O Curta-metragrem Aruanda e a Representação do Nordeste

Marine Souto Alves é mestranda e bolsista CAPES do curso de Mestrado em Letras: Linguagens e Representações da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).

Introdução

O presente artigo trata das abordagens sobre a questão da representação no cinema documentário. Nosso enfoque principal é a representação do nordeste no filme Aruanda, realizado em 1960, por Linduarte Noronha. Para tanto foi realizado um levantamento de artigos, livros, dissertações e entrevistas que tratassem de alguma forma, de questões sobre o documentário, a representação e análises do filme em questão. É importante salientar, que este levantamento não abarca toda a produção bibliográfica acerca do tema, haja vista as dificuldades de se realizar um exame integral por todo o país. Pesquisamos até o presente momento algumas pesquisas coletadas na Universidade de São Paulo (USP), na Universidade estadual de Santa Cruz (UESC), na Cinemateca Brasileira de São Paulo e no suporte eletrônico/ digital Internet.

Considerações em torno de definições sobre o cinema documentário

Ainda hoje, existem dificuldades em se definir o gênero/formato documentário. Surgiu como estilo cinematográfico e dizia-se que era uma forma contrária a ficção, pois trabalhava com situações, locais e personagens da realidade. O termo surgiu com John Grierson, idealizador e principal organizador do movimento do filme documentário na Inglaterra, nos anos 30, que acreditava no potencial educativo desse estilo. A criação e adoção do termo estavam ligadas à idéia de legitimação, na tentativa de conseguir o apoio estatal para a produção de filmes e associava-se também a um tratamento pedagógico literário e descritivo.[1] Para muitos estudiosos, ainda não existe uma definição exata para o que vem a ser o documentário, afinal ele recobre uma variedade de filmes que se utilizam dos mais diversos estilos, métodos e técnicas.

Silvio Da-Rin (2004), em “Espelho Partido: Tradição e Transformação do documentário” realiza um percurso por teorias, filmes e diretores clássicos que fizeram do documentário um objeto para discussão sobre a realidade e sua representação. Resgata a história da tradição documental, partindo do cinematógrafo dos irmãos Lumière, das inovações de Robert Flaherty e Grierson até Dziga Vertov e o cinema de Jean Rouch. Trata também de algumas questões sobre a história do documentário no Brasil a partir das obras de Alberto Cavalcanti, Arthur Omar, Jorge Furtado e Eduardo Coutinho.

A análise feita por Da-Rin acerca do que vem a ser o documentário nos leva a acreditar que o olhar do espectador é o que determina o gênero do filme, pois segundo ele, a história do documentário tem sido marcada pela criação de estratégias através das quais os cineastas procuram fazer com que os espectadores vejam o filme deste modo. Logo, o que ele tenta evidenciar é que a ênfase na determinação do documentário recai nas intenções do realizador do filme e nos efeitos desejados por ele sobre a audiência.  Com isso, a partir do próprio título do livro “Espelho Partido”, Da-Rin nos mostra que a idéia de que o documentário mantém uma ligação direta e sem interferências com a realidade é quebrada, partida, e assim nos ensina a olhá-lo com desconfiança.

A reflexão sobre a definição do documentário aparece também no livro de Bill Nichols (2005), “Introdução ao documentário”, no qual ele analisa não só as questões referentes à definição, mas também à ética, ao conteúdo, à forma, ao tipo e à política no documentário. Para tanto, Nichols parte do princípio de que qualquer filme é um documentário, pois todo filme mostra a cultura que o produziu, representa a aparência das pessoas que participam, sejam elas atores profissionais ou não. Entretanto, considera que o documentário possui suas especificidades como representação do mundo “real”. Nichols entende que para definir um filme como documentário ou ficção é necessário abordá-lo de quatro ângulos distintos: o das instituições, o dos profissionais, o dos textos e o do público. Ao considerar qualquer filme como sendo documentário, ele classifica os de não-ficção como documentários de representação social por representarem de modo tangível aspectos de um mundo que já é ocupado e compartilhado por nós e por oferecerem novas visões de um mundo comum.

Fernão Pessoa Ramos (2001), em seu artigo “O que é Documentário?” também se detém na questão da definição do gênero. Nesse trabalho faz alguns questionamentos como:

Será que podemos caracterizar o documentário, dentro de uma equivalência enquanto gênero, a partir de outras tradições narrativas do cinema, como o western , o musical, o filme noir? Seria o documentário um gênero como outros, ou teria o documentário característica imagéticas (e sonoras) estruturais que o singularizariam deste outro vasto continente da representação com imagens – câmera que é a ficção narrativa (em seus formatos diversos de filme – longa ou curta, mini-série, novela)?(RAMOS, 2001, p.1).

E chega à conclusão de que, delimitar um campo específico para defini-lo, separando-o da ficção tornou-se algo absoleto. Segundo ele,

Uma narrativa aparentemente documentária, que termina como ficção, seria a prova da impossibilidade de uma distinção analítica clara. Discutir fronteiras e definições surge como algo ultrapassado, pois reafirma a possibilidade de um saber que desloca, do centro da arena, o recorte analítico que gira em torno de variações sobre a fragmentação subjetiva (RAMOS, 2001, p.2).

Esta bibliografia, portanto, traz grandes contribuições para se entender o que vem a ser o documentário e nos mostra como devemos encará-lo enquanto gênero cinematográfico que trabalha diretamente com questões simbólicas ligadas ao “real” propriamente dito, além de deixar claro que as discussões em torno desse gênero são de fundamental importância para se entender as questões que envolvem a representação.

A representação no documentário

Quando se pensa o documentário a partir do olhar do senso comum, a esse gênero remete-se normalmente, o estatuto de um registro transportador da realidade. A idéia de representação surge então, como ponto de partida para se questionar essa realidade e as intenções de quem a produziu. Muitos estudiosos se preocupam com tal questão e se dedicam ao tema, procurando sempre desmistificar todo esse imaginário em torno do documentário.

Anelise Corseuil (2003), em “Um lugar chamado Chiapas: a intersecção entre o ficcional e o real no documentário”, analisa o documentário canadense Um lugar chamado Chiapas (1998), de Nettie Wild. Segundo ela, o documentário apesar de ter uma forma narrativa distinta da ficcional, ele representa uma realidade específica a partir de uma narrativa própria, criada pela forma como a câmera transforma a realidade local.

Mariana Baltar (2003), em “Estética documentária, uma questão da memória discursiva”, mesmo não tratando diretamente sobre a questão da representação, chama a atenção para alguns questionamentos que devem ser feitos acerca das estratégias narrativas utilizadas pelo documentário para representar a realidade. São eles:

Que documentários parecem – em suas estratégias narrativas e estéticas – fiéis à realidade? Por que querem vincular a esse efeito de sentido? Como se articulam esteticamente para tanto? E, em última instância, de que lugar falam (um lugar sempre ideológico). (BALTAR, 2003, p. 233).

Na obra de Bill Nichols (2005), “Introdução ao documentário” também observamos algumas reflexões acerca do tema. O autor coloca que os documentários não reproduzem a realidade, eles mostram aspectos ou representações sonoras e visuais de uma parte do mundo histórico. Significam ou representam os pontos de vista de indivíduos, grupos e instituições. Criam representações, formulam argumentos ou estratégias persuasivas para o convencimento do espectador. Dessa maneira, partindo da idéia de que o documentário se constitui enquanto representação da realidade, Nichols chama a atenção para questões como a ética no documentário, o conteúdo, as instituições, os tipos e a “voz” que carrega.

Paulo Menezes (2003), em “O cinema como representificação: verdades e mentiras nas relações (im)possíveis entre documentário, filme etnográfico e conhecimento” traz um novo conceito que também envolve a questão da representação – “Representificação”. Segundo ele, esse conceito realça o caráter construtivo do filme, uma vez que nos coloca em “presença” de relações mais do que na presença de fatos e coisas. Relações entre o que o filme mostra e o que ele esconde ou “representa”. Relações com a própria história do filme, articulações de espaços e tempos, articulação de imagens e sons, diálogos e ruídos. Assim também, diferencia-se de Nichols ao considerar que todo filme é uma ficção justamente por ser um ficcio, que além de ser invenção, significa também ato de modelar, formar, criar. Logo,

Nesta acepção, os filmes mais ficcionais são justamente os documentários, os sociológicos e os etnográficos, pois são filmes que escondem em seus próprios nomes os esquemas valorativos que presidem seus esquemas conceituais construtivos, os sistemas relacionais que constituem por meio de suas imagens. (MENEZES, 2003, p. 560).

Luiz Augusto Rezende Filho (2006), em “O uso da noção de representação na teoria do documentário” foi quem mais diretamente dedicou-se ao tema. Em seu trabalho relaciona as teorias que envolvem a noção de representação desde os semiólogos do cinema até Bill Nichols, fazendo uma análise crítica. Ele constata que entre os anos 60 e 70 o uso da noção de representação foi largamente utilizado tanto para a construção de significado no documentário, quanto para criticar as concepções realistas da objetividade do registro cinematográfico.

Para confirmar suas constatações, cita Christian Metz e a sua teoria de que “todos os filmes, mesmo os documentários, são ficções porque são representações” (FILHO, 2006, p.289). Igualmente, cita alguns autores franceses como Jean Louis Comolli, Marcelin Pleynet, Jean Narboni e Pascal Bonitzer que acreditam que “todo conjunto organizado de imagens e sons é uma representação na medida em que apresenta um mundo trabalhado pelo discurso e pela ideologia” (FILHO, 2006, p. 289).

O autor coloca que as idéias desses estudiosos, num primeiro momento, influenciaram muito, posteriormente, no entanto, lhes causaram alguns problemas, como o fato das teorias não abrirem espaço para se pensar na especificidade do documentário ou a própria “existência institucional”. Além disso, não é questionada a relação entre a representação e o objeto representado. Logo, o que Rezende Filho procura é fazer uma crítica, não às formas de representação, mas a crítica da representação como pressuposto teórico. E ressalta de antemão que, “dizer que um documentário é uma representação, não significa apenas dizer que ele é uma construção discursiva e subjetivamente estruturada – diferente, portanto, da própria realidade” (FILHO, 2006, p. 290). Primeiro, porque essa pressuposição carrega um problema que é a idéia de que, por se tratar de uma representação o documentário “substitui” alguma coisa. Segundo, porque qualquer representação supõe, dessa maneira, um sujeito que a constrói, um objeto que ele representa e um modelo que busca copiar.

Citando Jacques Aumont, Rezende Filho coloca que um dos maiores problemas da noção de representação é saber em qual proporção ela busca ser confundida com o que representa e o que é motivado na representação, ou seja, a natureza da relação da representação com o objeto representado, avaliando uma suposta adequação entre elas.

A partir daí, constata que tal avaliação conduz à idéia de “inadequação da representação”, na qual se busca apontar os limites de toda representação, reconhecendo que o realismo documentário não é capaz de reproduzir nada sem utilizar artifícios e fabricações. Segundo ele, uma das críticas à representação documentária ficou encarregada de apontar as “manipulações” presentes nos documentários. Assim, se ocupava de relatar casos em que, o documentário utilizava de técnicas para “distorcer a realidade” ou mostrava-se “tecnicamente” incapaz de representá-la. Também buscava mostrar que o cinema não estava livre de equívocos, chegando a produzir estereótipos ao representar culturas exóticas.

A pressuposição disseminada por essa crítica era então, a idéia de que “a noção de representação, aplicada ao documentário, nos induz à noção de manipulação, já que a primeira supõe, necessariamente, a existência de um “objeto da representação”, fixamente determinado” (FILHO, 2006, p. 292). Cria-se então, um pensamento circular:

Considera-se que o documentário é uma representação para mostrar como ele pode “espelhar o real”, mas a suposição de que ele deve “espelhar o real” ganha especial interesse porque o documentário é, de antemão, pensado como representação (FILHO, 2006, p. 292).

Segundo Rezende, a crítica da manipulação também apresenta alguns problemas. O primeiro deles estaria na “designação” de um objeto modelo para a representação. O segundo estaria na suposição de que este objeto é algo pronto e que possui uma identidade única. Outro ponto defendido pela crítica da manipulação é a de que as narrativas criadas pelos documentários não respeitam a “verdade histórica”, o que gera um outro problema que é o critério externo à expressão audiovisual de julgamento na avaliação das manipulações. A finalidade histórica estaria então, relacionada ao reconhecimento de historiadores.

Assim, o que ele coloca como apontamento crítico à crítica da manipulação é o fato desta estabelecer um critério de julgamento exterior e universalmente válido que acaba por não conseguir interpretar os filmes adequadamente. E questiona:

Não será, então, a critica da manipulação a decorrência desejável de um acordo tácito entre aqueles que desejam “representar a realidade”, mas sabem que toda representação é uma fabricação – e precisam, portanto, de legitimação -, e aqueles que detém  a autoridade sobre um saber estabelecido, mas sabem que o reconhecimento desta autoridade é sempre conflituoso e provisório –  e precisam garanti-lo, ampliando seu controle a sua influência sobre quantas áreas da atividade humana for possível? (FILHO, 2006, p. 294).

Conclui então, que de algum ponto de vista é possível detectar “manipulações” em qualquer filme, pois o cinema manipula a realidade. Primeiro porque a realidade é o objeto do cinema e como objeto não pode ser representada sem artifícios. Segundo porque não se pode estabelecer o que é a realidade por meio de um critério de julgamento único. Logo,

Sempre haverá algum critério externo, um momento histórico, uma ideologia segundo os quais a representação é inadequada, manipulada, deixando como conclusão que toda representação empreende, de alguma forma, uma manipulação de seu objeto (FILHO, 2006, p. 294).

O Cinema Novo e o filme Aruanda

O Cinema Novo foi o primeiro movimento cinematográfico brasileiro de vanguarda intelectual ao longo do século XX. Influenciado pelo Neo-realismo italiano e da Nouvelle Vague francesa, seu objetivo era contestar e transgredir as regras impostas pelo cinema comercial, modelo seguido, no Brasil, pela Companhia Vera Cruz. O Cinema Novo procurava uma forma de cinema independente, de autor, de caráter ideológico, inerente às lutas de classe, uma vez que o movimento tinha o desejo de conscientizar o povo e vontade de contribuir na construção de uma cultura essencialmente popular. Voltava-se para o questionamento da realidade do subdesenvolvimento com uma proposta conhecida como estética da fome.

Adilson Ruiz (2003), em “Vera Cruz e Cinema Novo: Matrizes da produção cinematográfica atual”, pontua alguns preceitos básicos do Cinema Novo. São eles: o cinema de autor, no qual a figura principal nos destinos das produções era a do diretor; o foco sobre os menos favorecidos da sociedade; o abandono de recursos e técnicas industriais para a criação de uma estética revolucionária; temáticas políticas e sociais e a desconstrução da linguagem clássica do cinema.

Para Bernardet (1978), em “Indagações sobre as significações políticas do Cinema Novo”, esse movimento tinha duas perspectivas: “a elaboração de um cinema até então inexistente no Brasil, que expressasse o povo oprimido e se dirigisse ao público cinematográfico em geral; e a conquista do mercado pelo produto brasileiro contra o estrangeiro”.

No caderno do Ciclo de Cinema Brasileiro[2], João Batista de Andrade comenta que o filme Aruanda é a própria síntese do Cinema Novo, por apresentar uma preocupação em buscar a realidade nacional, tratar de um tema social sem utilizar fórmulas pré-concebidas em laboratórios e determinar uma linguagem especial para o próprio tema, sem mistificações. Assim também, Bernardet no mesmo caderno comenta que Aruanda além de ser um estímulo, uma provocação e tratar de assunto brasileiro ele pode se tornar um estilo e dar ao cinema brasileiro uma configuração particular.

Glauber Rocha, no jornal do Brasil de 06 de Agosto de 1960 reservou uma página de elogios ao documentário Aruanda, que é tido como filme de grandes qualidades. Um filme de criação que não é nem acadêmico nem revolucionário, com uma montagem desastrosa, o que dá a impressão de um Paisá (filme de Rosselini) no Nordeste. Sem preocupações com a narrativa, é um filme que inaugura o documentário brasileiro em fase de renascimento. Sente-se valor intelectual de cineastas, “homens vindos do povo, com a visão dos artistas primitivos, criadores anônimos longe da civilização metropolitana”[3].

No artigo “Cinema Verdade no Brasil”, Fernão Pessoa Ramos (2004) afirma que a repercussão de Aruanda demonstra a dimensão que teve o documentarismo na afirmação estética cinemanovista. Teve seu roteiro desenvolvido a partir de uma reportagem feita por Linduarte Noronha. A fotografia do filme é tida como um dos pontos altos, com tonalidades “toscas e estouradas, captando a dureza do sertão”. A trilha sonora também chamou a atenção por ser essencialmente folclórica e estar em sintonia com o filme. A voz narrativa é tida como convencional, permeada por um tom culturalista classificatório. É com Aruanda que a imagem do povo e da natureza nordestina, surge estampada na tela e dá-se o lançamento oficial, junto com Arraial do cabo, do cinema Novo em São Paulo, na VI Bienal.

O nordeste em Aruanda

Alguns pesquisadores deteram-se mais especificamente sobre os estudos do cinema no Nordeste ou simplesmente sobre o filme Aruanda. Destacarei algumas análises mais importantes.

Há muito tempo, o Nordeste vem sendo alvo de representação no Cinema brasileiro, tanto na ficção quanto no documentário. Wills Leal (1982), em “O Nordeste no Cinema”, faz uma panorâmica sobre os filmes produzidos no Nordeste ou que apresentam a cultura nordestina e constata que na maioria dos estados nordestinos tentou-se fazer cinema, mas que “não há a rigor um cinema nordestino. Há um cinema de temática nordestina” (LEAL, 1982, p. 11). Outra importante constatação é o fato do Cinema de temática nordestina ser, em quase sua totalidade, realizado por sulistas e estrangeiros, sendo a maioria dos filmes realizados até o fim da década de 60, resultados de adaptações literárias, com exceção de Glauber Rocha e os documentários iniciados por Linduarte Noronha, com Aruanda e desenvolvidos por tantos outros.

O Nordeste, segundo Leal, foi também a locação predileta para os realizadores do movimento do Cinema Novo, principalmente por sua miséria. Ao analisar os filmes de forma generalizante observa que,

O cinema produzido no Nordeste, visto englobadamente, apresenta, numa visão sociológica, um saldo positivo: não foi demissionário, não quis passar pela história do cinema brasileiro como mero espectador. Tentou (e tão poucas vezes alcançou o que pretendeu) ir ao fundo de nossa problemática, para retratá-la, criticá-la, historicizá-la, tornando-se, assim, um agente atuante de nossa cultura (LEAL, 1982, p. 48).

Segundo ele, um fator preocupante é o fato do cinema realizado no Nordeste estar sempre buscando uma realidade miserável do nordestino, o que chama de “conotação trágico-realista” e o que o leva a afirmar que,

No conjunto das obras, encontramos um Nordeste problematizado, um Nordeste em contrastes eternos, marcado pela seca, pelo crime, pela opressão, pelo misticismo, pelos coronéis, pelo homem que se perde totalmente, ao perder sua própria terra. O filme do Nordeste é a história do homem e da terra, ou seja, do homem – terra, da terra que o forma, que o bitola, que o molda (LEAL, 1982, p. 49).

Ao analisar mais precisamente os documentários, observa que estes interpretam e denunciam a miséria. No caso de Aruanda ele afirma que este documentário “é o ponto de partida de um tipo de produção barata, quase de cunho amadorístico, preocupado não em mostrar nossa cultura, mas em estudá-la” (LEAL, 1982, p. 78).

Aruanda é um documentário que foi escrito e dirigido (como consta nos créditos do filme), em 1960 por Linduarte Noronha e uma equipe de amadores, entre eles Vladimir Carvalho e João Ramiro Mello como assistentes, e Rucker Vieira que ficou responsável pela fotografia e montagem do filme. Além de seus realizadores ainda contou com a colaboração do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, de Pernambuco, o Instituto Nacional do Cinema Educativo, do Rio de Janeiro, a Secretaria da Educação e Cultura e D.E.R, de João Pessoa, a Associação de Críticos Cinematográficos da Paraíba, os laboratórios da Líder Cinematográfica, do Rio de Janeiro e algumas pessoas em especial, Mauro Motta, Pedro Gondim, Adalberto Barreto, Durval Lins, José Pedro Nicodemos, Letácio Guedes, Inácio Bento, Pedro Gouvêa Filho, José Mauro, Manuel Ribeiro, Erich Walder, Mozart de Araújo, Odilon Ribeiro Coutinho, Walter Pontes e Humberto Mauro.

Aruanda foi dirigido por Linduarte Noronha que nasceu na cidade de Ferreiros, em Pernambuco (PE), no ano de 1930. Aos três anos, mudou-se com a família para João Pessoa, na Paraíba (PB), onde se firmou e passou a exercer atividades como jornalista, fotógrafo, ensaísta, contista, crítico e professor. Em 1958 formou-se em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), mas, inicialmente, foi como jornalista que teve ampla atuação, profissão com a qual obteve alguns prêmios, divulgando reportagens em revistas importantes no Brasil e no exterior. Posteriormente, foi como cineasta que se reconheceu, ao realizar o documentário Aruanda (1959-1960). Sua formação cinematográfica é decorrente da sua atuação como jornalista, crítico cinematográfico e integrante de uma geração cineclubista da década de 50. Aruanda, segundo ele, quer dizer “terra prometida” e é considerado um dos marcos do Cinema Novo, marcando também, juntamente com um outro curta-metragem de sua autoria, O cajueiro Nordestino (1962), o início do Ciclo Paraibano de Cinema.

Aruanda, segundo Fernão Pessoa Ramos (2004), em “Cinema Verdade no Brasil” teve o seu roteiro construído a partir de uma reportagem escrita por Linduarte Noronha intitulada “As oleiras de Olho d’água da Serra do Talhado”. O filme conta a história de uma comunidade de negros isolada na Serra do Talhado, na Paraíba, que foi fundada em meados do século passado por um ex-escravo chamado Zé Bento. O filme nos mostra ainda o trabalho cotidiano dessa gente em torno da roça de algodão e cerâmica que são vendidos depois, na feira de Santa Luzia do Sabugi como nos é mostrado nos primeiros letreiros do filme:

Os quilombos marcaram época na história econômica do Nordeste canavieiro. A luta entre escravos negros e colonizadores terminava, às vezes, em episódios épicos, como Palmares. Olho d’água da Serra do Talhado, em Santa Luzia do Sabugi, Estado da Paraíba, Nordeste do Brasil, surgiu em meado do século passado, quando o ex-madeireiro Zé Bento partiu com a família a procura da terra de ninguém. Com o tempo, Talhado transformou-se num quilombo pacífico, isolado das instituições do país, perdido nas lombadas do Chapadão Nordestino, com uma pequena população num ciclo econômico trágico e sem perspectivas, variando do plantio de algodão à cerâmica primitiva[4].

O filme parte então, de uma idéia original desenvolvida pelo trabalho jornalístico de Linduarte Noronha que acaba por transformar a concepção de cinema brasileiro, que até então era baseado no sistema industrial Hollywoodiano, mostrando outra face do país e inaugurando, juntamente com Arraial do cabo, de Paulo César Saraceni o movimento e a estética cinemanovista.

No “caderno do Ciclo de Cinema Brasileiro”[5], João Batista de Andrade comenta que Aruanda é a própria síntese do Cinema Novo, por apresentar uma preocupação em buscar a realidade nacional, tratar de um tema social sem utilizar fórmulas pré-concebidas em laboratórios e determinar uma linguagem especial para o próprio tema, sem mistificações. Assim também, Jean-Claude Bernardet no mesmo caderno, comenta que Aruanda além de ser um estímulo, uma provocação e tratar de assunto brasileiro pode se tornar um estilo e dar ao cinema brasileiro uma configuração particular. É com Aruanda que a imagem do povo e da natureza nordestina, surge estampada na tela, como afirma Fernão Pessoa Ramos. Glauber Rocha chega a compará-lo a um filme de Rosselini, “Paisá”, justamente por apresentar um mundo precário a partir da precariedade da produção, o que se transformou em um estilo cinematográfico, mais tarde concebido pelo próprio Glauber como a “estética da fome” e inspirando-o diretamente em seu filme Deus e o Diabo na Terra do sol.

Aruanda como já foi dito, é um dos filmes da década de 60 que iniciou o movimento do Cinema Novo. Foi gravado apenas com uma câmera portátil e película de 35 mm, emprestada pelo diretor do Instituto Nacional do Cinema Educativo, Humberto Mauro e um gravador Nagra. Não contou com rebatedores ou quaisquer outros equipamentos de iluminação e foi montado com o apoio dos laboratórios da Líder Cinematográfica, no Rio de Janeiro. Sua primeira exibição pública ocorreu, segundo Fernando Trevas Falcone, em agosto 1960 e ficou restrita a “uma platéia de críticos e jovens realizadores reunidos no auditório do Palácio da Cultura no Rio de Janeiro” (FALCONE, 1995, p. 95). Aruanda assim como tantos outros filmes cinemanovistas não conseguiu despertar o interesse das pessoas, que estavam acostumados à estética Hollywoodiana e não entendiam as propostas da nova estética do cinema brasileiro dessa época.

Bill Nichols,  acredita que é o olhar do espectador determina o filme como sendo documentário ou ficção. Para ele, “a sensação de que um filme é um documentário está tanto na mente do espectador quanto no contexto ou na estrutura do filme” (NICHOLS, 2005, p.64).      O caráter indexador da imagem videográfica é também uma constante nos textos de Nichols. Para ele, ao assistir um filme, o público está atento às maneiras como as imagens e sons são apresentados. E, tratando-se de documentário, o espectador conserva a crença na autenticidade do mundo histórico representado. É por isso que, segundo ele, “os públicos vão ao encontro dos documentários com a expectativa de que o desejo de saber mais sobre o mundo será satisfeito durante o correr da fita” (NICHOLS, 2005, p.69 e 70).

Aruanda é um filme em preto e branco, formado por planos simples. O plano geral, o conjunto e o detalhe são montados a partir do corte seco e do movimento de câmera panorâmica. Os planos gerais funcionam no filme para descrever o ambiente, enquanto os conjuntos servem para mostrar as pessoas e suas atividades na comunidade, já os detalhes aparecem para dar ênfase à vida difícil e à miséria do povo. A experiência do cinegrafista e do próprio diretor com a fotografia é bastante evidente no filme, principalmente pelos enquadramentos escolhidos para compor as cenas. Imagens sempre emolduradas por elementos característicos/ simbólicos da região nordestina como as árvores secas, os cactos, etc.

O filme trabalha ainda com a reconstituição da história da fuga de Zé Bento e a formação do quilombo. Em entrevista a Ana Carvalho, Linduarte Noronha conta que antes do filme não existia nenhum documento, nenhuma referência sobre a história daquele local. Por muitas dificuldades encontradas na fase de pesquisa e partindo de um princípio muito rígido de que o documentário não podia mentir, inventar, fazer ficção, ele decidiu inovar e descartar a fórmula de documentário só com depoimentos. No processo de filmagem foi necessário realizar algumas modificações no local para conseguir uma iluminação natural, por exemplo. Com as mulheres que trabalham com a cerâmica foi necessário tirar as telhas da casa para que a luz natural entrasse. Ele afirma também que a reconstituição que faz no início do filme foi com quase de ficção, mas que não era ficção, mas sim uma reconstrução narrada para registrar um depoimento que lhe foi anteriormente dado por um antigo morador da região. “O que eu fiz foi uma substituição do depoimento pelas imagens que iriam dizer sobre os depoimentos que eu tinha”, diz ele. O improviso foi um dos intervenientes do filme, como a questão da iluminação e alguns ensaios para quebrar com poses forçadas, parecendo fotografias.

Ao analisar Aruanda, Geraldo Sarno afirma que é um documentário pelo fato da câmera realizar um registro documental, todavia a narrativa do filme trata-se de um mito, que para ser expresso em imagem é necessário que o posicionamento da câmera, os enquadramentos e a atuação dos atores sejam estudados e ensaiados, transformando-se, assim, em ficção. Segundo ele, o que determina a parte documental de Aruanda é a própria paisagem, as pessoas e a idéia da câmera na mão sem a preocupação de situá-la com uma determinada lente, a partir de um ângulo desejado ou uma fotografia perfeita. Esses aspectos podem ser observados nas cenas em que as mulheres cavam e apanham a terra, tiram água do poço, preparam o barro e confeccionam a cerâmica.

É, portanto, um filme que traça um paralelo entre realidade e ficção, assim como fez Robert Flaherty em 1922 com Nanook of the north e que através da narração em voz off e da edição realizada estabelece uma “voz” sobre aquela realidade. “Voz” é um conceito criado por Bill Nichols e que está longe do significado de discurso, do que é dito verbalmente ou algo referente às imagens e sons sincrônicos. Pelo menos, não literalmente. O conceito de “voz” para ele está estritamente relacionado com a idéia de representação, pois “[os documentários] como representação, tornam-se uma voz entre muitas numa arena de debate e contestação social” (NICHOLS, 2005, p.73).

Ou seja, enquanto representação do mundo, os documentários possuem uma “voz” ou ponto de vista singular. Logo, a “voz” do documentário nada mais é do que a maneira pela qual esse ponto de vista é transmitido. O que João Moreira Salles no prefácio do livro de Da-Rin chamou de “questão epistemológica”, isto é, entender de que forma o documentarista apresenta o seu tema para o espectador.

Segundo Nichols, a “voz” do documentário pode exercer diversas funções como a defesa de uma causa, a apresentação de um argumento ou simplesmente transmitindo um ponto de vista, uma perspectiva. Outra característica é a ligação com uma lógica informativa que serve de direcionamento para a estruturação do documentário, que se torna distinta da ficção, pois, como nos mostra,

No documentário, o estilo deriva parcialmente da tentativa do diretor de traduzir seu ponto de vista sobre o mundo histórico em termos visuais, e também de seu envolvimento direto no tema do filme. Ou seja, o estilo da ficção transmite um mundo imaginário e distinto, ao passo que o estilo ou a voz do documentário revelam uma forma distinta de envolvimento no mundo histórico (NICHOLS, 2005, p.74).

Além disso, Nichols revela que a “voz” do documentário também é a imagem que temos do cineasta, ou seja, aparecendo ou não no filme, este atesta o seu caráter, como se apresenta diante da realidade social ou a sua própria criatividade, já que ao filme, adiciona-se ou não, responsabilidade, ética e inovação. Logo, “a voz do documentário transmite qual é o ponto de vista social do cineasta e como se manifesta esse ponto de vista no ato de criar o filme” (NICHOLS, 2005, p.76).

Assim também, essa “voz” fala através de todos os elementos disponíveis, sejam eles planos, ângulos, iluminação, padrão de cores, montagem e edição, efeitos sonoros, trilha sonora, movimento de câmera, imagens de arquivo e o modo de representação adotado (expositivo, poético, observativo, participativo, reflexivo ou performático).

Em Aruanda, podemos identificar uma “voz”, que tenta se mostrar principalmente pela voz off. Essa voz parece costurar os acontecimentos que são mostrados no filme. Ela é feita pelo próprio diretor Linduarte Noronha e pelo uso da ficção que se mistura ao documental. É uma fórmula do documentário clássico que busca falar do outro sem dar voz direta a ele, aproximando-se de uma grande reportagem telejornalística.

Pode ser considerado como curta metragem já que conta a história em apenas 20 minutos e apresenta um modo de representação expositivo, que é definido por Bill Nichols como,

um modo que agrupa fragmentos do mundo histórico  numa estrutura mais retórica ou argumentativa do que estética ou poética. O modo expositivo dirige-se ao espectador diretamente, com legendas ou vozes que propõem uma perspectiva, expõem um argumento ou recontam a história. Os filmes desse modo adotam o comentário com voz de Deus (NICHOLS, 2005, p.142).

Além desse modo, que é o predominante em Aruanda, apresenta também algumas características do modo observativo e reflexivo. Em alguns momentos a câmera documenta sem interferir diretamente e ao mesmo tempo faz meta cinema quando apresenta um Nordeste em que a pobreza e as dificuldades com a seca estão em primeiro plano como personagens principais e a precariedade da atividade e dos recursos de produção do filme também são evidenciados.

Jean-Claude Bernardet faz uma breve análise de Aruanda e observa que o filme não se contenta em mostrar a realidade em si, mas em interpretá-la. Isso se deve ao fato do filme abordar um aspecto particular, fugindo ao regionalismo. Segundo ele, o filme mostra cruamente “homens viverem de elementos primários -, nem alegrias, nem tristezas; vemo-los andar, trabalhar, não chegando a existir como indivíduos” (BERNARDET, 1962, p. 41 e 42).

Considera ainda, a fita tecnicamente muito imperfeita, com uma fotografia insuficiente e a trilha sonora cheia de defeitos, todavia essas imperfeições é o que dá ao filme um tom artificial “sentimos que não estamos diante da realidade, mas sim diante de uma representação”.

Em Aruanda a “voz” é também determinada pela trilha sonora escolhida pelo diretor, no caso, uma trilha regional que foi feita pelos próprios moradores da Serra do talhado, com instrumentos como pífano e violão. Foi realizada num gravador simples e depois transposta para o filme, na tentativa de criar um ambiente o mais natural possível, variando de ritmos melancólicos, os quais transmitem as dificuldades vividas pela população local e ritmos mais alegres nos momentos de “pseudo-felicidades” como no encontro de Zé Bento e a família com a água, na construção da casa e na confecção dos utensílios de cerâmica.

Geraldo Sarno também analisa a parte sonora do filme e observa que “a música em Aruanda marca a ruptura/ amarração entre reconstituição ficcional e registro documental” (SARNO, 2001, p. 42). Segundo ele, “Oh Mana deixa eu ir” é o canto da ficção, a fuga de Zé bento à “liberdade”. No transporte da cerâmica para a feira ou da feira para o Talhado podemos ouvir a mesma música só que dessa vez sem voz, apenas com o solo de violão, que deixa nas entrelinhas a idéia de que o mito está presente no cotidiano da comunidade do Talhado na realidade atual. Além disso,

A montagem do solo de violão sobre as cenas de deslocamento Talhado/ cidade e cidade/ Talhado, que os moradores realizam a cada semana e que replicam o caminhar do herói fundador no mito, amarra a ficção ao documental, o mito à realidade (SARNO, 2001. p.43).

A orquestra de pífano, por sua vez, recobre a parte documental em especial nas cenas das mulheres trabalhando com a cerâmica e o trabalho de Zé Bento na construção da casa, ou seja, “a imagem narra o mito e o som indica que se trata de um registro documental atual”, como nos mostra Sarno. Já nas cenas da feira não existe registro sonoro e sim som ambiente.

O filme ainda apresenta uma narrativa linear e um tom de denúncia sobre as condições precárias que aquelas pessoas são obrigadas a viver, o que pode ser observado pela análise da própria narração em off transcrita a seguir:

Naquele dia em meados do século passado, Zé Bento resolveu partir com a família a procura da terra onde pudesse viver. Fugia da servidão da antiga escravatura.

A jornada era árdua e sem descanso, após as noites frias, os dias ensolarados.

As andanças de Zé Bento por fim terminaram com o encontro da água. Na chapada desértica e sem vida fixou-se com a família.

A morte pela estiagem espalhou-se sobre o campo fecundado de algodão, mas Talhado resistia à seca, ao isolamento, à pobreza…

Depois da libertação, os antigos escravos tinham conhecimento da existência do sítio de Zé bento, na Serra do Talhado. Muitos tomaram a direção daquelas terras, apoderando-se das áreas devolutas, surgindo as pequenas propriedades até os dias de hoje.

Olhando o plantio de algodão, Talhado procura na argila o único meio de subsistência, na indústria primitiva do fabrico de objetos domésticos, onde a mulher é a única operária.

Terminado o trabalho semanal, resta um dia de caminhada para alcançar a feira mais próxima, a de Santa Luzia do Sabugi. Uma semana de serviço rende para cada família do Talhado de 300 a 400 cruzeiros.

As estiagens prolongadas, o analfabetismo, a fome, o isolamento, obrigam-os a uma vida primitiva, a um sistema econômico improdutivo que formam um inevitável ciclo vicioso: Da terra calcinada às feiras livres e desta ao convívio isolado e pobre da região, ao trabalho da cerâmica. Talhado é um estado social a parte do país. Existe fisiograficamente, inexiste no âmbito das instituições[6].

As imagens do Nordeste em Aruanda também são elementos que ajudam a determinar a “voz” do documentário. Primeiro porque trata-se de imagens de uma região que, nessa época estava longe de ser o cenário principal das grades produções cinematográficas, que ocorriam preferencialmente em estúdios e na região Sul e Sudeste do país. É, portanto, um filme que vai buscar numa região de pouca visibilidade a história de um povo até então desconhecido, sob uma perspectiva de denúncia social a partir da representação das mazelas sociais vividas pelos moradores da Serra do Talhado.

Apresenta um Nordeste problematizado pelas conseqüências da escravidão negra no país, pelas dificuldades com o clima árido e a vegetação da caatinga, pela economia desenvolvida a partir do trabalho de mulheres na fabricação de utensílios de cerâmica e pelos elementos que vão se tornando característicos da região nordestina. Esses elementos compõem todo o cenário do documentário, a família negra e pobre, as vestimentas, a criança nua sob um sol extremamente quente, os pés que pisam os pedregulhos sem nenhum calçado ou proteção. Há ainda o jumento que ajuda no transporte das vestimentas e utensílios, tanto na fuga, quanto para chegar à feira, as panorâmicas realizadas para mostrar o ambiente inóspito, a própria vegetação que é sempre focalizada, as casas feitas de barro e a música regional que acompanha toda a narrativa. O Nordeste é também representado pelo próprio diretor, já que se trata de um nordestino, que fala sobre o Nordeste diretamente da própria região e com atores sociais que residem no local.

Considerações Finais

A partir do que já foi colocado, podemos então, encarar Aruanda como um curta-metragem em que as características do documentário são predominantes e nos quais a ficção também está presente, inclusive, para que possamos entender que ficção e não-ficção misturam-se para que um recorte da realidade seja representado, a partir da visão de mundo de um indivíduo, uma equipe ou uma instituição.

Como já foi discutida, a realidade nos documentários é, portanto, documentada de forma parcial, já que a história ganha outros significados e a ela é atribuída um ponto de vista próprio. Logo, não se trata de uma representação mimética do real, mas de um processo retórico que visa convencer o espectador.

Aruanda foi lançado em pleno movimento Cinemanovista. Assim, representa, apresenta e inventa um Nordeste permeado pela fabulação, pela  miséria e pelas dificuldades com a seca. E como coloca Marília Franco em seu texto Liberd – Aruande, ao citar Drummond, “Uma coisa são sempre duas: a coisa mesma e a imagem dela”[7], o que nos leva a concluir que, Aruanda evidencia maneiras diferentes de se olhar o Nordeste, ou seja, nos mostra que o cinema documentário não é a própria realidade, mas a representação dela.

Referências

ANDRADE, João Batista de e BERNARDET, Jean- Claude. Aruanda. Caderno do Ciclo de Cinema Brasileiro – Grêmio Politécnico/ Departamento Cultural sem ano.

BALTAR, Mariana. Estética documentária, uma questão da memória discursiva. IN: FABRIS, Mariarosaria [et al.]. Estudos Socine de Cinema, Ano III. Porto Alegre: Sulina, 2003.

BERNARDET, Jean-Claude. Aruanda. IN: Aspectos Históricos do Cinema Mundial e Brasileiro. Grêmio politécnico Cinemateca Brasileira, 1962.

BILL, Nichols. Introdução ao Documentário. Trad. Mônica Saddy Martins. Campinas: Papirus, 2005.

CORSEUIL, Anelise R. Um lugar chamado Chiapas: a interseção entre o ficional e o real no documentário. IN: FABRIS, Mariarosaria [et al.]. Estudos Socine de Cinema, Ano III. Porto Alegre: Sulina, 2003.

DA-RIN, Silvio. Espelho Partido: Tradição e transformação do documentário. São Paulo: Azougue, 2004.

FALCONE, Fernando Trevas. A crítica paraibana e o cinema brasileiro – Anos 50/60. CTR – ECA – USP, 1995.

FILHO, Luiz Augusto Rezende. O uso da noção de representação na teoria do documentário. IN: JR., Rubens Machado [et al.]. Estudos Socine de Cinema, Ano VII. São Paulo: Annablume, 2006.

LABAKI, Amir. Introdução ao documentário brasileiro. São Paulo: Francis, 2006.

LEAL, Wills. O Nordeste no Cinema. João Pessoa: Editora Universitária, 1982.

MENEZES, Paulo. O cinema como representificação: verdades e mentiras nas relações (im)possíveis entre documentário, filme etnográfico e conhecimento. IN: FABRIS, Mariarosaria [et al.]. Estudos Socine de Cinema, Ano III. Porto Alegre: Sulina, 2003.

RAMOS, Fernão Pessoa. Cinema Verdade no Brasil. IN: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (org.). Documentário no Brasil: Tradição e Transformação. São Paulo: Summus, 2004.

___________________. O que é documentário? disponível em http://www.bocc.ubi.pt/_listas/tematica.php?codtema=42, acesso em 02/12/2006.

ROCHA, Glauber. Aruanda (Noronha e Vieira) – Jornal do Brasil – 6/08/1960 sem página.

RUIZ, Adilson. Vera Cruz e Cinema Novo: Matrizes da produção Cinematográfica atual. IN: CATARI, Afrânio Mendes [et al.]. Estudos Socine de Cinema, Ano IV. São Paulo: Panorama, 2003.

SARNO, Geraldo. Linduarte Noronha: Aruanda. In: Cinemais – Revista de Cinema e outras questões audiovisuais, nº 28 março/ abril, 2001.

VIANY, Alex. Cinema Novo, ano 1 – 1962. IN: AVELLAR, José Carlos (org.). O processo do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999.

XAVIER, Ismail. O Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Paz e Terra S/A, 2001.


[1] Ver DA-RIN, Silvio. Espelho Partido. São Paulo: Azougue, 2004. 448 p.

[2] Caderno do Ciclo de Cinema Brasileiro – Grêmio Politécnico/ Departamento Cultural – Responsável: Ismail Xavier, Pág. 43 sem ano. (Arquivo da Cinemateca Brasileira- São Paulo).

[3] ROCHA, Glauber – Jornal do Brasil 6 de Agosto de 1960 sem página. (Arquivo da cinemateca Brasileira – São Paulo).

[4] Letreiro inicial retirado do filme Aruanda.

[5] Caderno do Ciclo de Cinema Brasileiro – Grêmio Politécnico/ Departamento Cultural – Responsável: Ismail Xavier, Pág. 43 sem ano. (Arquivo da Cinemateca Brasileira- São Paulo).

[6] Narração em off retirada do filme Aruanda.

[7] Liberd – Aruande: Ensaio de Marília Franco disponível em: http://www.mnemocine.com.br/aruanda/aruandapormarilia.htm

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Este post tem um comentário

  1. Author Image
    NONATO NUNES

    A propria palavra “documentário” já não nos remete a um realismo completamente separado da ficção? Podemos comparar “Cabra Marcado para Morrer” com “Titanic”, por exemplo? Creio que o gênero Documentário está completamente separado de uma obra de ficção. Caso eu esteja errado, por favor me escrevam. Aguardo resposta.

    NONATO NUNES
    João Pessoa, Pb

Deixe uma resposta