Ruy Sardinha Lopes é filósofo e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP, professor de História da Arte do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da EESC e autor do livro Informação, Conhecimento e Valor, Ed. Radical Livros.
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A acolhida que as artes em mídias digitais e eletrônicas vêm recebendo desde sua presença mais sistemática entre nós, durante a década de 1970 até os dias atuais, é reveladora do modo como enxergamos a relação entre tecnologia e sociedade. Se durante a década de 80 o otimismo em relação aos novos meios pôde ser contrabalançado por uma visão em grande medida apocalíptica – que deu origem a obras como Blade Runner, no cinema -, a partir de 1990 tentava-se rever, agora em chave positiva, as instâncias tecnológicas e seu impacto sobre a sociedade.
Apenas para se ter uma idéia do sentido em que rumava a aposta, vide as palavras de Edmond Couchot, aliás, um dos analistas mais sensatos sobre os novos meios:
Notemos, aliás, que estas interfaces [homem/máquina] tendem a solicitar cada vez mais regimes de percepção complexos e associados sinestesicamente (o multimedia, os jogos, certos dispositivos de realidade virtual são exemplos destes regimes de percepção). Assiste-se até a uma redistribuição da hierarquia do sensível e a uma remodelação do corpo: uma nova matriz perceptual – mutimodal – aparece em que o visual, menos retiniano, se recorporaliza. O modo dialógico atinge a sua plena complexidade quando as trocas transitam por intermédio de redes de comunicação numéricas. Trata-se, então, de grandes coletividades de sujeitos, disseminados através de todo o planeta, que se aparelham a um grande número de máquinas e interagem entre si[1].
Advento, pois, de um novo regime de visibilidade (numérico ou digital, em oposição ao representativo ou analógico), participando materialmente de uma outra mutação, mais profunda, do imaginário. Irrupção de um novo modo de ser dos objetos técnicos – menos rígido e hierárquico quiçá mais democrático – que dera origem a um imaginário numérico apto a transgredir nossos códigos perceptivos e cognitivos e nossa relação simbólica com o mundo.
Não que esta visão estivesse desacompanhada. Na verdade duas tradições, modernas, se cruzam nestes argumentos. De um lado a “tradição da ruptura” que enfatiza os cortes epistemológicos, as buscas de novas linguagens e poéticas, as dissonâncias com o passado próximo ou longínquo. De outro lado, a herança da empreitada das vanguardas, ditas positivas, a buscar a renovação das linguagens artísticas e da própria sociedade através do recurso às potencialidades do objeto técnico-industrial.
Atualizando, deste modo, tais heranças, vários artistas tiveram os holofotes voltados sobre si ao utilizarem satélites, telefones, fax, a rede de computadores e demais formas de produção, captação e distribuição de imagens e informações como fontes de expressão artística dando origem a produtos/processos muitas vezes de difícil apreensão conceitual, donde a variedade de termos para apreendê-los: arte digital, arte numérica, artemídia, cyberat, web arte etc.
Assim, é sintomático observar o quanto, por exemplo, toda uma teoria sobre o ato fotográfico – que possibilitou (ou ao menos explicou) as imagens de um Cartier Bresson – se tornou obsoleta diante do advento da câmera digital[2], o quanto a chamada realidade perde seu status ontológico diante da simulação (ou, em outros termos, o quanto a “figuração verossímil do real” se desqualificou) ou ainda o quanto a ubiqüidade, a abertura da obra e os processos cooperativos são intensificados pelas novas poéticas[3].
Das potencialidades abertas pelos novos meios tecnológicos, uma das mais revolucionárias é a trazida pela convergência digital. Isto é, a possibilidade de se interligar – através de sua redução às estruturas binárias (matemáticas, portanto) – campos e conteúdos sensoriais, cognitivos e semiológicos até então relativamente separados como formas visuais, sons e movimentos corporais. Se tal condição impõe algumas exigências morfogenéticas aos produtos/processos daí derivados, como, por exemplo, certa redução das ambigüidades e timbres da linguagem usual e certa ênfase – pelo menos no caso das artes numéricas – nas estruturas sintáticas; o quanto tais experimentações contribuirão para uma regressão da audiência, ficando presa às tautologias estéticas e mercadológicas – ainda que, agora, simuladas digitalmente – ou o quanto contribuirão para a conformação de um novo campo – perceptivo e conceitual- expandido (Rosalind Krauss), é uma questão que o tempo e a ação concreta dos criadores artísticos se encarregarão de responder. Para isso, entretanto, talvez seja necessário que nos afastemos do específico tecnológico para nos atermos aos mecanismos mais largos de inserção do estético na sociedade: o que leva, necessariamente, à politização (Ranciére) das mídias digitais na arte.
Expliquemos-nos melhor. A referência anterior a Rosalind Krauss, que cunhou o termo “campo expandido” para se referir à falência da lógica que regera a escultura moderna diante de algumas produções da década de 1960[4], serve aqui para mostrar em primeiro lugar que a revolução dos códigos artísticos sempre estivera presente na história da arte, não sendo, portanto, atributo exclusivo das novas mídias e, mais importante, que muitas vezes a revolução no campo perceptivo dá-se pelo modo de inscrição dos objetos/processos no regime das artes e diante dos demais fazeres sociais. Assim, ao propor um novo recorte e um novo modo de se relacionar com o “não-escultórico” (a arquitetura e a paisagem), a escultura contemporânea pôde, a um só tempo, renovar seus códigos internos e inscrever no regime das artes uma nova forma de visibilidade, modificando as relações existentes entre as formas sensíveis e os regimes de significação.
Para voltarmos aos nossos termos, não é, portanto, enquanto arte tecnológica que estas práticas configuram um novo sensorium espaço-temporal, mas no modo como tais fazeres – artísticos – inserem tais tecnologias no regime das artes e ressignificam sua relação com os demais processos sociais.
Se sabemos a importância e o papel estratégico das novas tecnologias para a reprodução do sistema econômico vigente e, para tanto, a necessidade que este tem de controlar os impulsos criativos nesta área (é sintomático o fato de justamente nesse setor o “trabalho artístico”, “criativo”, ser tomado como modelo para o processo produtivo), é esperado que ocorra uma acomodação de tais impulsos aos interesses do capital. Uma espécie de inscrição conservadora (ainda que a lógica econômica tome as rupturas, as “revoluções” e as “obsolescências” devidamente controladas como a força motriz de seu funcionamento) das artes em mídias digitais que, ao desviar a atenção para os feitos tecnológicos, dissimula sob a égide do novo a reposição do arcaico. Uma inscrição realmente disruptiva, que inventasse novos devires – estético e com isso, social -, seria aquela que, cremos, sabedora do modo de existência dos objetos tecnológicos em nossa sociedade os tencionasse em relação às formas de inscrição vigentes, possibilitando a emergência de novos campos expandidos. Tarefa que, evidentemente, não depende desta ou de qualquer instância técnica, mas das decisões políticas daqueles que as utilizam.
Referências
ARANTES, Priscila – Arte em tempo de estética digital. Disponível em http://www.priscilaarantes.com.br/PDF/arteem.pdf
COUCHOT, Edmond – Tecnologias da simulação. Revista de Comunicação e Linguagens n.25/26. Lisboa: Edições Cosmos, 1999.
KRAUSS, Rosalind – Sculpture in the Expanded Field, October, vol. 8. (Spring), 1979, pp. 30-44.
LOPES, Ruy S. – A cultura táctil e as imagens electrónicas. Revista de Comunicação e Linguagens. Lisboa : Edições Cosmos, 1999. p. 359-364.
LOPES, Ruy S. – A imagem na era de sua reprodutibilidade eletrônica. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 1995. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-03072002-101335/
RANCIÈRE, Jacques – A partilha do sensível. São Paulo: EXO experimental org., Editora 34, 2005
SPERLING, David; LOPES, Ruy S. Deslocamentos da experiência espacial: de earthwork à arquitetura líquida. Disponível em http://cumincades.scix.net/data/works/att/sigradi2007_af93.content.pdf
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[1] COUCHOT, E – Tecnologias da simulação. Revista de Comunicação e Linguagens n.25/26. Lisboa: Edições Cosmos, 1999, p.25
[2] A possibilidade de um “infinito quantitativo fotográfico” , proporcionado pela câmera digital tem alterado a forma de relacionamento do homem com tais imagens, mas isso é assunto para outra ocasião.
[3] Se a interatividade é uma das buscas constantes na história da arte, sobretudo a partir da década de 1960, o caráter não linear, não hierárquico e atópico das redes de informação possibilita que tal conceito seja posto de uma maneira inusual pelas artes que utilizam de tais tecnologias. Além disso, o desenvolvimento de interfaces cada vez mais complexas possibilita renovadas interações homem-máquina.
[4] “Frente à negatividade característica da escultura moderna, ou seja, que se relacionava com a arquitetura sem se confundir com ela, e que estava na paisagem, mas não era a paisagem (a sua condição de não-arquitetura e não-paisagem), Krauss aponta como característico do período o aparecimento de vetores de expansão que partem da escultura como “combinação de exclusões” para a incorporação positiva dos termos arquitetura e paisagem. Nos dizeres de Krauss, a escultura, então, deixa de ser o meio termo privilegiado entre outros dois que ela não é, para converter-se em um termo na periferia de um campo que apresenta outras possibilidades estruturalmente distintas.” (SPERLING, David; LOPES, Ruy S. Deslocamentos da experiência espacial: de earthwork à arquitetura líquida. Disponível em http://cumincades.scix.net/data/works/att/sigradi2007_af93.content.pdf )
muito bom ???
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