Level 0: Cracking. O processo de “crackear” um jogo de videogame como prelúdio da experiência de jogo

Sobre os autores:

Jônatas Kerr de Oliveira é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som, onde pesquisa a narrativa nos videogames¹. em especial  a forma como as quests são utilizadas em World of Warcraft para contar histórias. Foi professor substituto da área de Animação e Hipermídia do Departamento de Artes e Comunicação da UFSCar. Graduado pela USP (2005) como Bacharel em Ciências da Computação, além dos jogos eletrônicos pesquisa sobre as mídias digitais e seus impactos sobre a sociedade, efeitos visuais, pós-produção cinematográfica e animação 3D, focando, principalmente, no uso de Softwares Livres. É membro ativo do GEMInIS2 (Grupo de Estudos Sobre Mídias Interativas em Imagem e Som), vinculado ao PPGIS-UFSCar.

Dario Mesquita é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos, onde pesquisa imersão nos videogames. Graduado em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí. É membro ativo do GEMInIS (Grupo de Estudos Sobre Mídias Interativas em Imagem e Som), vinculado ao PPGIS-UFSCar.

Glauco Madeira de Toledo é mestrando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos, graduado também em Imagem e Som pela mesma (2000), onde lecionou como professor substituto da área de Edição e Montagem em 2003 e 2004. Atualmente é professor de graduação em Comunicação Social com habilitações em Jornalismo e em Publicidade e Propaganda do Instituto Municipal de Ensino Superior de Bebedouro – Victório Cardassi (IMESB-VC) e nos Cursos Superiores de Tecnologia em Produção Audiovisual, em Criação e Produção Gráfica Digital, em Fotografia Digital e em Comunicação para Web da Universidade Paulista (UNIP) em São Paulo. É membro ativo do GEMInIS (Grupo de Estudos Sobre Mídias Interativas em Imagem e Som), vinculado ao PPGIS-UFSCar.

RESUMO:
Observando a relevância da cópia não-oficial de um videogame para a experiência de jogo como um todo, e como o jogador que baixa esta cópia pela internet se torna ativo no processo de desbloqueio do jogo de videogame, este artigo busca analisar como se dá o processo de cracking do ponto de vista deste jogador. Estudando como os problemas  se manifestam tanto no processo de cracking como na experiência de jogo, traça-se um paralelo entre ambos, apontando a experiência de desbloqueio como um jogo prévio, uma fase de jogo opcional, disponível para os usuários que optaram por ela.

1. Introdução

A distribuição do jogo não oficial.

Há no mercado uma série de videogamesque são produzidos visando o lucro por parte de suas empresas desenvolvedoras. Todavia, uma quantidade significativa de usuários desses softwares optam por não desembolsar por eles a quantia estabelecida pelo desenvolvedor e, ainda assim, usufruir deste tipo de produto3. Para tal, os usuários recorrem às cópias não-oficiais, que correspondem a praticamente todas as mídias baseadas em CD4 5 comercializadas no Brasil (PCGA, 2009, p.14). A cópia não oficial de jogos é muito presente no mercado brasileiro, implicando em consequências diretas sobre a recepção deste tipo de produto: “Por muitos anos, a sociedade brasileira tem visto a pirataria6 não apenas como um lugar comum, mas como a forma padrão de comprar um jogo. Isso teve um impacto profundo na sociedade em geral e sobre aqueles que jogam games, em particular” (FRANCO, 2009). Por resultar em implicações diretas ao jogador, devemos focar na experiência que o jogador tem com este tipo de produto para compreendermos melhor este importante meio de comunicação que é o videogame.

Quando tratamos de cópias não-oficiais de jogos, os usuários que optam por não pagar o valor estabelecido pelo desenvolvedor têm algumas opções para escapar dessa taxa e ainda assim obter uma cópia funcional do produto:

  • A compra de uma cópia não-oficial;
  • Baixar o jogo da internet.

Ao optar pela primeira opção, salvo engodo, esse usuário recebe uma versão cujas travas de segurança que impediriam o uso não-autorizado do jogo já estão desligadas, ou recebe todas as ferramentas necessárias e uma receita para destravá-las. Este tipo de cópia é largamente encontrada em diversos tipos de estabelecimentos comerciais no Brasil, desde vendedores ambulantes e camelôs (FRANCO, 2009) até lojas especializadas em videogames, que compartilham em uma mesma prateleira as cópias originais e as não-oficiais do mesmo videogame.

Optando por baixar o jogo, o que pode ser feito por meio de redes de compartilhamento P2P (peer-to-peer) como Bitorrent, Emule, Kazaa, entre outras, ou através de sites de hospedagem de arquivos na web como Rapidshare, Megaupload, Hotfile, etc. O arquivo recebido pode ou não conter os caminhos já traçados para a liberação do acesso ao usuário não-autorizado. Normalmente os pacotes que foram lançados por um grupo da Scene7já possuem todos os arquivos necessários para o funcionamento do jogo, devido aos padrões e regras estabelecidos pelo grupo8. Caso o pacote de arquivos baixado não tenha tais recursos, cabe ao pretenso jogador encontrá-los ou desenvolvê-los para aí então usufruir do jogo. Este artigo pretende analisar esta experiência, sem traçar juízo de valor ético ou moral sobre ela.

2. A estética do jogo “crackeado”: ei, esse problema é meu!

Como o sistema de recompensa do cérebro humano atua na solução de problemas.

O videogame é uma mídia digital, e como tal, proporciona experiências características destas mídias aos seus usuários – os jogadores. Em seu livro “Hamlet no Holodeck”, Janet Murray (2003) identifica os prazeres do meio digital, que segundo são: a agência, a imersão e a transformação. Dentre os fenômenos observados por Murray, o prazer da transformação é extremamente importante para compreendermos a experiência do jogador com o jogo não-oficial. Transformação significa que “tudo que vemos em formato digital – palavras, números, imagens, animações – torna-se mais plástico, mais suscetível a mudanças”. (MURRAY, 2003. p. 153), ou seja: no meio digital o usuário sempre vê uma possibilidade de transformação do sentido de uma experiência, e até mesmo do software em si.

Quando um jogador de videogame se depara com uma trava que o impede de jogar, em muitos casos, ele se sente impelido a buscar uma forma de contornar essa trava, pois este dispositivo digital é aparentemente sucetível a mudanças. Aparentemente a existência de uma barreira desmotivaria o jogador, pois esta não permite que ele experimente os diversos prazeres que o videogame poderia proporcionar. Entretanto, este problema pode se tornar em algo prazeroso para o jogador que busca solucioná-lo – um prazer provindo da solução de problemas. Michael Mateas (2006), criador do drama interativo Façade (Façade, Procedural Arts , 2005), observa que além dos prazeres característicos das mídias digitais – agência, imersão e transformação – outros fenômenos também podem ser observados nos jogadores, como o prazer de solucionar problemas ou o prazer de ser receptor de uma história,. Assim como os prazeres observados por Murray também não são exclusivos das mídias digitais, estes fenômenos apresentam novas características dentro das mídias digitais e muitas vezes são potencializados dentro destas. Para Mateas,

A interação é um termo técnico que pode ter vários efeitos fenomenológicos diferentes nos interatores, como agência e a solução de quebra-cabeças, este último um prazer provindo do esforço intelectual para a solução de problemas: […] Ao solucionar um quebra-cabeças, o jogador está desvendando a estrutura lógica do jogo, solucionando problemas e experimentando uma sensação de domínio ao solucionar o problema. […] A interação está gerando diferentes experiências fenomenológicas/estéticas. (MATEAS, 2006).

Este prazer provindo da solução de problemas é algo que está intimamente ligado ao sistema de recompensa do cérebro humano. Os desafios em dose certa motivam uma pessoa a se superar e a buscar soluções:

O neurocientista Jaak Panksepp chama o sistema de dopamina do cérebro de conjunto de circuitos ‘buscadores’, incitando-nos a buscar novas possibilidades para recompensa em nosso meio ambiente. No que diz respeito à ligação de nosso cérebro, o instinto de desejo desencadeia o desejo de explorar. Na verdade, o sistema diz: ‘Não consegue encontrar a recompensa prometida? Talvez se procurasse um pouco mais, você teria sorte – tem que estar aqui em algum lugar’. (JOHNSON, 2005, p.29).

Por conta da forma como o cérebro humano funciona, um problema pode motivar uma pessoa a solucioná-lo, o que se concluído resultaria em prazer. Quando um jogador se depara com uma proteção que impede a cópia de um videogame, é comum este procurar por soluções que permitam a cópia – o sistema de recompensa começa a atuar por meio dos “circuitos buscadores” que põe o cérebro a buscar por uma solução – e assim poder utilizar este software.

Praticamente todo jogo para computador existente no mercado conta com algum recurso para evitar a cópia não autorizada, recurso que vai desde a criação de um código de série único que o jogador recebe ao efetuar a compra, sem o qual o jogo não funciona, até sistemas mais complexos que detectam a existência de um disco original ou que se conectam à internet para verificar a originalidade da cópia. Para superar as travas de segurança, os jogadores utilizam ferramentas chamadas cracks que inutilizam as proteções ou que modificam arquivos do jogo, liberando estes para serem jogados a partir de cópias não oficiais.

Para que um videogame tenha suas proteções contra cópia não autorizada removidas, partes do código do software de jogo são modificadas para que as verificações de originalidade do jogo sejam evitadas. Como um programa de computador funciona como uma lista de tarefas a serem executadas, o processo consiste basicamente em identificar quais tarefas estão associadas à verificação de originalidade e retirá-las ou pulá-las na lista de tarefas. Se efetuada a modificação com sucesso, o jogador se sente recompensado e assim se sente motivado.

3. E quando o meu problema não é problema meu?

Quando a solução de um problema não está ao alcance do jogador.

Entretanto, se o problema é demasiadamente complicado para uma pessoa resolver, o efeito pode ser contrário: esta pessoa se sente desmotivada e  pode chegar a desistir de sua empreitada por uma solução para este problema. Este tipo de situação ocorre, por exemplo, quando o jogador busca superar um problema, mas este problema não possui solução, ou a solução não está ao seu alcance, ou ainda quando a solução é elementar, mas ela ativa outros sistemas de proteção.

É comum um jogo passar por algumas etapas de desenvolvimento, que vêm sendo utilizadas há muito tempo, que envolvem: concepção, desenvolvimento, testes e a correção de erros. Normalmente os testes ocorrem, em um primeiro momento, numa versão interna do jogo (somente para a equipe desenvolvedora, chamado de versão Alpha) e quando este está aparentemente sem erros, ou com poucos erros, é liberada uma versão pública de testes, chamada versão Beta, onde os usuários trabalham gratuitamente para a empresa ajudando a encontrar erros no sistema. A versão Beta é muito procurada pelos usuários para verem como é o novo jogo, então é algo vantajoso tanto para os jogadores que estão participando do programa de testes, uma vez que estes podem matar a curiosidade e verificar em primeira mão o jogo antes de ele ser lançado, como para a empresa, que tem seu jogo refinado gratuitamente para que possa ser lançado com a menor quantidade possível de erros.

Embora tenha sido lançado com aproximadamente oito meses de atraso em relação às versões de console de videogame, a versão para PC do jogo GTA4 foi liberada muito antecipadamente dentro do ciclo de desenvolvimento, não passando por uma versão Beta e apresentando muitos erros em sua versão original (e conseqüentemente na versão não-oficial gerada a partir da cópia original), que não foram identificados pela empresa ao lançar esta versão do jogo (AZEVEDO, 2008). Da parte dos jogadores da versão original, ocorreu muita revolta e reclamação diretamente com a empresa responsável pelo lançamento, o que em vários casos resultou na devolução do dinheiro aos compradores (BURNES, 2008). Os jogadores da versão não-oficial, entretanto, não puderam reclamar nem manifestar opinião, o que manteve estes em constante questionamento sobre onde erraram no processo de instalação e remoção das verificações de originalidade e tentando inutilmente repetir o processo de diversas formas, em busca de uma alternativa para que o jogo funcionasse.

Quando um jogador de uma versão não-oficial se depara com um problema desses, ou ele desiste, por o problema ser de dificuldade muito grande, ou ele persiste em uma busca pela solução do problema, que neste caso só foi solucionado quando os desenvolvedores lançaram patchs9 de correção de erro e a empresa Nvidia lançou um driver para placa de vídeo específico para o funcionamento do jogo, corrigindo alguns problemas, porém acrescentando outros (STEACY, 2008), sendo que  de qualquer forma, a solução foi apenas para parte dos usuários, restringindo a gama de jogadores apenas aos que possuíssem placas de vídeo de última geração desta empresa.

Sendo o processo de cracking um processo que altera a estrutura do jogo, alterações efetuadas de forma descuidada podem resultar em erros em outros trechos do jogo. Por conta disso, quando um jogador que “crackeou” um jogo encontra um erro ao executar este jogo, é muito comum associar este erro ao processo de liberação do jogo de suas proteções, ou seja: o crack deu errado e por isso o jogo não está funcionando corretamente. Alguns jogos incluem como parte da  proteção contra cópias algumas “armadilhas” para os crackers, ou seja: trechos de código que se assemelham às verificações de originalidade, e que uma vez modificados de forma rotineira permitem a cópia do jogo, porém implicam em instabilidade do sistema ou até mesmo o travamento completo deste. O jogo Grand Theft Auto IV (Grand Theft Auto IV. Rockstar Games, 2008) vem com diversos sistemas de proteção contra as cópias não-autorizadas, e segundo os representantes da empresa: “usar uma cópia crakeada de GTA IV para PC resultará em mudanças variadas na experiência de jogo. Isso poderá variar de mudanças cômicas a travamento no progresso do jogo” (FINALBOSS, 2008).

Por conta disso, a relação do jogador com o jogo instalada a partir da cópia não oficial é muito diferente daquele que compra a oficial. Em primeiro lugar, porque quando a cópia não é oficial, qualquer erro que o jogo apresente pode ser encarado como uma falha resultante do processo de liberação do produto, seja no processo de copiar os arquivos, ou na tentativa de superar as travas e limitações impostas pelos fabricantes para que o jogo só funcione com cópias legítimas. Em segundo lugar, pela possível evidenciação do aparato de exibição, quebrando a imersão. Para que a experiência imersiva seja duradoura, deve-se criar a ilusão de que o público está em contato direto com o mundo representado, sem intermediários. Assim, o retângulo da imagem do jogo é visto como janela para um universo que existe por si e em si, uma vez que este apresenta uma reconstrução de cenários com fidelidade ao mundo físico e interpretações fiéis ao comportamento humano, com movimentos e reações naturais. Quando tudo funciona bem, a tela é um espelho que reflete a realidade, embora não seja esta, mas a fé no mundo da tela, proporcionada pelo efeito de janela,10 pode ser perdida pela evidenciação do aparato de exibição, das limitações técnicas do sistema que proporciona a experiência imersiva.

4. Socorro! Fantasmas do passado voltaram para me assombrar.

Quando o problema aparentemente solucionado surge novamente no meio do jogo.

Outro exemplo do trabalho exercido pelos jogadores para crakear um videogame é o jogo Halo 2 (Halo 2, Hired Gun, 2007), desenvolvido pela Hired Gun e distribuído pela Microsoft. Lançado em 2007 para PC, o título vinha com um grande inconveniente: ele só poderia ser instalado em máquinas que rodassem o Windows Vista (BBC, 2006), o então novo sistema operacional da Microsoft. Alegando problemas de compatibilidade, a Microsoft não daria suporte ao produto para sistemas operacionais anteriores do Windows (LUIZ, 2006). Assim, os jogadores que quisessem ter o Halo 2 em seus computadores teriam que trocar o habitual e popular Windows XP pelo Windows Vista, o que consequentemente iria requerer custos também com um upgrade do hardware da máquina para que suportasse rodar o jogo em um sistema operacional mais recente e “pesado” (HALO, 2006).

A solução desse obstáculo acabou vindo por vias não oficiais junto com a distribuição da versão não oficial do jogo pela internet. Dessa forma, para o jogador conseguir instalar Halo 2 no Windows XP, ele tem de encontrar na internet o tutorial – guia do processo passo-a-passo – que instrui o jogador nesta instalação, assim como os arquivos extras necessários para realizá-la, uma vez que a própria Microsoft não disponibiliza um pacote pronto para a tarefa. Entretanto, não basta apenas sair buscando e baixar os cracks, mas também é preciso ter cuidado, pois é muito comum o jogador se deparar com arquivos infectados por vírus e cavalos de tróia11 durante o processo, uma vez que tanto as modificações funcionais como as falsas são disponibilizadas nos sites especializados em material “underground”. Cabe ao jogador a tarefa de julgar a procedência do material antes de baixar, e então se utilizar de um software anti-virus para evitar a infecção de seu computador.
Mesmo depois da instalação, que requer sobrescrever alguns arquivos específicos do jogo e um programa próprio para inicializá-lo dentro do Windows XP, ainda é preciso encarar alguns bugs em certas fases de Halo 2 que travam completamente. Quando isso ocorre, é necessário sair novamente à procura de arquivos não disponibilizados oficialmente a fim de solucionar o problema, até que o jogo fique completamente estável para que ele possa ser terminado. Para muitos jogadores esta não é uma tarefa simples: alguns não conseguem realizar todo o processo, ou encontrar o pacote de arquivos ou ainda têm duvidas sobre como instalar corretamente, o que lhes levam a recorrerer à ajuda de outros jogadores através de fóruns e blogs. Atitudes que se assemelham à  natureza do próprio jogo. O jogador tem um desafio: fazer o programa funcionar, então, ele sai a procura da solução do problema na tentativa e erro, quando não consegue sucesso, recorre a literatura especializada ou outros jogadores mais experientes, e ao final ele tem a recompensa de enfim fazer o programa funcionar.

Assim, a dúvida, a insegurança e o trabalho que permeiam a experiência do jogador da versão não-oficial do jogo diferenciam a participação deste, o que normalmente resulta em duas atitudes diferentes: ou o jogador desiste de jogar ou este permanece batalhando por soluções para os problemas encontrados, o que quando é superado leva a outro nível de prazer. Quando este problema é solucionado (ultrapassar as barreiras elaboradas pelos desenvolvedores), o sistema de recompensa do cérebro proporciona prazer ao usuário, uma satisfação que não é experimentada por aqueles que se limitam apenas à versão orginal do jogo, uma sensação de autoria12 e participação na construção da experiência. Afinal, para esses jogadores, o jogar não se limita apenas ao ato proporcionado pelo videogame em si, mas também na atitude de ir além das ferramentas oferecidas pelo jogo, no exercício de pesquisa, na aprendizagem e no trabalho em grupo, buscando resolução de problemas e recompensa por superá-los.

Videogame: diversão, prazer e … trabalho?

Sobre objetivos e motivações nos jogos eletrônicos.

“‘O que devo fazer?’ Os jogadores habituais na sala têm que explicar:
‘Você tem que descobrir o que deve fazer.'” (JOHNSON, 2005, p.35)

Os videogames por muito tempo estiveram associados aos flashs de luz e aos movimentos repetitivos, entretanto, na última década, diversos pesquisadores passaram a observar a experiência não apenas do ponto de vista do observador externo, mas também do ponto de vista do jogador – e deste ponto de vista, os flashs  coloridos e movimentos repetitivos pouco importam para o desenrolar do jogo, mas para este jogador existe uma lógica que o leva a agir, um raciocínio organizado que permite ao jogador estabelecer metas aninhadas e um plano de trabalho para solucionar problemas com os quais ele se depara dentro do jogo. “No jogo, você chega a um ponto onde sabe que precisa fazer algo, mas há alguma obstrução em seu caminho e as convenções do jogo sinalizam que você se deparou com um problema difícil. Você não está perdido – trata-se apenas dos projetistas de jogo que, engenhosamente, colocaram um enigma no meio daquele caminho.” (JOHNSON, 2005, p.43).

O ato de jogar videogame pode muito bem ser resumido ao ato de solucionar e superar problemas. Steven Johnson explica que um jogo de computador é uma sequência de desafios, de problemas que devem ser resolvidos para que se possa passar para o próximo desafio, e este processo na maioria das vezes não é divertido:

“O pequeno segredo sujo do ato de jogar é quanto tempo você gasta não se divertindo. Você pode ficar frustrado; você pode ficar confuso ou desorientado; você pode ficar paralisado. Quando você abandona o jogo e volta para o mundo real, você pode se achar trabalhando mentalmente no problema com o qual estava pelejando”. (JOHNSON, 2005, p. 21)

Cada jogo tem suas particularidades e características de formato e gênero, mas pode-se entender que um jogo se desenrola conforme um processo com caraterísticas que são tradicionais e costumeiras a eles:

  • É comum que os jogos tenham um objetivo13;
  • Jogos são feitos de regras, ainda que seja possível quebrá-las ou que sejam desconhecidas de um jogador iniciante. Steven Johnson (2005, p.38) afirma que a maioria dos jogadores ficam “vasculhando os pontos onde o sistema mostra suas falhas” e que os videogames forçam o jogador a realizar este tipo de sondagem: “Se você não pensar na mecânica implícita da simulação – mesmo se esse pensamento for semiconsciente – você não durará muito no jogo. Para progredir, você tem que sondar.” ;
  • processo do videogame demanda interação: “No video game [sic], a intervenção do interator é uma exigência do sistema e sem ela não há acontecimento possível” (MACHADO, 2002, p.2);
  • Durante o jogo, o jogador utiliza-se muito do método da tentativa e erro: “Você tem que sondar as profundezas da lógica do jogo para entendê-lo e, como na maioria das expedições investigativas, você obtém resultados por meio da tentativa e erro, tropeçando nas coisas, seguindo intuições” (JOHNSON, 2005, p.35);
  • No jogos cooperativos o trabalho em equipe pode acelerar um resultado, agregando experiências dos vários usários. De forma análoga, vários jogadores se utilizam de suas redes de contato para trocar informações sobre as formas mais eficientes ou mais rápidas de se vencer os obstáculos;
  • Os jogos encadeados em fases trazem uma tendência a pedir que se resolva uma fase para então passar à próxima, e assim, atingir um objetivo é quase como pedir outro.
  • Ao final do jogo, deve haver recompensa para o jogador, ou para algum dos jogadores, caso estejam competindo. Afinal, o jogador se mantém preso a um sistema que o obriga a fazer tarefas muitas vezes absurdas em tramas desconexas principalmente por haver uma recompensa. “É o sistema de recompensa que atrai esses jogadores e que mantém os seus notoriamente breves momentos de atenção presos à tela” (JOHNSON, 2005, p. 32);

Tal situação, na qual tudo que se obtém é mais trabalho para cada etapa realizada, tem sua recompensa, mas colocada na linha de chegada: “os jogos têm tudo a ver com satisfação tardia – algumas vezes tão tardia que você se pergunta se a satisfação algum dia aparecerá” (JOHNSON, 2005, p.24). Mas cada fase do jogo permite que se dê ao usuáro um alívio, um pequeno prêmio de consolação para que este não desista de sua busca pelo percurso completo. Isso reforça a persistência daqueles mais frustrados no decorrer do processo, que quando o mesmo deixa de ser divertido, eles ainda assim prosseguem. Como Johnson (2005, p. 23) declara : “você chega a um ponto onde há uma série de tarefas que você tem que concluir para seguir mais além mundo adentro, mas as próprias tarefas são mais parecidas com afazeres do que com divertimento, algo que você tem de fazer, não algo que você deseje fazer”.

Sendo assim, a estrutura básica dos jogos consiste da solução de problemas, da realização de tarefas e afazeres, atividades que normalmente não estão associados à diversão, mas que por meio dos “circuitos buscadores” do cérebro se tornam em atividades prazerosas, principalmente quando um problema é solucionado ou as tarefas são cumpridas.

Conclusão

Desbloqueio como jogo.

A solução de problemas pode ser uma atividade prazerosa para um jogador de videogame – atividade que se encontra no cerne da experiência de jogo – e desta forma ser um dos principais mecanismos de motivação para o jogador. Neste quesito pode-se observar uma relação muito grande entre o ato de jogar um videogame e o ato de desbloquear um mesmo videogame, uma vez que ambas as atividades possuem a solução de problemas em seu cerne. Sendo assim, o ato de crackear um jogo não está necessariamente atrelado apenas à ausência de dinheiro suficiente para a compra oficial do jogo ou impedimento de acesso ao mesmo por outras vias. Este ato pode estar ligado ao prazer proporcionado pela mera solução do problema, tal como se dá no desenrolar das fases do jogo.

O destravamento de um jogo por um usuário de cópia não-autorizada, independentemente de ser ou não uma possibilidade legal no Brasil, exige do pretenso jogador que ele:

  • Descubra o que deve ser feito para desbloquear as barreiras contra cópia elaboradas pelas empresas desenvolvedoras;
  • Tenha por meta o destravamento do primeiro obstáculo, metaforicamente uma chave para o uso do software;
  • Conheça ou descubra as regras que regem a composição do código-chave para poder lidar com elas eficientemente;
  • Interaja com o software de forma a destravá-lo, seja programando um software que quebre as proteções ou utilizando um crack de terceiros;
  • Por tentativa e erro, encontre uma forma de burlar os impedimentos de acesso;
  • Trabalhe cooperativamente ou trocando informações sobre o código do jogo em questão ou outos similares.

Ao final do destravamento, quando o usuário consegue contornar o obstáculo, ele recebe a recompensa parcial – passar finalmente para a primeira fase dentro do videogame, para poder enfim receber todas as incumbências, desafios e obstáculos do jogo de videogame. Assim, pode-se entender que a experiência de crackear um jogo é deveras similar à experiência do jogo em si, de forma que a fase de destravamento pouco mais é que uma fase escondida do próprio jogo, pela qual muitos não passam, mas que aqueles jogadores optaram por resolver. Quando isso ocorre, ao passar da primeira fase, um novo jogo se inicia.

Referências

Bibliografia.

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Ludografia.

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Hired Gun. Halo 2. Microsoft Game Studios, 2007. (PC)
Rockstar Toronto. Grand Theft Auto IV. Rockstar Games, 2008. (PC)
Procedural Arts. Façade. Procedural Arts , 2005. (PC)

NOTAS:

1 No contexto deste artigo, todo jogo que utiliza um computador como suporte é considerado um videogame. Isto inclui jogos para computadores pessoais independentemente do sistema operacional, jogos para consoles, jogos para dispositivos portáteis exclusivos para jogos, ou jogos para dispositivos portáteis de uso geral. Além do termo videogame, também recebe o mesmo significado as expressões “jogos eletrônicos” e videojogos. Embora o termo videogame tenha se popularizado no Brasil como uma referência aos consoles de jogos, o uso do termo não se aterá apenas aos consoles. Este termo, que é de origem inglesa, já é reconhecido pelos principais dicionários da língua portuguesa. Embora alguns sites populares como a Wikipédia  tragam o termo em diferentes grafias como “vídeo game” espaçado, ou ainda “vídeo-game” com hífen, a grafia escolhida para o termo é “videogame”, seguindo as indicações dos dicionários Michaelis  e FLiP .

2 O GEMInIS tem reuniões mensais no Departamento de Artes de Comunicação da UFSCar. Os encontros são sempre abertos com palestras de convidados, que são seguidas de debates temáticos. Mais informações no site do grupo: http://geminisufscar.wordpress.com/. Acesso em 05 set. 2009.

3 Independente da legalidade e das implicações morais ou éticas, a disponibilização de conteúdo de forma gratuíta por meio da cópia não-oficial é uma forma de inclusão social e democratização deste tipo de produto, conforme apontado em (OLIVEIRA, 2008).

4 Segundo o site “UOL Jogos”, no Brasil, 80% dos jogos eletrônicos são cópias não-oficiais. (UOLJOGOS, 2006).

5 Mesmo que a distribuição baseada em mídias físicas seja em grande parte feita de forma não oficial, não gerando lucro para os desenvolvedores, nos últimos anos tem crescido no mercado a distribuição online e a presença de jogos com assinatura mensal como World of Warcraft, da Blizzard – o jogo com maior número de jogadores ativos atualmente: “o jogo online conta atualmente com mais de 11,5 milhões de assinantes, que pagam uma taxa mensal para jogar.” (FINALBOSS, 2009). Este tipo de exploração de mercado é mais voltado para a prestação de serviços (o uso dos servidores juntamente com outros milhões de jogadores) do que a venda de produtos e por conta disso tem sido muito bem sucedido: “Jogos online sem limites de jogadores (MMOGs) à base de assinatura continuam sendo os principais geradores de receita” (PCGA, 2009. p.9)

6 Embora algumas citações utilizem o termo “pirataria”, optamos por não endossá-lo neste artigo por o termo implicar em um juízo de valores, o que não se enquadra no escopo deste trabalho. Estas citações foram utilizadas com o intuito de refletir a presença da cópia não-oficial do jogo no mercado brasileiro, independente do termo utilizado para designa-las.

7 “Scene, uma organização formada por grupos de pirataria considerada como topo da cadeia de pirataria de produtos culturais pela internet” (BARBOSA, 2008, p. 1).

8 Para garantir a qualidade dos releases da Scene, todo release deve seguir uma série de regras, como, por exemplo, o “The.XviD.Releasing.Standards.2009” (SCENENOTICE, 2009), que especifica os padrões da codificação de vídeos Xvid para um release Scene.

9 Programas pequenos que fazem alterações na estrutura de um programa maior, normalmente para correção de erros, ou para alteração e/ou adição de funcionalidades.

10 Este assunto é abordado por (XAVIER, 2004), mostrando como o cinema clássico hollywoodiano se baseia nestas características para funcionar.

11 Conhecidos também como trojans, são programas com códigos maliciosos que permitem a terceiros acesso ao computador infectado e seus dados confidenciais.

12 Neste caso, não se trata de uma co-autoria do sistema de jogo, mas da autoria de ferramentas e processos para a liberação do jogo.

13 Os jogos com objetivo obrigatório são os mais comuns, porém existem jogos com objetivos optativos,ou ainda jogos sem objetivo,  como aponta Juul (2007).

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