Cinema e psicanálise: os sinthomas hitchcockianos

Mauro Eduardo Pommer[1]


Resumo: O conceito lacaniano de sinthoma, aplicado à criação artística, pode auxiliar-nos a compreender a construção de obras como a de Alfred Hitchcock, onde obsessões temáticas compõem a trama narrativa na qual vem se inserir o lugar do espectador enquanto sujeito.
Palavras-chave: psicanálise lacaniana; criação imagística; sinthoma.

Cinema and psychoanalysis: hitchcockian sinthomes

Abstract: Lacan’s concept of sinthome, applied to artistic creation, may help us understand the construction of works such as Alfred Hitchcock’s, in which thematic obsessions integrate the narrative web where the spectator can insert himself as subject.
Keywords: Lacan psychoanalysis, imagistic criation, sinthome

As possibilidades de se refletir acerca das interseções entre os campos do cinema e da psicanálise conheceram importantes tentativas de sistematização já desde os trabalhos fundamentais de Metz, Baudry, Kristeva, Rosolato, Guattari, Barthes, Vernet e Bellour, entre outros, na antológica edição número 23 da revista Communications, em 1975. Foi nela que Metz inaugurou suas reflexões acerca do “significante imaginário” e sobre as relações identificatórias entre o filme de ficção e seu espectador; ainda onde Baudry retoma sua célebre noção acerca do “dispositivo fílmico” publicada em Cinéthique, e Bellour trabalha sobre a decupagem de uma sequência de Intriga Internacional de Hitchcock para propor o conceito de “bloqueio simbólico”. Ainda no domínio francofônico, vale citar a coletânea especial de Cinémaction organizada por Guy Hennebelle em 1989, colocando lado a lado intervenções de psicanalistas como Alain Dhote e Félix Guattari e teóricos do cinema, tais como Bergala, Sorlin, Rouch, Metz, Vernet e Vanoye. No Brasil, um balanço sobre esse campo de conhecimento ocorre em 2000, na coletânea compilada por Giovanna Bartucci, Psicanálise, cinema e estéticas de subjetivação, dentro do mesmo espírito de contrapor as contribuições de teóricos do cinema como Fernão Ramos, Francisco ElinaldoTeixeira e J. C. Bernardet às de psicanalistas como Birman, Kehl e Chnaiderman, entre outros. Nesse campo das contribuições coletivas, pode-se destacar ainda a obra organizada em 1999 por Janet Bergstrom, professora de cinema na UCLA, Endless Night – Cinema and psychoanalysis, parallel stories, contando com contribuições de nomes como Vernet, Zizek e Peter Wollen.

Em sua sistematização sobre as teorias do cinema na segunda metade do século 20, Francesco Casetti confere um papel singular à contribuição da psicanálise nesse quadro, atribuindo-lhe a característica de ter servido, em função de seu caráter de área de conhecimento não claramente “disciplinar”, o papel de elemento de transição entre a fase de predomínio dos estudos metodológicos – centrados em disciplinas como a psicologia, a sociologia e a semiótica – e aquela que se articula a partir dos anos 1970, centrada em recortes transversais do objeto de estudo, que colocarão em destaque temas como a ideologia, o estatuto da representação, o feminismo, a dimensão textual do filme, os estudos culturais e os novos enfoques historiográficos do cinema. Desse modo, o próprio fato da psicanálise, enquanto tal, constituir-se como uma convergência de diferentes saberes, colocando como seu tema central a questão do sujeito, propiciou terreno fértil à transição dos estudos de cinema em direção a esse novo paradigma, que Casetti denomina “teorias de campo” (CASETTI, 2003).

Dentro dessa apontada pluralidade de abordagens trazidas à teoria e à crítica cinematográfica pelo confronto com a tradição psicanalítica, a via que aqui me interessa desenvolver situa-se frente ao enfoque lacaniano acerca do inconsciente estruturado como uma linguagem, o cotejamento dessa proposição com possibilidades conceituais relativas à noção de uma “linguagem cinematográfica”, e as implicações disso no que tange ao lugar do espectador, considerando-se a teoria lacaniana acerca da estrutura do sujeito.

O ponto de partida para isso encontra-se no exame que faz Lacan, em termos metafóricos, da estruturação do sujeito como construção ótica, do que resulta sua posição teórica constituída na forma de uma topologia na qual a posição ideal de um suposto observador da cena é condição de possibilidade de um acesso produtivo ao Real (real aqui tomado no sentido psicanalítico, e não no sentido filosófico). Em função dessa analogia metafórica da construção ótica como lugar de um sujeito, pode-se também extrair de sua relação com o aparelho cinematográfico uma analogia ótica referente ao processo identificatório experimentado pelo espectador, que traga avanços teóricos frente à clássica noção de “dispositivo” de Baudry.

Para Lacan, a produção de imagens, e mesmo a constituição psicológica de uma ótica, implicam que “a todo ponto no espaço real corresponda um único ponto em um outro espaço, que é o espaço imaginário […] o espaço imaginário e o espaço real confundem-se” (DOR, 1995, p. 35). Isso implica a existência de uma base psico-fisiológica para o fenômeno da identificação via apreensão de imagens, para cujo entendimento faz-se mister a distinção entre imagens reais e imagens virtuais. Assim: “A escolha ótica é uma outra maneira calculada, para Lacan, de inserir a tópica subjetiva no prisma das operações ao mesmo tempo imaginárias, simbólicas e reais de que ela depende” (DOR, 1995, p. 35). Pois o sujeito opera simultaneamente nessas três esferas psíquicas, a partir da instituição de um lugar estruturante pelo acesso ao simbólico (operante na própria manifestação do fenômeno), de modo que o mundo real e o mundo imaginário estão estreitamente intricados na economia psíquica.

Nesses termos, e tendo em conta a proposição topológica lacaniana da contínua transição operada pela instância do Real entre o Imaginário e o Simbólico, minha atual linha de investigação constitui-se da tentativa de aplicação desses conceitos ao exame de um corpus fílmico, escolhido dentre a vasta obra de Alfred Hitchcock, realizador que possui como procedimento estético central operar circunstancialmente uma espécie de torção no uso das imagens “reais” (no sentido da realidade diegética) como símbolos, causando um curto-circuito na qualidade da percepção espectatorial, de maneira a buscar induzir continuamente o espectador fílmico a confrontar-se com suas formações do inconsciente, como buscarei explicitar adiante.

O viés pelo qual encontrei um ponto de acesso psicanalítico à obra de Hitchcock, condizente com a extrema formalização presente no pensamento de Lacan, foi aquele expresso por Slavoj Zizek no artigo “Alfred Hitchcock ou haverá uma maneira certa de fazer o remake de um filme?” (ZIZEK, 2009). Buscando localizar o que seria a “substância” característica de Hitchcock, isto é, justamente aquilo que tende a se perder nas novas versões das mesmas histórias, Zizek recorre a três características centrais, dificilmente traduzíveis para outras versões audiovisuais, daquilo que identifica como conferindo a esses filmes seu caráter singular. Seriam estas, especificamente, 1) aquilo que ele nomeia como o sinthoma hitchcockiano (tradução de sinthome, seguindo a nomenclatura lacaniana); 2) o estatuto do olhar onipresente, de natureza fantasmática; 3) a situação, também fantasmática, da presença nesses filmes de múltiplos finais virtuais como desfechos igualmente possíveis. Acerca da diferença conceitual entre sintoma (symptôme) e sinthoma (sinthome), desenvolvida no texto deliberadamente críptico do Seminário 23 de Lacan (conforme observa Jacques-Alain Miller), o resumo a seguir pode ajudar a nos situarmos quanto a suas implicações:

« Le sinthome est un terme employé par Jacques Lacan pour désigner une particularité de la fonction que l’écriture eut pour l’écrivain James Joyce. Ce concept a été élaboré dans les années 1975-1976, durant le séminaire intitulé « Le sinthome ». Ceci prend du sens dès que l’on suit l’élaboration de la psychanalyse depuis Freud jusqu’à Lacan. Autant Freud situait le symptôme comme étant bien plus une tentative de guérison qu’une maladie au sens médical du terme, autant Jacques Lacan a considéré le symptôme comme ce qui permet à un sujet de s’inscrire dans un lien[2] » (http://fr.wikipedia.org/ wiki/ Sinthome).

Donde se depreende que a noção de sinthome (por oposição ao symptôme psicossomático) está intrinsecamente imbricada com o exame do ato da criação artística, já no próprio surgimento do conceito na obra de Lacan. Lacan trata a organização do psiquismo – com seu trânsito contínuo entre o Real, o Simbólico e o Imaginário – como sustentada por esse sinthoma, o que torna tal regime de funcionamento análogo ao de uma neurose constitutiva, tendente a levar os processos mentais a percorrer trilhas repetitivas, previsíveis. Entretanto, para enquadrar a particularidade das pessoas extremamente criativas, Lacan vai distinguir entre dois tipos de sinthomas, que ele batiza de sinthome masdaquin e de sinthome qui roule. O primeiro seria característico daqueles que se contentam com as formas de sublimação própria ao “semblante”, isto é, aquelas estabelecidas em torno de noções como o ser e seu esplendor, o verdadeiro, o bom, o belo, a partir de uma lei de formação inicial. O segundo, equiparado àquilo que Lacan destaca acerca da forma de organização criativa presente na obra de Joyce, liga-se à atuação de um imaginário sem freios, produzido pela ruptura circunstancial da formação caracterizada por Lacan como um nó borromeano, com o decorrente emaranhamento entre a instância do Real e os processos simbólicos do inconsciente. Em outros termos, a ocorrência daquilo que o próprio Joyce tratara como suas “epifanias”:

“Ainda preciso dizer algumas palavras que eu tinha preparado sobre a famosa epifania de Joyce. […] É totalmente legível em Joyce que a epifania é o que faz com que, graças à falha, inconsciente e real se enodem. […] A ruptura do ego libera a relação imaginária, pois é fácil imaginar que o imaginário cairá fora, uma vez que o inconsciente lhe permite isso incontestavelmente” (LACAN, 2007, p. 151).

Dentre aquelas características que Zizek especifica como marcas identificáveis do estilo de Hitchcock, aquela que me interessa no escopo da presente pesquisa vincula-se à identificação e à discussão acerca da natureza psicológica e de sua representação no campo da linguagem cinematográfica do que aí é apontado como manifestação da presença do sinthoma lacaniano (que este distingue, como vimos, da noção de sintoma clínico), presentes nos diversos motivos visuais que se repetem de filme para filme, em contextos totalmente diferentes. Os exemplos desse procedimento estético, elencados por Zizek, são seis: 1) o motivo da queda num espaço vazio, próximo daquilo que Freud identificara como “queda suicida melancólica”; 2) o motivo de um carro à beira do precipício (quase uma variante do anterior); 3) o motivo da mulher que sabe demais; 4) o motivo do crânio mumificado; 5) o motivo de uma casa gótica com grandes escadarias; 6) o motivo da espiral que atrai para suas profundezas abissais (ZIZEK, 2009, p. 82-83).

Cabe mencionar aqui que, conforme propõe Peter Wollen em Signos e significação no cinema, um traço pelo qual se pode reconhecer aqueles realizadores que, em meio às limitações postas pela lógica da produção industrial dos estúdios e pela natureza coletiva da produção cinematográfica, lograram guardar sua marca autoral, está justamente a tendência à repetição de motivos básicos, mas que se apresentam “em termos de relações móveis, tanto na sua singularidade como na sua uniformidade”, onde Wollen reconhece a existência de uma dinâmica dos signos próxima àquela das permutações que Lévi-Strauss identifica enquanto aspecto latente na estrutura mítica, tornado perceptível pelo processo de repetição.

“Os mitos, como afirmou Lévi-Strauss, existem independentemente do estilo, da sintaxe da frase ou do som musical, da eufonia ou da cacofonia. O mito funciona a um nível excepcionalmente elevado em que o significado consegue praticamente arrancar-se ao terreno linguístico onde se mantém em andamento. Mutatis mutandis, o mesmo é verdade em relação ao filme de autor.” (WOLLEN, 1984, p. 106).

Nesses termos, é inegavelmente a construção dos enredos hitchcockianos em torno a motivos recorrentes um dos fatores fundamentais que dão a seus filmes suas características inimitáveis. Zizek propõe que tais motivos, sejam visuais, formais ou materiais, constituem um conjunto de signos materiais “que resiste ao significado e que estabelece conexões que não estão alicerçadas nas estruturas simbólicas narrativas: estão apenas relacionadas numa espécie de ressonância cruzada pré-simbólica” (ZIZEK, 2009, p. 83). De tal modo que, contrariamente ao sintoma clínico, visto como código de um significado reprimido, o padrão repetitivo do sinthoma daria corpo “a uma matriz elementar de jouissance, de prazer excessivo […] Assim, os sinthomas de Hitchcock não são meros padrões formais: já condensam certo investimento libidinal. Enquanto tais, determinaram seu processo criativo” (ZIZEK, 2009, p. 84).

Dentro do estudo dos processos criativos no campo da linguagem audiovisual, tema com o qual tenho me envolvido ao longo dos últimos anos na qualidade de professor de roteiro cinematográfico, essa via de acesso à obra de Hitchcock revela-se particularmente fecunda:

“Hitchcock não partia do argumento para sua tradução em termos audiovisuais cinematográficos, mas começava com um conjunto de motivos (em geral visuais) que assombravam sua imaginação, que se impunham como seus sinthomas; depois, construía uma narrativa que servia como pretexto para o uso destes… Tais sinthomas dão o aroma específico, a densidade substancial da textura cinematográfica dos filmes de Hitchcock: sem eles, teríamos uma narrativa formal sem vida. Desse modo, todo discurso acerca de Hitchcock como o ‘mestre do suspense’, de seus argumentos tortuosos ímpares etc., erra a dimensão fundamental” (ZIZEK, 2009, p. 84).

Cabe aqui destacar que a dinâmica pela qual cenas e situações que poderiam aparecer corriqueiramente dentro da estrutura habitual do suspense – como o corpo que cai ou ameaça cair, o nível de conhecimento detido por uma personagem, a mansão “ameaçadora” etc. – ascendem à categoria de símbolos (de modo a encarnarem sinthomas) está intrinsecamente articulada à sua retomada, seja num mesmo filme, seja em filmes diversos, seja de modo idêntico ou de modo análogo. A repetição constitui a condição estruturante para a ocorrência da substituição significante própria ao processo instaurador do símbolo, como Lacan explica em sua análise do sentido do jogo infantil “fort-da” – tal qual descrito por Freud –, pelo qual o garotinho se torna “mestre de uma ausência” (DOR, 1985, p. 115). Nessa medida, a concepção narrativa hitchcockiana, que pressupõe a construção de uma história principalmente para permitir através dela a expressão de motivos temáticos, utiliza deliberadamente a força simbólica para atuar sobre a percepção do espectador como um recorrente lembrete, indicador da ausência que ali se configura, instituindo por essa via a presença do sinthoma. Tal “presença”, experimentada como uma ausência, serve ao espectador, na dinâmica de seu envolvimento identificatório com a narrativa, como indicador paradoxalmente vago, mas simultaneamente preciso, do sentido geral da perda, característica própria à instauração do simbólico. Na expressão de Lacan: “il faut que la chose se perde pour être représentée”[3] (DOR, 1985, p. 115).
A expressão da criatividade na forma de agendamento do sinthoma aponta para uma necessária articulação do discurso na forma do reconhecimento de um Outro (le lieu de l’Autre, nos termos de Lacan), com o efeito de uma comunicação de inconsciente a inconsciente. Essa dinâmica comunicativa encontra-se na imbricação entre a expressão do desejo e a lógica da linguagem:

“Le message, en principe, est fait pour être dans un certain rapport de distinction avec le code, mais là c’est sur le plan du signifiant lui-même que, manifestement, il est em violation du code […] Il faut que la distinction d’avec la prescription du code soit bien entérinée comme message au lieu de l’Autre […] par le locuteur et l’auditeur pour que, de part et d’autre, la néocomposition signifiante soit admise comme message, c’est à dire comme création d’un sens nouveau”[4] (DOR, 1985, p. 215).

Nos termos da estética hitchcockiana, as configurações compostas nos filmes, características da formação simbólica do sinthoma, constituem a condição indispensável para que o espectador seja não apenas o receptor de um conjunto de informações objetivas, e sim também movido emocionalmente como se o diretor do filme o tocasse nos moldes em que um músico toca um instrumento musical (um órgão, no caso, para nos atermos à metáfora cara a Hitchcock). Ou seja, o diretor almeja alcançar seu público para além da compreensão que cada um individualmente detém acerca dos efeitos que a narrativa cinematográfica pode proporcionar-lhe. No campo da linguagem, para Lacan, o processo metafórico de que se vale a formação do sintoma clinicamente observável (sympthôme) por suas manifestações psicossomáticas é da mesma natureza do sinthoma, nos termos de sua sobre-determinação, o que torna sua representação capaz de ser portadora de um excesso de informação, indecifrável num nível literal, mas perturbadora no campo intuitivo. A própria ininteligibilidade dos efeitos provocados no espectador pela exibição fílmica do sinthoma é fator central para permitir a este ser o veículo de uma ligação com emoções e conteúdos reprimidos. Levando-se adiante a analogia metafórica de symptôme e sinthome, podemos observar que na manifestação do symptôme é central a importância da “reversão dos afetos” ((DOR, 1985, p. 85). Manipular os afetos da audiência via produção de emoções perturbadoras, que trabalham profundamente sobre a base do processo identificatório, constitui para Hitchcock o modo pelo qual ele obriga continuamente o espectador a tomar decisões de foro íntimo quanto a posicionar-se diante do rumo que a narrativa segue, estando confrontado ao valor positivo ou negativo (e eventualmente reversível) inerente a cada percepção afetiva. Nesse quadro, a reversão dos afetos de que trata Lacan, nos termos dos conteúdos sintomáticos (presentes tanto na manifestação enquanto symptôme quanto nas manifestações enquanto sinthome), só pode se dar na medida em que o suporte da possibilidade metonímica permita debitar à energia refugada dos afetos o não-sentido da operação de reversão, quando a transformação se viabiliza pelo bloqueio do sentido anterior.

Por sua vez, o mecanismo responsável por essa substituição metonímica tem no campo do cinema um apoio fundamental na própria constituição sígnica da imagem, já que nela a possibilidade de recorte dos significantes revela-se mais fluida, menos definida, do que ocorre com o significante verbal. Considerando a noção desenvolvida por Lacan acerca do que ele denomina “pontos de estofamento” (points de capiton), capazes de operar recortes no deslizamento do discurso entre o plano dos significantes e o plano dos significados, por delimitá-los simultaneamente, temos que a fluidez da imagem, ao permitir uma transversalidade no campo discursivo do filme, acentua sobremaneira a potencialidade de deslocamento quanto ao próprio local de inserção sintagmática desses “pontos de estofamento”. Com isso, as possibilidades quanto ao deslizamento entre o plano dos significantes e o dos significados ficam inevitavelmente contaminadas pela inserção da subjetividade espectatorial. Tal mecanismo nos serve a compreender a razão pela qual o cinema de Hitchcock apoia-se na imagem quase ao ponto de constituir uma continuidade estética do cinema mudo, no que tange à expressão visual do sinthoma, contida nas cenas-chave de cada obra. A propriedade narrativa de que o cineasta lança mão ao empregar deliberada e reiteradamente tal tipo de procedimento está, como vimos, em permitir-lhe fazer alusão a conteúdos de natureza inconsciente, restituindo com isso ao discurso sua capacidade originária de enunciar para além do intencionado racionalmente pelo sujeito: “l’enfant ne sait plus ce qu’il dit dans ce qu’il énonce”, com a implicação decorrente de que, diante da própria condição de acesso à linguagem, diz-se outra coisa que aquilo que se acredita dizer no que se diz (DOR, 1985, p. 132). Tem-se aí o inconsciente que escapa ao sujeito falante, pois este se separou dele constitutivamente.

O reiterado uso de símbolos em Hitchcock, isto é, seu emprego da linguagem cinematográfica de modo a fazer com que certas imagens presentes de modo causal na diegese adquiram força de símbolo, encontra-se, portanto, em ressonância direta com as propriedades simbólicas descritas por Lacan quanto à instauração e estruturação do inconsciente. A própria fundação do sujeito na e pela linguagem, consequência do tipo de relação entretida pelo sujeito com a ordem simbólica, faz com que o real apareça-lhe por meio de um substituto simbólico. Pois a representação do real para o sujeito surge como cisão entre o real vivido e aquilo que vem significá-lo, de tal forma que “a própria ausência vem se nomear” ((DOR, 1985, p. 136). Com referência às estratégias narrativas escolhidas por Hitchcock, tal pregnância do símbolo – capaz de atualizar para o espectador suas pulsões inconscientes recalcadas – produz na economia fílmica a recorrente presença de um espaço de clivagem subjetiva, do qual o espectador se vê feito refém.

Se a aplicação do conceito de sinthoma por Zizek à obra de Hitchcock deve-se à sua intenção de utilizar as decorrências de semelhante abordagem em seu trabalho de crítica social, minhas intenções quanto à leitura da obra hitchcockiana propiciada por tal viés têm outro endereçamento. Como já enunciei mais acima, minha abordagem liga-se à busca de elementos que auxiliem na elucidação da natureza do processo criativo. Nessa direção, parto de um confronto com os próprios limites apresentados pelo enfoque realizado por Zizek acerca da questão do lugar do sujeito diante do enunciado cinematográfico, com relação às finalidades que tenho em vista.

De saída, devemos ter em conta que, se a obra de Hitchcock se presta particularmente bem a um exame de tipo psicanalítico, a causa disso está em que ela surgiu dentro de um contexto social em que a psicanálise vinha se tornando um discurso socialmente difundido, mesmo se frequentemente sob uma forma de divulgação pouco formalizada. A biografia de Hitchcock escrita por Donald Spoto, The Dark Side of Genius (SPOTO, 1993), dá bem a medida do contato do cineasta tanto com essa literatura de divulgação, quanto com seu recurso a psicanalistas como consultores na elaboração de alguns de seus roteiros. É. Portanto. sobre um fértil material que se constrói o essencial da ensaística de Zizek sobre tais filmes, já presente desde Everything You Always Wanted to Know about Lacan (But Were Afraid to Ask Hitchcock). De modo que sua retomada dos temas psicanalíticos em Hitchcock sob um viés lacaniano – ainda que suas conclusões por vezes idiossincráticas não tenham recepção unânime – constituem ampla tentativa de atualização das possibilidades de convergência entre materialismo histórico e psicanálise, auxiliando na elucidação das influências da psicanálise no discurso artístico do século 20. Isso posto – usar para a interpretação de um conjunto de textos metodologia coerente com aquela empregada em sua construção –, avaliemos o a priori de Zizek para sua análise: “Como interpretar esses gestos ou motivos persistentes? Devemos resistir à tentação de tratá-los como arquétipos jungianos de significado profundo” (ZIZEK, 2009, p. 83). A isso, porém, eu acrescentaria duas outras decorrências: 1) tampouco devemos descartar conjuntamente outras facetas do complexo pensamento de Jung (mesmo se por vezes carente de sistematização adequada), que se revela central para a compreensão dos processos criativos; 2) deve-se igualmente desistir de tomar as conclusões derivadas da aplicação feita pelo próprio Zizek da psicanálise ao cinema como respostas definitivas acerca do cinema hitchcockiano e às suas implicações para uma teoria da sociedade onde essa obra se gestou, tema central do artigo tomado como ponto de partida das presentes considerações. Pois o próprio da criação artística é, evidentemente, seu caráter polissêmico, e são tantas as visões (pertinentes umas, outras nem tanto) acerca da obra de Hitchcock quanto é vasto o número dos críticos que a ela se dedicaram. Para se construir produtivamente uma apreciação acerca dos processos criativos em Hitchcock precisamos em alguma medida passar além da ideia de que os símbolos numa obra como a desse cineasta – que busca deliberadamente emular uma dinâmica onírica, tal qual um pesadelo que se tem acordado (no que se refere às peripécias dos personagens), ou em estado de letargia semi-hipnótica (caso do espectador) – estejam ali à espera de um deciframento, de uma interpretação que lhes insira um extra de significação.

Quanto a Jung, deve-se ter em conta as possibilidades interpretativas derivadas de sua assertiva proposição com respeito a um saber específico próprio ao inconsciente, que atuaria na criação artística tanto quanto na onírica. Acerca das tentativas de “tradução” dos conteúdos oníricos, Jung mostra-se incisivo em seu debate com Freud:

“O sonho é um fenômeno normal e natural, e não significa outra coisa além do que existe dentro dele […] A confusão nasce do fato de os seus conteúdos serem simbólicos e, portanto, oferecerem mais de uma explicação. Os símbolos apontam direções diferentes daquelas que percebemos com a nossa mente consciente; e, portanto, relacionam-se com coisas inconscientes, ou apenas parcialmente conscientes. Para o espírito científico, fenômenos como o simbolismo são um verdadeiro aborrecimento por não poderem formular-se de maneira precisa para o intelecto e a lógica” (JUNG, 2008, p. 112-3).

Tal inadequação entre o processo de criação simbólica e as metodologias de análise científica tem vastas consequências, que Jung trabalha do ponto de vista da clínica psicoterapêutica, e com referência às quais gostaria aqui de colocar uma tomada de posição também no que se refere à análise da criação artística:

“O problema começa nos fenômenos dos ‘afetos’ ou emoções, que fogem a todas as tentativas da psicologia de encerrá-los numa definição absoluta. Em ambos os casos, o motivo da dificuldade é o mesmo – a intervenção do inconsciente. Conheço bastante o ponto de vista científico para compreender o quanto é irritante lidar com fatos que não podem ser apreendidos apropriada ou totalmente. O problema com esse tipo de fenômeno é que são fatos que não podem ser negados, mas que também não podem ser formulados em termos racionais. Para fazê-lo precisaríamos ser capazes de compreender a própria vida, pois é ela a grande criadora de emoções e ideias simbólicas” (Jung, 2008, p. 113).

Tal dificuldade (ou mesmo impossibilidade) de reduzir ao campo da razão o processo de criação simbólica – enfatizo aqui o termo de criação, e não do funcionamento discursivo do símbolo per se – aponta para um paralelismo entre a complexidade específica ao trabalho clínico e aquela de quem investiga o fenômeno da criatividade artística. Sobre a clínica Jung dirá:

“O psicólogo acadêmico tem total liberdade para afastar das suas considerações o fenômeno da emoção ou o conceito de inconsciente, (ou os dois). No entanto, ambos são fatores aos quais o médico deve prestar a devida atenção, já que conflitos emocionais e intervenções do inconsciente são aspectos básicos da sua ciência. De qualquer modo, quando ele for tratar de um paciente, vai defrontar-se com esses fenômenos irracionais como fatos resistentes que não levam em conta a sua capacidade para formulá-los em termos racionais” (JUNG, 2008, p. 113).

Muito embora seja discutível a tentativa de aplicação de uma leitura psicanalítica à relação entre vida e obra de qualquer artista – veja-se, no caso de Hitchcock, o fato de que esse tipo de tentativa responde pela parte mais contestada da citada obra de Spoto – parece-me pertinente estender essas reflexões de Jung àquilo que toca ao tipo de disposição intelectual e de postura analítica que deve ter quem se proponha ao estudo dos fatores subjetivos envolvidos no processo criativo de um artista. Assim, resumo na seguinte proposição os elementos que creio justificarem o escopo da pesquisa aqui proposta: buscar os caminhos do processo criativo pelos quais aquilo que é da ordem do Real e, por decorrência, em si destituído de afeto (isto é, construído como linguagem), pode ser trabalhado de modo a gerar afeto no espectador. Não se trata aqui, especificamente, da questão da estrutura melodramática, pois no interior da obra de Hitchcock a própria noção de melodrama constitui para o cineasta unicamente o suporte para a criação de um “McGuffin”, ou seja, de formas vazias que lhe permitem negociar suas intenções autorais dentro do sistema dos estúdios. Sua verdadeira busca estética consiste em produzir criativamente as condições para explorar aquilo que Zizek caracteriza como a expressão de sinthomas, de maneira a agir sobre a própria percepção subconsciente do espectador. Porém, tal como vejo a presença dessas imagens e situações recorrentes habilmente tornadas símbolos por Hitchcock, para um estudo de seu trabalho criativo pouco importa qual o sentido último que o autor a elas almejava explicitamente ou implicitamente atribuir (se é que existiria algum), e sim compreender como elas operam no âmbito da economia narrativa dos filmes. As interpretações que à sua obra vêm sendo dadas trazem sempre, inevitavelmente, a marca das condições históricas e dos interesses hermenêuticos de cada um de seus intérpretes, e é tendo isso em mente que pretendo delas manter distância crítica ao concentrar-me no exame de seu processo formativo.

Dentre os motivos tomados como sinthoma na obra de Hitchcock, na presente pesquisa ainda em andamento, pretendo dar destaque à recorrência das formas visuais circulares, motivos, em sua maior parte, não mencionados por Zizek. Tais formas circulares, com frequência enquadradas frontalmente na forma de inserts, ligam-se a contextos diegéticos os mais diversos, constituindo imagens que momentaneamente associam-se a estados de espírito (ou os insinuam) que a sequência da história encarrega-se de confirmar ou negar. Eis alguns exemplos:

Acesso ao objeto de desejo e à verdade: a fechadura do cofre em Marnie; o anel de noivado em Rear Window, assim como as lentes da teleobjetiva do fotógrafo Jeff; o furo na parede em Psycho; as rodas do moinho, que indicam o local da conspiração dos espiões em Foreign Correspondent;

Suposto alívio: o chuveiro em Psycho, e pouco antes, no mesmo filme, o vaso sanitário onde se jogam as contas do dinheiro a devolver;

Frustração: o prato com ensopado de peixe em Frenzy; a travessa com frango assado em The Man Who Knew Too Much – isto é, o alimento insatisfatório;

Vida ameaçada, ou que se esvai: o ralo da banheira e a pupila do olho em Psycho; mãos que estrangulam, em Strangers on a Train; o laço da gravata em Frenzy; o fio do telefone que estrangula, em Dial M for Murder; os címbalos da orquestra, em The Man Who Knew Too Much, que representam tanto a ameaça ao político presente no auditório quanto as consequências da decisão da cantora, no tocante às repercussões para seu filho raptado.

A unir a presença desses motivos em contextos tão diversos, está um conjunto comum de substratos, que se poderia esquematicamente descrever como: o caminho para o objetivo, o que esclarece esse objetivo, ou o aponta, ou tenta ocultá-lo, ou o dificulta, ou o mostra como desejável. Em comum, portanto, sua presença a lembrar-nos de que, conforme aponta Lacan, a falta não é especularizável, e portanto não pode haver imagem dela. Só pode ser acessada por processos indiretos, donde o recurso sistemático de Hitchcock ao suspense, como encenação da falta em ato: algo falta, e a demora na satisfação, continuamente adiada, constitui-se num fim em si mesma. Pois, tragicamente, se algo surge que venha a ocupar o lugar da falta – de modo que esta venha a faltar – aparece a angústia de castração (DOR, 1995, p. 47). Nessa linha de reflexão, pode-se perceber como a recorrente imagem do objeto redondo constituído pela fechadura da porta do cofre em Marnie dá margem a um elenco de associações no contexto da história, tornando-se suporte para diversas conotações: 1) a apenas aparente segurança do cofre (ou, simbolicamente nesta situação, o “feminino”), pois ele de fato é devassável pela esperta ladra, aquela que, como mulher frígida, tornou-se mestra da dissimulação; 2) o dinheiro por trás dessa fechadura da porta, enquanto promessa de liberdade; 3) a atitude “fálica” de penetração no cofre, passagem no caminho de Marnie em busca da recuperação de sua capacidade desejante. Mas é em contraponto a isso que o casamento momentaneamente priva Marnie de sua “falta”, trazendo-lhe a angústia de castração, interiorizada a partir da sua convivência infantil frustrante com a mãe prostituta.

Há outros importantes motivos recorrentes na obra de Hitchcock, como o da comida e bebida associadas à morte, por vezes na forma de um banquete fúnebre, como em Rope, The Birds, Dial M for Murder, Psycho… Ou o da comida associada ao sexo, como em To Catch a Thief, Psycho, Frenzy, etc., conforme tive ocasião de examinar em um artigo consagrado a esses temas (POMMER, 2001).

Mas é no motivo das formas circulares que gostaria de concentrar a presente pesquisa, motivo formal ao qual me parece pertinente a aplicação das propriedades topológicas do plano projetivo conhecido como cross-cap, acerca do qual Lacan destaca o seguinte: “Essa superfície assim estruturada é particularmente propícia a fazer com que funcione diante de vocês este elemento mais inapreensível que se chama desejo enquanto tal, em outras palavras, a falta” (DOR, 1995, p. 189). Essa forma, em sua potencialidade enquanto esquema explicativo, mostra-se complementar àquela da topologia da figura geométrica batizada toro, gerada por um círculo que percorre uma trajetória em torno de outro círculo, e que, segundo propõe Lacan, ilustra a dialética da demanda e do desejo entre o sujeito e o Outro. Tais figuras compostas por círculos que envolvem círculos prestam-se bastante bem (até mesmo no plano visual, mas mais ainda no plano da dramaturgia e do enredo) a caracterizar a dinâmica de cenas como aquelas que envolvem o assassinato em Psycho, com o giro da câmera sobre a pupila do olho e a água ensanguentada que gira, ralo abaixo, assim como a dualidade da função simbólica da fechadura circular em Marnie, a que já me referi.

Para além de estimular uma identificação do espectador com os protagonistas, as estratégias narrativas empregadas por Hitchcock buscam também induzir a identificação do espectador, enquanto sujeito desejante, com a própria imagem quando dotada de potencial simbólico, situação que, segundo Lacan, torna-se possível já que o sujeito só pode figurar em seu próprio discurso – isto é, em sua auto-identidade – ao preço de uma cisão, desaparecendo enquanto sujeito para se reencontrar representado na forma de um símbolo, especificamente aquele significante individualizado a que cada um atribui o lugar simbólico do pai no inconsciente. O vazio estrutural deixado pela forclusão desse significante Nome-do-Pai abre espaço para as imagens que confrontam o espectador enquanto sujeito – daí podermos inferir a força alusiva dos enquadramentos frontais utilizados por Hitchcock para diversos “círculos de círculos”, como o chuveiro em Psycho e a fechadura do cofre em Marnie (em duas variantes do tema da ladra). Não há razão diegética a justificar a frontalidade desses planos; ao representá-los assim, o filme os faz interlocutores da personagem e do espectador, simultaneamente. Eles se tornam o vazio que devolve o olhar, acarretando uma subjetivação do objeto, num exercício do estilo que Hitchcock aprendera dos expressionistas. Nos termos lacanianos, um confronto com a coisidade da Coisa.

Tal confrontação narrativa aparece como decorrência natural do processo descrito na terminologia lacaniana como sutura, caracterizando a relação do sujeito que fala com seu próprio discurso, e que Jean-Pierre Oudart estendeu aos enunciados cinematográficos:

“A sutura é um modo de articulação entre dois planos sucessivos, que não se funda no significado das imagens que devem ser articuladas (…), mas se desenrola em termos do significante fílmico e especialmente da relação entre campo e fora-de-campo, ou ‘campo ausente’, aquele que se constitui como uma ‘falta‘ a partir de certos elementos dados no campo – especialmente os olhares. A sutura é o processo pelo qual a falta em questão é abolida, para o espectador, por alguma coisa que se produz no segundo plano” (AUMONT e MARIE, 2006).

Pela sua capacidade de assegurar a representação simbólica do sujeito em seu discurso, no que concerne à posição do espectador, a estética hitchcockiana consegue mobilizar de modo permanente as instâncias psíquicas relacionadas à atribuição de valorações morais às situações representadas. Uma vez que, nos termos de Lacan, o sujeito é causado por sua linguagem (e não sua causa), a preponderância dada por Hitchcock ao conteúdo simbólico da imagem (isto é, para além de sua presença icônica) promove a imersão do espectador no discurso fílmico enquanto sujeito, produzindo uma diminuição ou restrição de seu possível distanciamento. Assim, ao deparar-se com o símbolo tomado como sinthoma, o espectador reconecta-se de forma profunda com a própria experiência de sua subjetividade.

Quanto às decorrências do uso reiterado desse tipo de procedimento na forma de exercício autoral da linguagem cinematográfica, temos que, para Lacan, um significante é aquilo que representa um sujeito para outro significante, o qual por sua vez é o constituidor originário do sujeito receptor do discurso (DOR, 1985, p. 138), já que o sujeito é barrado a si mesmo ($ na representação lacaniana). Nesses termos, vemos que o estilo hitchcockiano de dar proeminência ao símbolo faz com que seu cinema com frequência tenha momentos de endereçar-se explicitamente ao espectador enquanto sujeito, rompendo com a forma enviesada pela qual a narrativa clássica busca construir a experiência cinematográfica como se fora uma realidade “autônoma”, observada por um espectador independente, mesmo se emocionalmente participante. No caso do cinema de Hitchcock, não é, portanto, somente a câmera que busca colocar o espectador “dentro da cena” (efeito visado pela decupagem clássica), mas também o tratamento narrativo do significante enquanto símbolo/sinthoma procura situar à experiência do espectador simultaneamente para além da identificação secundária (com os personagens) e aquém da identificação primária (com o dispositivo), para identificá-lo com a própria possibilidade de uma cadeia narrativa, enquanto sujeito.

Encerro estas premissas com uma alegoria. Ao permitir o trânsito contínuo pela via do Real entre o Simbólico e o Imaginário, a experiência do cinema hitchcockiano revela-se perturbadora – para o espectador que aceite “jogar o jogo” de seu gênero de cinema, bem evidentemente – por permitir uma espécie de “psicose imagística”, na qual interior e exterior da experiência subjetiva são percorridos em sequência, de maneira contínua, imprevista e indistinta. A fita do filme atua, alegoricamente, como uma fita de Möbius, em que a narrativa fílmica “constitui o espectador”, ao passo que este se reconhece nela. As implicações dessa dinâmica no campo projetivo são vastas, sendo esse um dos aspectos que pretendo aprofundar na pesquisa aqui esboçada. Considerando que no cinema de Hitchcock os enredos – estruturados sobre pretextos (literalmente, pré-textos) vazios, os “McGuffins” – existem basicamente para veicular as cenas capazes de induzir no espectador tais experiências de “psicotização sob controle”, podemos ver nesse procedimento um dos centros de sua estética.


[1] Mauro Eduardo Pommer é Professor no Curso de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina. Diplôme d’Études Approfondies na Université de Paris 1 – Panthéon-Sorbonne (1992), na área de Roteiro Cinematográfico; Doutorado: Doctorat en Arts et Sciences des Arts – Université de Paris 1 – Panthéon-Sorbonne (1996), com a tese La question du point de vue dans le récit cinématographique, disponível nas Éditions du Septentrion; pós-doutorado em Cinema na Universidade da Califórnia, Los Angeles (2003), com pesquisa em scripts (sinopses literárias, argumentos, roteiros) originais e documentos de produção de filmes de Alfred Hitchcock.

[2] “Sinthome é um termo empregado por Jacques Lacan para designar uma particularidade da função que a escrita teve para o escritor James Joyce. Esse conceito foi elaborado nos anos 1975-1976, durante o seminário intitulado `O sinthoma`. Isso ganha sentido quando se acompanha a elaboração da psicanálise desde Freud até Lacan. Tanto quanto Freud situava o sintoma como sendo mais propriamente uma tentativa de cura que uma doença no sentido médico do termo, Jacques Lacan considerou o sintoma como sendo aquilo que permite a um sujeito inscrever-se em um vínculo” (Tradução do autor).

[3] “É preciso que a coisa se perca para ser representada” (Tradução do autor).

[4] “A mensagem, em princípio, é feita para estar em certa relação de distinção com respeito ao código, mas nesse caso é sobre o plano do próprio significante que, manifestamente, ela viola o código […] É preciso que a distinção com referência à prescrição do código seja bem ratificada como mensagem ao lugar do Outro […] pelo falante e pelo ouvinte para que, de uma parte e d’outra, a nova composição significante seja admitida como mensagem, isto é, como criação de um sentido novo” (Tradução do autor).

Referências Bibliograficas

AUILER, Dan. Vertigo –The making of a Hitchcock classic. New York: St. Martin’s Griffin, 2000.
_____. Hitchcock’s notebooks. New York: Harper Collins, 1999.
AUMONT, Jacques et alii. A estética do filme. Campinas: Papirus, 1995.
_____ e MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas: Papirus, 2006.
BARTUCCI, Giovanna (Org.). Psicanálise, cinema e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro: Imago, 2000.BELLOUR, Raymond etalii (Org.). Communications n. 23: Psychanalyse et cinéma. Paris: Seuil, 1975.
BERGSTROM, Janet (Org.). Endless night – Cinema and psychoanalysis, parallel histories. Berkeley: University of California Press, 1999.
BLOCH, Robert. Psycho. New York: Ibooks, 2003.
CASETTI, Francesco. Les théories du cinema depuis 1945. Paris: Nathan, 2003.
CONRAD, Peter. The Hitchcock murders. New York: Faber and Faber, 2000.
DeROSA, Steven. Writing with Hitchcock. New York: Faber and Faber, 2001.
DOR, Joël. Introduction à la lecture de Lacan – vol. 1. L’inconscient estructuré comme um langage. Paris: Denoël, 1985.
____. Introdução à leitura de Lacan – vol. 2. Estrutura do sujeito. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
DOUCHET, Jean. Hitchcock. Paris: Cahiers du Cinéma, 1999.
FREUD, Sigmund. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
_____. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
GOTTLIEB, Sidney (Org.). Hitchcock por Hitchcock. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
GRAHAM, Winston. Marnie. New York: Crest, 1964.
GUIMARÃES, Dinara Machado. Vazio iluminado, o olhar dos olhares – cinema e psicanálise. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
HENNEBELLE, Guy (Org.).Cinémaction n. 50: Cinéma e psychanalyse. Courbevoie: Corlet, 1989.
JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
KROHN, Bill. Alfred Hitchcock au travail. Paris, Cahiers du Cinéma, 1999.
LACAN, Jacques. Écrits. Paris: Seuil, 1971.
_____. O Seminário – livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
_____. O Seminário – livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. Lisboa: Moraes, 1976.
METZ, Christian. Le significant imaginaire – psychanalyse et cinéma. Paris: Union Genérale d’Éditions, 1977.
MILLER, Jacques-Alain. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: O sinthoma. Rio de Janeiro, Zahar, 2009.
POMMER, Mauro.  “Alimentação, morte e sexo em Hitchcock”. In: Fernão Ramos; Maria Dora Mourão; Afrânio Catani; José Gatti. (Org.). Estudos de Cinema 2000. Porto Alegre: Sulina, 2001.
RAMOS, Fernão (Org.). Teoria contemporânea do cinema, vol. 1. São Paulo: Senac, 2005.
REBELLO, Stephen. Alfred Hitchcock and the making of Psycho. New York: Dembner, 1998.
ROUDINESCO, Elisabeth. Lacan, a despeito de tudo e todos. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
SPOTO, Donald. The dark side of genius – The life of Alfred Hitchcock. Boston: Little, Brown and Company, 1993.
TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut. Paris: Ramsay, 1983.
WOOD, Robin. Hitchcock’s films revisited. London: Faber and Faber, 1991.
XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal/Embrafilme, 1983.
ZIZEK, Slavoj. Enjoy your symptom! – Jacques Lacan in Hollywood and out. New York: Routledge, 2001.
_____. Everything you always wanted to know about Lacan (but were afraid to ask Hitchcock). Londres: Verso, 2002.
_____. Lacrimae rerum. São Paulo: Boitempo, 2009.

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Este post tem um comentário

Deixe uma resposta