Larissa Leda Fonseca Rocha[1]
Lívia Janine Leda Fonseca Rocha[2]
Resumo: Buscamos, neste trabalho, a partir da obra do cineasta maranhense Murilo Santos, pensar o documentário problematizando seu papel de preservação da memória, exercitando um diálogo entre a comunicação, com conceitos como lugar de memória, e a psicanálise, com pressupostos como o do sujeito de linguagem. Utilizamos quatro filmes, sendo dois com a importante particularidade de terem como tema a própria obra do diretor.
Palavras-chave: Documentário; memória; linguagem.
Documenting between memory and language
Abstract: We seek in this work, from the work of Maranhão’s filmmaker Murilo Santos, reflect about the documentary, questioning its role in preserving the memory; exercise a dialogue between the communication, with concepts such as place of memory, and psychoanalysis, with assumptions such as the subject of language. We use four films, two with the important feature to have, as its theme, the director’s own work.
Keywords: Documentary, memory, language
O documentário “Periquito Sujo” (1979), de Euclides Moreira, baseado na obra de Ferreira Gullar, “Poema Sujo”, de 1976, nos brinda com imagens que só podem existir hoje pelos caminhos das reminiscências: um trem que passa lento embaixo da ponte Camboa. A ponte resiste aos anos, o trem já não existe mais. Difícil não ver a cena sem ser tomado por um alerta, por uma tristeza que se disfarça mal. É justamente disso que nos fala este trabalho: de cinema, memória, lembranças e esquecimentos.
Documentários no Maranhão
É verdade que a produção do Uirá – um Cineclube Universitário que nasceu pelas mãos da Coordenação de Extensão e Assuntos Comunitários (CEAC) da Universidade Federal do Maranhão nos anos 1970 e por onde circularam nomes que viriam a marcar a produção audiovisual do estado, como Murilo Santos e Euclides Moreira Neto –foi fortemente marcado pela realização de filmes documentários que traziam como temática questões políticas e sociais e, parte da explicação para isso, estava no próprio contexto de sufocamento ideológico vivido pela sociedade naquele momento. Desde o início do Festival Guarnicê[3] – por onde efetivamente até hoje escoa a produção cinematográfica local e se tornam conhecidos os filmes de realizadores independentes[4] – foram contabilizados 316 filmes documentários feitos por maranhenses ou tendo o Maranhão como foco de interesse principal. Cerca de 40% deles trazem como temática central questões relacionadas à política e/ou sociedade[5]. Naturalmente o assunto os interessava e interessa ainda hoje.
Mas, junto a isso, é também difícil negar o papel atribuído ao documentário de preservação da memória, papel que buscamos aqui problematizar, e que remete aos filmes feitos nos anos 70, que deixam tão expostos os modos de vida desse povo naquela época, mas também os recentes movimentos de revisitação desse material feito pelos próprios documentaristas. É o caso de dois filmes lançados recentemente pelo cineasta Murilo Santos. “Fronteiras de Imagens” (2010) e “Afinado a fogo: o Tambor de Crioula revisitado” (2009). Ambos os filmes são esforços de visita do documentarista a trabalhos anteriores, “Bandeiras Verdes” (1979/1987) e “Tambor de Crioula” (1979), respectivamente, ambos filmados em 16 milímetros.
“Bandeiras Verdes” conta os modos de vida e a expansão camponesa de comunidades no Vale do Rio Carú, interior do Maranhão. O filme registra esse momento e as lutas sindicais e camponesas, muitas vezes violentas, que aconteciam no período. A primeira captação de imagens para o filme aconteceu em sucessivas visitas ao local em 1979, com equipamentos menos sofisticados. Em 1985, o documentarista retornou ao local, para captar mais imagens já com aparelho síncrono e apoio da extinta Embrafilme[6]. No entanto, o personagem principal do documentário, “seu” Domingos Bala, já havia falecido, o que não prejudicou o desenvolvimento do filme. “Bandeiras Verdes” foi apresentado em 1988 no Festival Guarnicê, tendo Murilo Santos dividido a autoria do material com a montadora Aída Marques.
Sob inúmeros aspectos “Bandeiras Verdes” é um clássico documentário ao modo “participativo” de Nichols (2009), ou seja, bebe no Cinema Verdade. Mas também brinca com a exigência do real na narrativa. Em cena que Domingos Bala narra um encontro com os índios na mata, o documentário usa “imagens ficcionais”, como nominou Murilo Santos em “Fronteiras de Imagens”, e mesmo com “receio de macular o real” apostou na cena, pois o uso das “imagens ficcionais” era o melhor modo de narrar a história real do protagonista.
“Bandeiras Verdes” funciona como uma tentativa de — na dinâmica narrativa do documentário — compreender o presente antes que ele se converta em passado. “Documentar é algo importante do ponto de vista da humanidade. Subjacente a esse acto (sic) estará, porventura, a vontade de preservação das nossas memórias, uma tomada de consciência da nossa diversidade ou uma necessidade de nos manifestarmos” (PENAFRIA, 2009, p. 11).
Os documentários podem atuar como elemento de rememoração, mas também como documentação de um determinado momento histórico, como uma fonte armazenadora de dados sobre certa temporalidade. E a isso, claramente, serve “Bandeiras Verdes”. É, logo, um documento de época. “O cinema tem uma missão tão importante quanto urgente a cumprir: filmar o presente. O cinema é assim chamado a colaborar numa consolidação do presente impedindo que o mesmo se transforme num passado opaco” (PENAFRIA, 2008, p. 2).
Já “Fronteiras de Imagens” (2010), ao contrário de “Bandeiras Verdes” não está ocupado em narrar um modo de vida, em documentar uma temporalidade, em deixar visível uma realidade. É um filme que se encaixa no modo “performático” de Nichols (2009) e é ele todo um esforço de rememoração, de resgate, de resguardar uma lembrança do esquecimento. Sem disfarces. Sem subterfúgios. O filme, com off narrado pelo próprio Murilo em primeira pessoa, é todo montado com imagens de arquivo, com fotos feitas durante a produção do documentário “Bandeiras Verdes” pelo próprio diretor. Em uma digressão, por vezes, emocionada, Murilo conta a história de como nasceu “Bandeiras Verdes”, sua relação com os intervenientes, com a família de Domingos Bala, seus sentimentos em relação àquele povo, as situações que culminaram no registro das imagens. Em parte do filme, Murilo nos conta sobre a vida dos intervenientes, sobre o material de que se serviu para fazer “Bandeiras Verdes”, numa rememoração permanente. Na outra parte do filme o diretor lembra os procedimentos na feitura do filme, equipamentos usados, dificuldades técnicas, escolhas narrativas. “Fronteiras de Imagens” é um exercício de rememoração sobre a produção de algo que, em si mesmo, já é a construção de uma memória, o documentário “Bandeiras Verdes”. Murilo parece desejar durante todo o filme de 2010 relembrar como foi construída sua primeira lembrança, em 1979. Mas o que se encontra nas fronteiras desse desejo de rememoração? Sigamos mais um pouco.
Podemos estender as mesmas considerações ao trabalho do diretor em “Afinado a fogo: o Tambor de Crioula Revisitado” (2009). O filme, também do modo “performático” e com off em primeira pessoa, narrado pelo diretor, é montado com imagens de arquivo – fotos da realização do filme “Tambor de Crioula” (1979), e imagens novas, que mostram o diretor indo ao encontro dos intervenientes registrados no filme de 1979 ou seus descendentes. O filme é, essencialmente, um encontro com o passado, encontro nunca ingênuo e sempre caro. “Tambor de Crioula”, de 1979, obedece à estética do modo “expositivo” de Nichols (2009), ou seja, forte preponderância da voz de Deus com a apresentação de fragmentos do mundo histórico numa estrutura retórica e argumentativa. O material foi o resultado de uma das primeiras experiências do diretor com a película de 16 milímetros, um curta metragem (15 minutos) que buscava registrar a manifestação da cultura popular maranhense, documentar, pois o realizador acreditava que a expansão do turismo fosse fazer a manifestação sumir das ruas. O filme de 2009 pede perdão por essa afirmação. O tambor de crioula não acabou, continua sendo um traço marcante da cultura popular do Estado. Mas o movimento do documentarista em “Afinado a fogo” não é colocar sob teste o filme de 1979, mas reencontrar-se com o passado, dar aos intervenientes do primeiro filme um retorno, dialogar com o passado, fazer as pazes com o presente, marcado por uma angústia confessa do diretor por não ter mostrado aquela documentação aos documentados. Enquanto “Tambor de Crioula” fala de hábitos, de formas de se comportar, sendo ele próprio uma tentativa de arquivamento, da manutenção de um tempo que não vai voltar e que passou impunemente, “Afinado a fogo” é pura rememoração, um retorno a esse passado, um reavivamento do já vivido, mas que é, ele próprio, a construção de uma nova memória. Murilo, novamente, parece desejar, durante todo o filme de 2009, exercitar a lembrança do que foi o filme de 1979, convocando os intervenientes do primeiro filme – e seus descendentes – a relembrar com ele e assim constrói um novo discurso – um discurso do presente – sobre seu objeto, o Tambor de Crioula, mais ainda assim um discurso do presente revisitado pela memória. Nesse exercício de rememoração ele vai além e constrói novas imagens, impossível não ir, não se trata de uma escolha, rememorar é “ir além” ainda que não se objetive construir novas imagens.
Entre a memória e a linguagem
Este presente, que nos dá o tom da lembrança do passado, remete à idéia dos “enquadramentos de memória” de Pollak (1992). Falar de memória e usar o filme documentário como um lugar para esses debates nos confronta com a necessária observação do contexto contemporâneo marcado por um “boom” de memória, pelo que Huyssen (2000) chamou de “inflação da memória”. De fato, vivemos hoje um mundo radicalmente marcado pela emergência das Novas Tecnologias da Comunicação e Informação (NTCI) e, como sua consequência, do ciberespaço que reconfigura as noções de tempo e espaço, bem como de identidade, cultura e memória. Os apelos de memória aparecem facilmente seja na moda retrô, na quantidade de museus, na recuperação de monumentos, no estabelecimento de patrimônios culturais da humanidade, na obsessão pelo arquivamento coletivo e individual. Cresce, quase instantaneamente, a quantidade de memória disponível para o arquivamento de material digital. Nunca se voltou tanto ao passado e nunca se desejou tanto preservá-lo para o futuro. Experimentamos uma inversão do paradigma vigorado durante o Renascimento e o Modernismo, no qual as expectativas eram voltadas para o futuro. Agora, as esperanças estão focadas nos dias já passados, são os anseios pelos “passados presentes” (HUYSSEN, 2000). Huyssen continua: “não há dúvida de que o mundo está sendo musealizado e que todos nós representamos nossos papéis nesse processo. É como se o objetivo fosse conseguir a recordação total” (2000, p. 15).
Isto porque parecemos funcionar em uma visão platônica da reminiscência, observa Garcia-Roza (2003), segundo a qual recordamos para preencher lacunas de memória em busca de uma verdade esquecida da qual somos portadores, uma essência que diga o que somos, que dê o verdadeiro significado ao que fazemos. Desde o início da psicanálise Freud (1911/1915/1996) se defronta com o fato de que recordar não é preencher lacunas da memória, não se tratava, para seus pacientes, de recordar algo esquecido ou recalcado, isso era o tempo da catarse, pré-história da psicanálise. O que ele percebeu com aquelas histéricas é que se trata sobretudo de expressar algo pela atuação, elas repetiam sem saber que o faziam.
Memória viva, atuada, mas ainda assim indo inevitavelmente além e construindo novas imagens. Pois o humano não diz de uma repetição[7] do mesmo, não se trata de memória de acontecimentos passados, uma memória da consciência, memória-lembrança. A mera reprodução (movimento mais referenciado à natureza) é quase impossível para este ser que se encontra além da natureza, o ser de linguagem que é o homem quando repete e produz novidade, é uma repetição diferencial (GARCIA-ROZA, 2003; 2004). Esse diferencial produzido quando recordamos uma lembrança é um estranho assustador que remete ao conhecido, ao velho, ao estranhamente familiar, daí que nos sentimos impelidos a rememorar sem deixar de sentir receio nesse movimento, pois, lembra Garcia-Roza, só “o absolutamente novo, o que jamais se deu na experiência, não pode ser temido” (2003, p. 24).
Rememorar, para o homem, portanto, está longe de ser voltar ao mesmo, assim como um acontecimento, quando repetido, já não é o mesmo. O autor acima referido, esforça-se para demonstrar como o eterno retorno de que falam os gregos aponta justamente para essa repetição diferencial: “a própria repetição de uma palavra não traz com ela a repetição do sentido (…) a repetição se opõe às leis da natureza; ela diz respeito ao que há de mais interior na vontade e não às mudanças e igualdades que se dão em conformidade com as leis da natureza” (GARCIA-ROZA, 2003, p. 31-32). Assim, quando afirmamos que Murilo, ao produzir “Afinado a Fogo” e “Fronteiras de Imagens”, cria novas imagens e constrói uma nova memória, nos referimos também a “Bandeiras Verdes” e “Tambor de Crioula”, que, a partir desse retorno, já não podem ser os mesmos para o próprio diretor, e não só porque predições não se concretizaram, personagens morreram, ou arquivos não foram encontrados, mas porque ao revisitar suas lembranças teve que ir além, encontrando-se com novas antigas lembranças de bandeiras e tambores.
O desejo de lembrar e registrar, arquivar, ainda assim, coloca-se. Coloca-se apesar do encontro com um estranhamente familiar, e impelido pelo medo de esquecer. É verdade que lembrança e esquecimento estão em uma relação dialética, dinâmica. Lembrar é também esquecer. A seletividade do que pode ou deve ser lembrado é uma das características de memórias apresentadas por Pollak (1992, p. 203), “a memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado”. Acrescentaríamos a Pollak, que algumas experiências, por exemplo a dos desejos infantis, não deixam traços na memória consciente, no entanto produzem efeitos que perduram toda a vida. O esquecimento é concebido, na psicanálise, como ativo e não passivo, esquecemos pela eficiência de um funcionamento e não pela deficiência ou desgaste do material mnêmico (GARCIA-ROZA, 2004).
Atualmente, nos mostramos obcecados com as atividades de lembrar, nossa cultura está obcecada com a memória e dessa forma, “está também de alguma maneira tomada por um medo, um terror mesmo, do esquecimento” (HUYSSEN, 2000, p. 19). Para combater esse terror nos dedicamos mais e mais a processos de rememoração, tanto pública quanto privada. Monumentos, museus, álbum de fotos, vídeos de família. Arquivos. Cada vez mais arquivos. Ao mesmo tempo temos a consciência que esses arquivos falham. Como nos lembra Colombo (1991), os arquivos são imperfeitos.
Pollak (1992) lembra ainda que falar de memória é falar de uma relação tríade entre a memória, o esquecimento e o silêncio. Diz ele que há enquadramentos de memória, que pode se transformar num objeto de poder. Na verdade a memória coletiva, organizada, oficial de uma nação é lugar de disputa de poder e sofre, constantemente, enquadramentos. O presente dá o tom da lembrança do passado e esse “tom”, bem como a própria memória, é permanentemente construído e reconstruído. A memória é organizada em função de preocupações pessoais e políticas, é disputada permanentemente. Há um jogo, uma trama em negociação, há, como diz, memórias subterrâneas que buscam o tempo todo um “lugar ao sol”, um lugar para serem, no presente, lembradas pois podem ser silenciadas mas não, necessariamente, esquecidas. Ou ainda pode esse mesmo silêncio ser a própria lembrança, ou “a gestão da memória segundo as possibilidades de comunicação” (POLLAK, 1989, p. 13). Obviamente a construção dessa memória não é arbitrária, então, esse enquadramento tem limitações e se alimenta de material fornecido pela história.
Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a um sem-número de referências associadas; guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro (POLLAK, 1989, p. 9-10).
Os dois filmes de Murilo Santos, “Fronteiras de Imagens” e “Afinado a fogo” nos parecem, claramente, trabalhos que se ligam à ideia do enquadramento de memória. São trabalhos de ajuste, de reorganização, de ressignificação do sentido do que vimos nos primeiros filmes, logo uma orientação, um enquadramento dos modos de lembrar as primeiras histórias, nos indicando o que deve ser relembrado e valorizado e o que pode ser “esquecido” na retomada da história. O discurso de Murilo sobre os filmes, feitos cerca de 30 anos antes, é feito no presente. É seu trabalho como documentarista hoje que revê seu trabalho como documentarista nos anos 70, portanto é o presente que dá o “tom” do passado, da lembrança do que já foi, é o Murilo de hoje que avalia a história, que valoriza certas reminiscências, aponta falhas, traz à luz equivocadas deduções passadas para um futuro que hoje é presente. É o Murilo de hoje que legitima certas lembranças e deixa outras abafadas nos porões da memória. Mas não que essa seleção seja toda ela consciente, ou se trate de uma orientação inteiramente ou quase toda sob domínio da pessoa. É uma edição que ultrapassa o próprio Murilo, queira ele ou não. Essa seleção pode tornar-se objeto de poder, ser limitada e alimentada pela história, ou ainda gerenciada pelas possibilidades e tecnologias de comunicação, mas está submetida ao aparato anímico do sujeito, ao seu Inconsciente. E esse aparato anímico, sublinha incansavelmente Garcia-Roza (2003; 2004), é antes de tudo um aparelho de memória e de linguagem, “a memória desse aparelho é memória de linguagem, de uma escritura” (GARIA-ROZA, 2004, p. 29). A voz em off pode tentar conduzir o outro nesse passeio de rememoração, mas ultrapassa inclusive a vontade expressa do seu próprio dono.
Garcia-Roza observa que Freud nos fala da permanência de traços de memória e não da lembrança de um acontecimento, os traços são permanentes, mas a memória é sempre diferencial, tem a ver com os diferentes caminhos realizados no aparelho: “a memória não é um processo mecânico pontual, não é a reprodução sempre idêntica de um traço imutável, mas um processo que implica um diferencial de valor entre caminhos possíveis” (GARIA-ROZA, 2004, p. 35). Como se o traço não trouxesse um significado em si, assim os sentidos podem ser diversos a cada rememoração, uma vez que pode estar o sujeito, a cada rememoração, em diferentes posições subjetivas, a ponto de dizermos que é de outra coisa que se trata. Como bem observa o autor, memória tem a ver também com o poder de uma vivência de continuar produzindo efeitos no sujeito. Daí que uma experiência não é traumática em si (ou qualquer que seja o acento que tomará), é sua lembrança, melhor dizendo, é sua representação, sendo reinvestida num après coup, que irá produzir um efeito traumático. Assim podemos dizer que uma lembrança é tecida ao longo de um processo que a revela e produz ao mesmo tempo. Nesse sentido, também, o presente dá o “tom” do passado.
O aparato anímico do sujeito é também determinado pela linguagem, melhor dizendo, é estruturado como uma linguagem (LACAN, 1998), assim, é pela palavra que a verdade do sujeito faz sua emergência, a palavra opera a transmissão do desejo do sujeito, “em termos psicanalíticos o que importa não é sua função de informação, mas sua função de verdade” (GARIA-ROZA, 2004, p. 15). Desse modo, se o inconsciente não se oferece benevolamente e sim de modo distorcido, equivocado, dissimulado nos sonhos, nas lacunas do discurso e nos atos do sujeito, observa Freud (1914/1996), concomitantemente as poderosas forças de resistência anímica determinam a sequência do material que será recordado, ou, ainda, repetido, se tomamos este como um modo de recordar. Poderíamos dizer que a produção de um sonho, de um sintoma, ou ainda de um documentário, por exemplo, pode ser entendido em função dessa dupla referência: memória e linguagem. A palavra, onde quer que ela esteja, dissimula e mente, mas também porta uma verdade do sujeito. Retomando as palavras de Penafria (2009) sem deixar de dialogar com elas, documentar é um importante ato do homem, no qual subjaz uma vontade de preservar lembranças.
O dilema atual que vivemos de valorizar o passado, de consumir esse mercado de memória, parece ter como motivo inicial aparente, de acordo com Huyssen, as transformações de espaço-tempo. A memória é, de fato, todo o tempo espetacularizada e comercializada pela mídia. É alimentada e usada por ela. E nesse cenário, a enorme influência das novas tecnologias de mídia são quase óbvias, afinal, são os veículos para muitas formas de memória. Não é possível falar de memórias, de arquivos, sem falar no desenvolvimento das novas tecnologias da comunicação e do papel da mídia nesse processo de construção, manutenção, desenvolvimento e consumo da cultura da memória. A nova mídia tem sim, também, impactos consideráveis sobre a articulação da temporalidade. A tecnologia se desenvolve cada vez mais rápido e as inovações técnicas, culturais e científicas, por vezes, já nascem defasadas. O tempo, hoje, corre muito rápido. O presente se torna passado cada vez mais rápido. Vivemos, como lembra Nora (1984), uma “aceleração da história”.
Experimentamos hoje uma “lenta, mas palpável transformação da temporalidade nas nossas vidas, provocada pela complexa interseção de mudança tecnológica, mídia de massa e novos padrões de consumo, trabalho e mobilidade global” (HUYSSEN, 2000, p.25). Barbosa e Ribeiro (2005, p. 4) acreditam que esse crescimento e estabelecimento de uma cultura da memória têm relações com “uma tentativa de compensar o ritmo acelerado das informações, de resistir à dissolução do tempo, de descobrir outras formas de contemplação para além da informação rápida. Trata-se de afirmar territórios em um mundo marcado pela fragmentação”.
Lembrar pode trazer uma sensação de segurança, permanência, algo sólido, definido, no qual podemos nos apoiar diante de um presente e futuro incertos, marcados pela rápida mudança de tudo. Ora, um mundo em crescente e permanente mobilidade e transformação é um mundo inseguro. Melman (2008) observa que nos tem faltado o que até então constituiu nossa organização, psíquica tanto quanto social: a referência à norma, que Freud organizou numa relação privilegiada com a figura paterna. Identificando como um sintoma moderno a denúncia suspeitosa de qualquer imagem paterna que sirva de suporte à autoridade, entendendo a referência paterna não mais como um organizador psíquico, mas como uma suprema violência, o homem contemporâneo encontra-se em um individualismo do “cada um por si”, que floresce diante de referências pulverizadas e de interesses de que não haja mais limites que venham se impor às nossas exigências de satisfações. O homem tem assim afetado o cerne do processo de sua constituição enquanto sujeito e encontra-se, como disse Ehrenberg (1998), curvado sob o peso dessa liberdade.
A memória seria, então, um terreno sólido contra a pulverização e a fugacidade da contemporaneidade. Lembrar ajudaria a se identificar, a fazer parte de algo, a ter uma referência que, desde que bem arquivada, não se perderá nas mudanças nos dias de hoje. Tudo é muito fugidio, a lembrança não, é algo que se pode ter, que não se dissolve no ar, “voltamos para a memória em busca de conforto” (HUYSSEN, 2000, p. 32).
Daí um desejo de lembrar o passado que parece ser um fenômeno mundial, embora com uma conotação claramente regional, local. Afinal, lembra Pollak (1992), memória e identidade estão em íntima relação, “a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade (…) sentimento de continuidade e de coerência” (POLLAK, 1992, p. 204).
Nora (1984) observa que, uma vez que a memória não é mais espontânea e que há um interesse social em preservá-la, precisamos criar lugares de memória, manter arquivos, organizar celebrações, caso contrário, sem essa vigilância permanente das comemorações, essas lembranças seriam esquecidas. Precisamos dos lugares de memória para poder lembrar as memórias que foram privilegiadas como importantes e que não podem ser esquecidas com o desenvolver da história. Podemos pensar o lugar de memória como uma tentativa de materialização da reminiscência.
Desse modo, em nossa contemporaneidade, a memória ajudaria a responder quem somos nós num universo permeado por múltiplos chamados culturais, onde as referências podem ser fluidas e passageiras, num tempo que passa cada vez mais rápido. No esforço de rememoração, no intenso movimento de reencontrar-se com o passado há a tentativa do sujeito de encontrar-se, ou ainda reencontrar-se, com essa verdade, tomando-a, erroneamente, como uma essência, ou uma palavra última, que lhe dissesse quem é.
Naturalmente, a memória e a identidade podem ser negociadas. Pollak afirma que “a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos” (1992, p. 205). É como também lembra Huyssen, “a memória é sempre transitória, notoriamente não confiável e passível de esquecimento; em suma, ela é humana e social” (2000, p. 37). Mas não só isso. Como vimos, quando se trata do ser de linguagem que é o homem, não recordamos uma lembrança como uma reminiscência em-si, idêntica a si mesma, nem mesmo uma palavra repetida é a mesma quando se trata do ser humano. Desse modo damos especial peso e precisão à palavra “humana” da citação de Huyssen.
Para Nora (1993), um suporte, material ou imaterial, só pode ser considerado “lugar de memória”, a partir do momento que representa algo da memória coletiva, tendo aí tanto um retorno reflexivo da história sobre si mesmo quanto um viver sob o olhar de uma história reconstituída. Assim, é possível pensar o documentário como um possível reprodutor da memória social, com as implicações apontadas por Nora, mas também como o ato de um sujeito de linguagem, um ato que ao tentar fazer uma lembrança constrói outra coisa, e constrói novamente sem cessar a cada vez que se retornar a ele.
Os documentários “Bandeiras Verdes” e “Tambor de Crioula” são lugares de memória, arquivam, documentam aquilo que é história, mas ainda é memória que necessita do arquivo para manter-se vivo, é memória pois comemora, celebra, sacraliza. Mas os filmes “Fronteiras de Imagens” e “Afinado a fogo” também são lugares de memória, e há ai um fato novo. Trata-se do objeto da história ser a própria história. Toda história analisa o vivido, que é seu objeto de questionamento, mas, como diz Nora,
a história da história não pode ser uma operação inocente. Ela traduz a subversão interior de uma história-memória por uma história-crítica (…). Mas alguma coisa fundamental se inicia quando a história começa a fazer sua própria história. O nascimento de uma preocupação historiográfica, é a história que se empenha em emboscar em si mesmo o que não é Ela própria, descobrindo-se como vítima da memória e fazendo um esforço para se livrar dela (1993, p. 10).
Considerações Finais
Esse fato novo encontramos também ao pensarmos o ato de Murilo de retorno e debruçamento sobre seu próprio ato, um empenho em emboscar em si mesmo o que não é ele próprio e, por consequência, cercar o que é.
Pontuamos que a repetição enquanto reprodução do mesmo está para a natureza como estaria para uma ciência que objetiva que um mesmo estímulo possa levar a uma mesma resposta (supondo um animal), desse modo uma repetição só possível em condições artificiais; e mesmo assim, observa Garcia-Roza (2003), é discutível. Transpor o resultado para o terreno humano é desconhecer que ele é impensável fora do campo do simbólico. Por isso o autor lembra que Lacan, em algum seminário, afirma que não há behavior humano, mas ato humano, algo indissociável da linguagem e que se constitui como sentido, ou, diríamos ainda, radicalmente tendo sempre à espreita de si e de seus atos um não-sentido radical como verdade. É assim que nos questionamos sobre o ato de retorno de Murilo à própria obra, a seu próprio ato. Mas, neste ato simbólico, portanto humano, de construir e retornar ao mesmo tempo, o que Murilo quer reencontrar? Não é só um ajuste com o passado, levantamento do que mudou, predições que falharam, o que restou ou sucumbiu, embora sejam também objetivos. Não só o que representa e apresenta em seu retorno, cujo resultado vemos em “Fronteiras de Imagens” e “Afinado a Fogo”, mas o que significa o próprio retorno; o que significa o retorno constante aos nossos arquivos.
Interrogando seu ato, retornando a ele, reencontrando-se com o passado, o sujeito busca a resposta sobre si. A repetição, nos lembra Garcia-Roza (2003), é constituinte do sexual, assim repetimos indefinidamente nosso primeiro encontro amoroso, nosso primeiro romance familiar (FREUD, 1908/1909/ 1996). Esse tempo do infantil que repetimos sem cessar não é um tempo passado como também não é uma repetição do mesmo. Contudo, apesar de instaurar uma experiência diferencial (que escapa ao presente texto debater), esse primeiro encontro amoroso está numa séria de outros encontros anteriores. Não há um elemento primeiro, um elemento em-si que fosse a referência absoluta e a verdade sob todas essas repetições, não há uma resposta última que diga desse sujeito. Dito de outro modo, se para a psicanálise o desejo é a própria busca sem fim de um objeto nunca encontrado e se o desejo se constitui na alteridade, quando o sujeito se vê diante da grande questão “o que este outro[8] quer?” para, a partir da pergunta, erigir-se como sujeito, sujeito de desejo, o fato é que ele não encontra a resposta. A pergunta não existe, mas não cessamos de perguntar, e este objeto é faltoso desde sempre, mas não cessamos de procurar.
[1] Larissa Leda Fonseca Rocha é Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão, mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense. Autora do livro “Diluindo Fronteiras: hibridizações entre o real e o ficcional na narrativa da telenovela” pela Edufma. Email: larissaleda@gmail.com
[2] Lívia Janine Leda Fonseca Rocha é Pesquisadora bolsista Projeto Canguru Hospital Universitário Universidade Federal do Maranhão/Ministério da Saúde, doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Email: liviajrocha@gmail.com
[3] O Festival Guarnicê de Cinema, hoje com este nome, nasceu em 1977 sob a denominação de I Jornada Maranhense de Super 8. Em 2012 o festival realizará sua 35º edição.
[4] Consideramos como realizadores independentes aqueles que não estão ligados aos mecanismos de produção audiovisual midiática e que realizam seus filmes com apoio de financiamentos conseguidos em editais públicos ou por outras vias, mas que conseguem assegurar, de algum modo, uma certa liberdade narrativa do ponto de vista político e ideológico.
[5] Os dados foram coletados pelo projeto de pesquisa “Documentário no Maranhão: realização, linguagem audiovisual e memória”, coordenado pela autora Larissa Leda F. Rocha e realizado no curso de Comunicação Social da UFMA. O projeto tem financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema).
[6] Embrafilme, estatal que tinha por objetivo produzir e distribuir filmes, foi criada em 1969 e extinta em 1990, pelo Programa Nacional de Desestatização (PND), desenvolvido no governo de Fernando Collor de Mello.
[7] O conceito de repetição é bem mais complexo na obra freudiana, inclusive se lido a partir do Mais Além do Príncípio do Prazer, ou a partir da obra lacaniana com seu conceito de gozo. Mas para este texto nos limitamos à leitura feita por Garcia-Roza.
[8] Aqui se refere mais especificamente ao conceito de Outro da teoria lacaniana e à grande questão lançada a esse Outro, contudo tal especificidade escapa aos objetivos do presente texto, bastando, para tanto, a ideia veiculada.
Referências Bibliográficas
COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos: memória social e cultura eletrônica. São Paulo: Perspectiva, 1991.
EHRENBERG, Alain. La fatigue d’être soi: dépression et société. Paris : Odile Jacob, 1998.
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Filmes citados
SANTOS, Murilo; MARQUES, Aída. Bandeiras verdes. 1979/1987.
SANTOS, Murilo. Tambor de Crioula. 1979.
SANTOS, Murilo. Afinado a fogo: o Tambor de Crioula revisitado. 2009.
SANTOS, Murilo. Fronteiras de imagens. 2010.
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