o embelezamento do corpo como forma de revivê-lo, e da aparência que o constitui e o identifica em meio a outros, em seguida, traremos comentários sobre nuances da sua concepção para Lacan que justificam e ilustram o devir de sentido através de uma imagem constituinte.

Uma perspectiva do corpo em Lacan

A propósito da aparência, da imagem do corpo que ganha um sentido bem ilustrado no filme, traremos alguns comentários sucintos sobre a constituição do corpo e sua relação com a matriz do eu[2] tal como foi abordado em algumas passagens do seminário I de Lacan. Comecemos por abordar seu comentário da Traumdeutung, referente ao capítulo “Psicologia dos processos do sonho” (LACAN, 1953/1954, VII) em que Freud elabora o esquema no qual insere o inconsciente, sua relação com as lembranças e a figuração do sonho como imagem. Sendo todos esses aspectos possíveis de relacionar com nosso tema, mesmo assim devemos escolher apenas aquele que oferece a ideia de um “lugar psíquico”, (LACAN, 1953/1954, p.92) que figura como o campo da realidade psíquica, do que se passaria entre a percepção e a consciência motora do eu.

No texto, Freud traz o exemplo de um microscópio ou de um aparelho fotográfico para representar o instrumento que serve às produções psíquicas, para afastar-se logo da noção de pertencer a uma localização anatômica. De acordo com sua comparação, este lugar psíquico corresponderia a um ponto onde se forma a imagem que não corresponderia em si a nenhuma parte material do aparelho. Justifica que essa aproximação, mesmo que imperfeita, serve para fazer compreender o modo de funcionamento do psiquismo.

Lacan tomará a questão da óptica como fundadora de todo o conhecimento mais fundamental relacionado à geometria e à mecânica. Neste sentido menciona sua base matemática, pois para que haja uma óptica seria preciso corresponder um ponto do espaço real, a um ponto do espaço imaginário sendo que os espaços se confundem, pois a dimensão simbólica estaria permeando a manifestação de qualquer fenômeno. Ou seja, os fenômenos mais reais que nos são apresentados pela experiência estão engajados pela subjetividade. Assim:

Quando vocês vêem um arco-íris, vêem algo de inteiramente subjetivo. Vocês o vêem a uma certa distância que se desenha na paisagem. Ele não está lá. É um fenômeno subjetivo. E, entretanto, graças a um aparelho fotográfico, vocês o registram de modo inteiramente objetivo. Então o que é isso? Não sabemos mais muito bem, não é, onde está o subjetivo, onde está o objetivo. Ou não seria que temos o hábito de colocar no nosso compreendedorzinho uma distinção muito sumária entre o objetivo e o subjetivo? (LACAN, 1953-54, p. 93)

Mais à frente menciona sua construção intitulada como “estádio do espelho” que se refere ao processo de maturação fisiológica que permite ao sujeito, num momento de prematuridade física, integrar suas funções motoras e ganhar um domínio do corpo. De acordo com Lacan, em seu seminário, a imagem vista do total do corpo humano fornece um domínio que se antecipa à formação motora. Essa condição dará o tom de sua relação com o próprio corpo, com o outro e com tudo o que vivencia. Assim: “É aí que a imagem do corpo dá ao sujeito a primeira forma que lhe permite situar o que é e o que não é do eu.”. (LACAN, 1953-54, p.96) E vai mais além:

Quer dizer que, na relação do imaginário e do real, e na constituição do mundo tal como ela resulta disso, tudo depende da situação do sujeito. E a situação do sujeito – vocês devem sabê-lo desde que lhes repito – é essencialmente caracterizada por seu lugar no mundo simbólico, ou, em outros termos, no mundo da palavra. (LACAN, 1953-54, p.97)

Se voltarmos agora ao filme, podemos começar a compreender como as transformações na vida de Daigo se guiaram. Desde o polvo, que com o mesmo corpo muda de lugar na subjetividade do casal e assim passa a ocupar instantaneamente uma dignidade, até o corpo morto que passa a ser dignificado quase como vivo através do preparo de sua imagem. Da mesma forma, o preconceito de Mikha se transforma de um sentimento de vergonha para o de orgulho.

Assim como Lacan chega a mencionar que no campo de nossa relação com a imagem não somos apenas um olho, entendendo todo o aparato anatômico necessário que forma a visão, também poderíamos pensar as cenas da bela moça que tinha um pênis. Tomeo, aparentemente, figura como uma delicada menina, que se vestia de forma feminina e era tomada como tal a não ser pelo importante detalhe anatômico. Aí se coloca justamente a questão da relação com o corpo, sugerindo que o “ser” nem sempre se cola aos contornos físicos. Para complementar este ponto de vista:

Há aí uma relação específica do homem com seu próprio corpo, que se manifesta igualmente na generalidade de uma série de práticas sociais – desde os ritos da tatuagem, da incisão e da circuncisão, nas sociedades primitivas, até aquilo que poderíamos chamar de arbitrariedade procustiana da moda na medida em que ela desmente, nas sociedades avançadas, o respeito às formas naturais do corpo humano, cuja ideia é tardia na cultura. (LACAN, 1998, 107-108)

Esta seria a dimensão simbólica por trás da imagem e que parece animar a anatomia em sua dinâmica de feixes de fibra cerebral, coração, faringe e músculos trazendo vida ao ser, não importando, nesse caso, tratar-se de uma pedra, um animal ou um corpo morto. Sem desconsiderar a diferença existente entre a dinâmica de vida que pulsa e a matéria inerte, o filme traz a perspectiva de nos encontrarmos com outra instância da vida psíquica que por não se prender somente a dinâmicas anatômicas confere novas formas de concepção de um corpo e o modifica, assim como Freud percebeu em relação à histeria.

Para concluir, sem restringir o assunto a estes comentários introdutórios, é possível perceber algo em comum nas ideias de Freud, Lacan e Takita sobre o que dá vida a um corpo, ou seja, o que o constitui como um ser em sua dimensão simbólica de existência. Assim, como na histeria as palavras “ganham corpo” e fazem sofrer, também a relação com este corpo o mortifica ou o revive através de sua imagem. A diferença entre vida e morte parece residir então em algo mais sutil e inefável, numa forma de se ver, numa perspectiva da imagem e a significação que doa sua importância.

Neste sentido, podemos compreender verdadeiramente a história de Daigo com o pai, julgado como péssimo e esquecido, mas que teria permanecido constantemente presente em sua vida através do violoncelo e da sua música predileta, tocada em vários momentos da trama. Entendemos melhor agora qual o sentido que o violoncelo “encarna”, assim como a pedra se transmuta em carta. De fato, o filho só distingue a imagem do pai a partir do reconhecimento da pedra que cai de sua mão no momento em que prepara o corpo dele. O pai só é restituído em sua imagem no momento de sua morte, mas de modo que ele possa existir de forma mais clara e permanentemente na lembrança. De resto, já na altura da cena final, não é preciso muito imaginação para saber o que a imagem do que seria apenas um homem oferecendo uma pedra ao ventre de sua mulher, possa significar.

O lugar psíquico pode ser bem ilustrado então, sem inconveniente, num filme de Yojiro Takita, em algum lugar entre a percepção e a consciência de quem o vê, num ponto imaginário não correspondente a algum componente material e/ou corporal mesmo que se apoie em seu aparato. Ou ainda, numa palavra que afeta o olhar, numa pedra que porta uma significação tão sublime que pode marcar o tanto o fim como o começo de uma vida.


[1] Bianca Scandelari é Psicanalista, doutoranda em Filosofia pela Unicamp.

[2] Este eu é figurado no texto entre colchetes [eu] para distingui-lo como “sujeito do inconsciente”. Ver em Escritos (1998) “O estádio do espelho como formador da função do eu: tal como nos é revelada na experiência psicanalítica” (1949).

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund. (1886-1899) Publicaciones prepsicoanalíticas y manuscritos inéditos em vida de Freud. Obras completas – 2ª ed. Amorrortu, 2010.
LACAN, Jacques. Escritos. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1998.
LACAN, Jacques. Seminário I: Os escritos técnicos de Freud (1953-54). Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1986.

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