Criação e desenvolvimento de jogos – O que diverte e como fazer

Se um carro não anda, não serve para muita coisa, pois não cumpre seu papel principal, mesmo que o farol acenda, o rádio funcione e a buzina toque.

Na indústria de software, chamamos as principais especificações de um software de requisitos. Tal como no exemplo do carro, se um sistema não cumpre os seus principais requisitos, este sistema não serve para muita coisa. Assim, um banco de dados tem como seus principais requisitos armazenar e buscar dados de forma eficiente. Portanto, por melhor que seja a sua interface, sua eficiência ou sua segurança, se ele não cumprir o requisito principal, que é armazenar e gerir dados, está fadado a ser descartado.

Um jogo tem como seu principal requisito ser divertido. Se o jogo não entreter ao seu usuário, não está cumprindo o seu principal propósito. O grande problema é que o fator diversão não é algo tão objetivo, como armazenar dados ou andar para frente. Mesmo que o jogo tenha propósitos educativos, o requisito de ser divertido continua valendo, porém agora também há um segundo: deve ser capaz de ensinar alguma coisa.

Sempre que se pretende criar um jogo, o projetista deve antes pensar qual é o fator de diversão que ele possui. Há uma área do conhecimento humano que procura estudar a ludicidade no ser humano: o quê é que provoca diversão, como medi-la e que elementos comuns os jogos possuem, capazes de garantir esta diversão. Há diversos livros muito interessantes sobre o tema, sendo que [1] é uma referencia obrigatória e [2] é uma excelente adaptação das idéias para o campo dos vídeo-games. O estudo da ludicidade vai além das fronteiras do entretenimento digital e os psicólogos afirmam categoricamente que a diversão é uma necessidade de qualquer ser humano: gostamos de viajar, apreciar um bom filme, sair com amigos para comer uns petiscos, assistir a um jogo de futebol, contar e ouvir coisas divertidas… Há inclusive quem diga que a vida do ser humano se restringe a trabalhar, descansar e entreter-se.

Dentro do escopo de querer entender o que é o lúdico, a pergunta central é: “porque algumas coisas nos divertem e outras não?”. Apesar de ser uma pergunta difícil e nem sempre existir uma resposta objetiva, se quisermos desenvolver um produto que é divertido, devemos pelo menos saber como começar a responder esta pergunta.

Sob o ponto de vista fisiológico, sabe-se que alguns elementos químicos produzidos pelo corpo humano podem produzir uma sensação de bem estar, tal como ocorre com a endorfina (endo = interno, morfina = analgéstico), dando ao cérebro uma sensação de euforismo. Este e outros hormônios, tal como a adrenalina e o cortisol, são produzidos naturalmente pelo corpo humano em diversas situações. Obviamente quando a sua produção é muito alta, pode produzir efeitos desagradáveis a uma pessoa, mas importantes para a sua sobrevivência, tal como ocorre num susto ou numa situação de perigo. Porém, quando estes são produzidos numa medida pequena e de forma natural, portanto sem o uso de remédios ou drogas, podem produzir uma sensação de bem estar saudável. Sabe-se que estes neurotransmissores são produzidos quando uma pessoa pratica esporte, quando exercita sua memória e quando o cérebro recebe desafios “controlados”, dentre outras situações. Por desafios “controlados” entendemos um desafio que não é muito banal mas tampouco exige um esforço extraordinário do cérebro, como pode ocorrer em situações onde há situação de perigo real. Obviamente quando o desafio nos pressiona para uma situação de risco, os hormônios serão produzidos, mas irão sair da margem do “bem estar”. Não estamos sendo reducionistas, dizendo que apenas o desafio é o que nos causa diversão: ajudar uma pessoa, ouvir uma boa música, comer um delicioso sorvete ou participar de uma boa conversa entre amigos também podem causar bem estar e não são situações relacionadas a estar vencendo desafios.

No caso dos vídeo-games, é justamente este fator desafio que importa: criarão desafios para o cérebro, porém em situações totalmente desconectadas da realidade, portanto dando-nos uma total sensação de segurança, caso não consigamos “vencer”. É por isso que passamos muito mal numa situação de assalto a mão armada real, mas podemos nos divertir bastante ao participar de um combate virtual. Poder perder é uma necessidade de um jogo, pois se sempre ganharmos não existe desafio, ou pelo menos ele pode se tornar muito pequeno a ponto de não exercitar o nosso cérebro o suficiente. Jogar futebol pode ser muito divertido, mas ficar passando a bola um para outro, sem nenhum propósito, pode se tornar uma tarefa sem graça.

Desta forma, redirecionamos a discussão do que é o lúdico ou o que é a diversão para tentar responder quais e como devem ser os desafios a serem criados. A lista abaixo relaciona alguns dos principais elementos de desafio de um jogo:

– Corrida: movimentar-se para estar em primeiro lugar

– Combate: confrontar-se com entidades adversárias

– Comando: dar ordens e querer ser correspondido

– Construir: utilizar elementos básicos para construir algo maior

– Colecionar: procurar juntar elementos de interesse

– Negociar: trocar elementos menos importantes por outros mais importantes

– Conectar: montar uma idéia ou um elemento, partindo dois ou mais fatos ou elementos

– Escapar: evitar a presença de algum elemento indesejável ou prejudicial

– Encontrar: buscar um elemento desejado e não visível

– Esconder: evitar ser visto ou encontrado por um elemento indesejado

– Aprender: buscar algum conceito importante e que não se possui

Além de poder categorizar os jogos pelo tipo de desafio imposto, é possível subdividi-los em gêneros ou estilos. Cada um destes gêneros poderá explorar mais de um dos desafios listados. Alguns dos gêneros transcendem o aspecto do desafio em si e referem-se a um estilo de design. Conhecer os gêneros de jogos também é importante para o processo de design dos mesmos, uma vez que este conhecimento irá nortear o tipo de desafios, bem como o estilo que um projeto deverá seguir. Assim, os principais gêneros de jogos são:

– Ação: são jogos que levam o jogador a combater e realizar ações que o ajudem a vencer e atingir objetivos específicos. Counter Strike, Halo e Spacewar são alguns exemplos.

– Aventura: Jogos que levam o jogador a encontrar elementos, escapar de situações e colecionar itens. The Legendo of Zelda e Zork são exemplos destes jogos.

– Esporte: Jogos que procuram recriar as mesmas regras de um esporte real. Fifa Soccer e Wii Sports são alguns.

– Estratégia de Tempo Real: também conhecidos como RTS (Real Time Strategy), permitem que o jogador crie estratégias, negocie, comande e construa. Muitos jogos deste gênero costumam explorar uma estratégia de câmera denominada de Gods View (visão de Deus), de forma a dar uma visão ampla do mundo ao jogador. Warcraft e Command and Conquest são exemplos clássicos.

– Educacionais: Jogos elaborados com o propósito de ensinar algum conceito. Estes jogos acabam seguindo algum dos outros gêneros que estão listados.

– Estratégia em Turnos: também conhecidos como Turn-based Strategy, são parecidos ao de estratégia em tempo real, porém cada jogador deve esperar por seu turno para efetuar uma jogada. O xadrez e Civilization são exemplos.

– Luta: Jogos tipicamente de combate, podendo ser desde lutas marciais a lutas com armas. Mortal Kombat e Tekken são alguns.

– Jogos de Primeira Pessoa: também conhecidos como FPS (First Person Shooters), são jogos onde o jogador é transposto para a posição da câmera. Muitos jogos de ação combinam-se com este gênero. Doom, Quake, Far Cry são bons exemplos.

Massive Multiplayer Online Games (MMOG): Jogos em rede, explorando a interação com personagens reais. Ultima Online e Ragnarok são alguns dos mais populares.

– Música: Jogos que exploram o ritmo de música ou a manipulação de algum instrumento, tais como Dance, Dance Revolution e Guitar Hero.

– Plataforma: Esta categoria não se deve ao tipo de desafios que o compõe propriamente dito, porém a um estilo de design, onde personagens andam e correm por um cenário que é movido na tela, enquanto o personagem tende a ficar no centro da tela. Super Mario Bros. E Pitfall são alguns exemplos.

Role-Playing Games (RPG): Jogos que criam enredos e estórias ao longo de sua execução. Diablo e Final Fantasy são alguns dos mais conhecidos.

Serius Games ou jogos sérios: jogos que procuram simular desafios e situações reais referentes a um contexto, tendo muitas vezes como objetivo o treinamento ou a educação dentro de uma realidade. Us Army é um dos mais conhecidos, mas em geral são jogos feitos por encomenda, para uma empresa ou campanha específica.

– Simulação: jogos que procuram simular situações reais. Flight Simulator e SimCity são exemplos.

– Quebra Cabeças: Jogos que exploram a lógica e a resolução de problemas. Tetris e Bejeweled são alguns dos mais conhecidos.

Juntamente com os desafios, há um elemento que todos os jogos devem possuir: tratam-se das regras. Sem regras não existem jogos. Nem mesmo os jogos esportivos ou jogos de tabuleiro. Assim, ao planejar um jogo, o desenvolvedor irá de alguma forma traduzir e escrever os desafios através das regras. As regras de um jogo definem um conceito muito importante nos vídeo-games: a jogabilidade ou gameplay.

Assim como não faz sentido criar um filme sem antes ter um roteiro bem elaborado, também é impossível partir para o desenvolvimento de um jogo sem antes ter um documento sem o seu gameplay.

Antes de desenvolver um jogo, deve-se produzir um documento de design, que irá conter a descrição do gameplay, portanto as regras em detalhes. Este documento de design pode ser encarado como uma espécie de manual de instruções para os futuros desenvolvedores do jogo [3]. De fato, tão importante é este documento, que o processo de desenvolvimento não pode começar sem que este não esteja pronto. Além das regras, o documento deverá conter outros elementos, como os listados abaixo. Entretanto, todos os demais elementos são de certa forma acessórios: podem haver jogos sem enredos, sem gráficos sofisticados e até sem música, porém nunca haverá um jogo sem regras e sem desafios.

– Roteiro: Chamam-se aos roteiros de jogos de roteiros interativos, pois diferentemente que os roteiros de filmes, devem ter espaço para interferência do usuário no desencadeamento da estória. Ao elaborar o roteiro deve-se ter em conta qual o estilo do jogo que se está desenvolvendo. É normal usar uma estória para contextualizar o jogo e justificar parte de suas regras.

– Game Art: Entende-se por Game Art a conceituação artística do jogo. Hoje em dia, dada a complexidade das estórias e dos cenários elaborados, é comum que esta parte do documento seja escrita por um artista. Dentro deste item deverão ser expostos quais as principais características dos cenários, esboços de personagens, descrição das texturas fundamentais, mapas e descrições das fases (também denominado de level design). O livro [4] descreve detalhadamente como é a elaboração deste tópico

Gameplay: Nesta parte do documento deve descrever-se como será a jogabilidade, como visto anteriormente. Nesta descrição deve ficar claro que o jogo é divertido e irá proporcionar desafios interessantes. Esta parte do documento é muito importante para guiar os programadores para grande parte da programação, especialmente no que se refere à implementação lógica do jogo.

– Interface: Pode-se dividir a interface em ingame e outgame. A primeira consiste na instrumentação disponível durante o jogo e é responsável pela entrada de dados do jogador para a aplicação. A interface outgame é a forma de apresentar a introdução do jogo, sua configuração, instruções, etc. Os artistas gostam de dizer que a melhor interface é aquela que passa desapercebida para o jogador, permitindo que o mesmo possa focar-se no jogo em si, na história e nas ações. É dentro da interface ingame que devemos projetor os chamados HUDs (Head Up Display), que consistem em imagens que se sobrepõem a toda a cena, tais como miras, pontos, vidas, munição, etc.

Bilbiografia

[1] Huizinga, Joahn. Homo Ludens – O jogo como elemento da cultura. Ed. Perspectiva, 5a edição, 2001.

[2] Koster, Raph. Theory of Fun for Game Design. Paraglyph Press, 2004.

[3] Rollings, Andrew and Morris, Dave. Game Architecture and Design: A New Edition. New Riders Publishers, 2004.

[4] Crawford, Chris.  The Art Of Computer Game Design. Kindle Edition, 2009.

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Este post tem um comentário

  1. Author Image
    anonimooooo:D

    “Se um carro não anda, não serve para muita coisa, pois não cumpre seu papel principal, mesmo que o farol acenda, o rádio funcione e a buzina toque.”
    è mermo?
    serio? não sabia disso

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