Linguagem cinematográfica: Concurso de Inteligência ou Experiências Sinestésicas?

Luciene Belleboni: Psicóloga (UNIMEP); Especializada em Música e Indústria Cultural (UFB) e Mestre em Ciências da Comunicação pela USP/ECA. Professora universitária desde 1995 na área de áudio em Cursos de RTV . Orientadora na mesma área do Projeto Experimental de RTV – UNIMEP desde 1999. lucienebellebonister@gmail.com

Resumo

A sociedade contemporânea apresenta uma extensa gama de produtos cinematográficos, porém integra suas linguagens constituintes em diferentes níveis de resolução. Na Era denominada da Imagem, assistimos e escutamos a diferentes formas de relação entre som e imagem: em alguns casos a submissão dos sons à imagem, em outros o domínio do som e, em poucos o diálogo entre essas expressões.

Palavras-chave: cinema, som, níveis de resolução

Linguagem cinematográfica:

Concurso de Inteligência ou Experiências Sinestésicas?

Em 2002, sob orientação da Professora Doutora Maria Cristina Costa, concluí no Departamento de Comunicações e Artes da ECA da Universidade de São Paulo, a Dissertação de Mestrado intitulada Com-Paixão: As Relações entre o Som e a Imagem no Audiovisual Contemporâneo.

A pesquisa realizada para a elaboração desta dissertação partiu da premissa que a sociedade contemporânea apresenta uma extensa gama de produtos audiovisuais, no entanto, aqui nos deteremos a linguagem cinematográfica. Independente do formato constatamos que integra suas linguagens constituintes em diferentes níveis de resolução. Foi observado, igualmente, que na Era denominada da Imagem, assistimos e escutamos a diferentes formas de relação entre som e imagem: em alguns casos a submissão dos sons à imagem, em outros o domínio do som e, em número menor o diálogo entre essas expressões.

Arlindo Machado, afirma em seu livro Pré-cinema e Pós-cinemas:

“Se existem histórias mal contadas, a do cinema deve ocupar um lugar destacado entre elas… Se as histórias do cinema são tão arbitrárias, podemos obviamente contar outras histórias, de modo a tentar resgatar experiências que foram marginalizadas e traçar uma linha de evolução que permita rever o cinema de outros ângulos”. (MACHADO: 1997, p.153-154)

Na continuidade do texto, Machado aponta que há outra maneira de contar a história do cinema – a partir de Thomas Edison (1877): “a primeira idéia de Edison foi criar bonecos falantes, pela incorporação do fonógrafo ao interior do corpo” (MACHADO: 1997, p.154). Assim, iniciar pelo cinematógrafo dos irmãos Lumière (1895) seria desconsiderar o fonógrafo que já experimentava, mesmo sem êxito, a integração entre imagens e sons. Começar pelo fonógrafo – toca discos – nos permitiria rever a história do cinema e refletir sobre as teorias que o compreendem como uma arte essencialmente visual.

Considerando-se preciosa a leitura de Machado, porém sem adentrarmos em pormenores nessa discussão, a intertextualidade no cinema estabeleceu-se, inicialmente, com a música ao vivo, depois com o fonógrafo de Edison e com o pregão, que narrava a história ao lado da tela, guiando a audiência na recepção das imagens2.

Posteriormente, a sincronia entre o imagético e o sonoro foi sendo concebida através de experiências com as invenções dos equipamentos como o Kinetophone, Cronophone, Cameraphone, Phonofilm e Vitaphone. A evolução desse sistema deu-se através de aparelhos como Movietone, Photophone, Tobis-Klangfilm que possibilitaram a gravação e reprodução de som em película. Para a edição de som foi utilizado o Interlock e como sincronizador, a Moviola. (MENDES, 1993).

Com relação à origem da (re)aproximação das linguagens, a adoção do acompanhamento musical no cinema “mudo” apresenta vários argumentos. Segundo Cláudia Gorbman (CARRASCO: 1993), eles podem ser classificados em históricos, pragmáticos, psicológicos, antropológicos e estéticos, em que a música simula uma atmosfera de realidade para a ação representada e supre acusticamente o sentido de profundidade que, visualmente, o filme não possuía.

Enfocando, então, esse argumento, na fase do cinema sem diálogos sincronizados, o acompanhamento musical ao vivo, que ia de um piano solo a uma orquestra3, tinha como repertório a música tradicional, especialmente a do Romantismo e não apresentava uma preocupação que relacionasse o conteúdo musical ao conteúdo narrativo. A seleção musical, que era feita pelos músicos responsáveis pela sala de exibição, baseava-se no princípio associativo entre imagem e som. Mas essa associação era escolhida através do título da obra musical. “Segundo relatos da época, era comum acompanhar cenas à luz do luar com o Adágio da Sonata ao Luar de Beethoven…”(CARRASCO: 1993, p. 24). Esta forma de conceber a relação imagem/som desencadeou a ausência de uniformidade, pois cada sala de exibição executava uma música diferente interferindo na mensagem e recepção do filme.

Outra característica dessa época foi a improvisação, que era utilizada tanto como transição entre os diversos momentos da seleção musical como também para preencher lacunas entre o acompanhamento musical e o filme. Posteriormente, iniciou-se a utilização de trechos de obras distintas, fragmentando a seleção musical, porém contribuindo para a aproximação entre aquilo que se passava na tela e a música, começando, assim, a estabelecer uma nova relação entre imagem e som. Um dos motivos dessa fragmentação foi atender aos interesses dos realizadores de filmes que, no momento da distribuição, sugeriam músicas específicas para o acompanhamento dos mesmos.

Coletâneas musicais, planilhas, partituras com músicas compostas especialmente para os filmes são elementos deste trecho da história. Em seguida, os realizadores começaram a definir a música que deveria acompanhar o filme, possibilitando uma padronização para a obra cinematográfica (cf. CARRASCO: 1993, p.28).

David Wark Griffith, no filme O Nascimento de uma Nação, faz uso, pioneiramente, de unidades temáticas – leitmotiv – recorrentes ligadas a personagens ou situações específicas e deixa, também por essa experiência, seu marco na história do cinema nesta técnica.

Portanto, durante toda essa primeira fase caracterizada pela experimentação – se assim podemos dizer -, por mais adequada que fosse a execução musical durante a projeção dos filmes, o som era apenas um acompanhante das cenas, antecipando ou não a atmosfera dos próximos planos (cf. PEREZ, 2001). Assim sendo, a música inicia-se com a função de fundo musical e termina com a distribuição da partitura junto à película, por integrar-se ao produto final. Mesmo diante de um processo intricado, a presença da música passa, desde então, a ser imprescindível à apresentação fílmica.

Devido à dificuldade de adaptação das tecnologias que permitiram a sincronização do som à imagem, a música passa temporariamente a ser colocada em segundo plano.

Ainda nos baseando nas assertivas de Carrasco, os diálogos, a música e sons naturalistas eram realizados ao vivo durante a filmagem. Assim, a música, que no cinema “mudo” preenchia o espaço sonoro do filme, foi condicionada a conviver com diálogos e ruídos. Nessa concorrência, a música ficou em grande desvantagem. Carrasco afirma que haviam duas maneiras básicas de utilização das músicas nos filmes de então. A primeira utilizava a música como acompanhamento, abolindo os diálogos e sons naturalistas. A segunda opção evitava a utilização de músicas nos filmes e quando não fosse possível bani-la, ela deveria obedecer aos padrões do realismo vigente à época (cf. PEREZ: 2001).

Os primórdios do cinema sonoro trouxeram dois filmes considerados símbolos da ruptura com o cinema “mudo”. A película de Alfred Hitchcock, Chantagem e Confissão, de 1929, que, planejada inicialmente para o cinema “mudo”, foi convertida em sonora durante a produção. O outro filme foi a produção alemã Anjo Azul (The Blue Angel), de 1930, que, tendo em vista a necessidade da música ser gravada ao vivo, os momentos musicais são todos inseridos na própria ação filmada.

Apesar da música não ser o foco das atenções, o cinema não conseguiu sustentar-se enquanto linguagem sem utilizar-se dela. É importante observar, mais uma vez, que foi reforçada a idéia de que a música havia se tornado parte indispensável do texto fílmico.

Destacamos que é complexo conceber, até hoje, a ausência de matrizes sonoras em tais produtos, mesmo porque o uso intencional do silêncio é um indicativo de efeito significativo de sentido sonoro e da presença/ausência de um discurso.

Após esse sucinto recorte sobre o período inicial da convivência entre as linguagens sonoras e imagéticas, verificamos que desde o início da história do cinema, o som foi submetido aos imperativos da imagem, expressando, de certo modo, a hegemonia da imagem e do visual que caracteriza a cultura da passagem da Modernidade para a Contemporaneidade.

Assim, a trajetória da incorporação do som nessa arte sincrética apresentou-se complicada, suscitando discussões sobre o modo pelo qual o som estava sendo empregado. S Eisenstein, V. I. Pudovkin e G. V. Alexandrov publicam a respeito, em 1928, a Declaração – Sobre o futuro do cinema. Eisenstein foi um dos primeiros na tentativa de conceituar teoricamente as questões referentes à articulação fílmica sob o ponto de vista técnico, buscando seus fundamentos na terminologia própria à música, que àquela altura já se encontrava bastante desenvolvida (cf. PEREZ: 2001, p. 89). Esse manifesto defendia o uso contrapontual entre o som e a imagem.

Em 1929, René Clair criticou o surgimento do cinema falado, mas aceitou o cinema sonoro uma vez que geraria um novo método de expressão a partir da assincronia entre imagem e som. Clair ressalva que seria através da organização dos sons, de sua cuidadosa seleção e da interpretação dos ruídos que o significado da imagem seria melhor explorado. Maurice Jaubert, em 1937, escreveu sobre a necessidade da música representar seu próprio papel: esclarecer com lógica e realismo a narrativa da história e trazer para o filme sua própria poesia, tal como acontecia com o argumento, com a edição, com o decor e com a fotografia (cf. CAVALCANTI: 1939, p.10).

Embora alvo de críticas, S Eisenstein, V. I. Pudovkin e G. V. Alexandrov, R Clair e M Jaubert demonstram, através de seus apontamentos, uma preocupação com a forma em que estava ocorrendo a (re)aproximação entre as linguagens sonora e imagética nesse, então, novo meio de comunicação (cf. CARRASCO: 1993).

Posteriormente, surgem trabalhos com a síntese das funções que a trilha musical podia exercer em relação à totalidade do filme, o que estabeleceu princípios teóricos guiando a produção musical no cinema. “Normalmente, o critério para a elaboração dessa síntese é o da indução: música pode servir para…” (CARRASCO: 1993, p. 91). Carrasco apresenta as conceituações de The tecchnique of film music, classificadas como música de ação, cênica e de lugar, de época, para tensão dramática, de comédia, para emoção humana e em filmes de animação ou especializados. Em Film Music – a neglected art, há uma listagem das várias funções que a música pode desempenhar. Entre elas, criar uma atmosfera mais convincente de tempo e lugar, sublinhar ou criar refinamentos psicológicos e servir como um tipo de fundo neutro de preenchimento. Além disso, pode contribuir com o sentido de continuidade de um filme e prover a sustentação para a construção dramática de uma cena, arrematando-a com um sentido de finalização.

O autor faz uma análise desse tipo de abordagem e aponta que essas funções, embora apresentem contribuições, não permitem delimitar o modo pelo qual essa música se integra à narrativa do filme. Afirma que, partindo do ponto de vista da trilha musical e não do cinema, esses trabalhos colocam a música sobre o filme mas não a consideram parte constitutiva dele. (CARRASCO, 1993).

Eduardo Mendes afirma que, nas décadas de 50 e 60, somente o imagético foi alvo de estudos, já que a maioria dos críticos e teóricos compreendiam o cinema como uma arte essencialmente visual tendo o som a mera função de acompanhamento. No mesmo sentido que Pudovkin, Mendes destaca que além do estudo sobre o som cinematográfico ficar restrito à trilha musical e ao início do cinema sonoro, houve uma grande defasagem entre os métodos de gravação e reprodução do som cinematográfico e a evolução da sua linguagem de análise (cf. MENDES: 1993).

Foi no final da década de 70 e início dos anos 80 que Daniel Percheron, Bordwel e Thompson e Gerard Betton propuseram novas formas de análise que abordassem a integração dos elementos visuais e sonoros na discussão da obra cinematográfica4. Ruggero A. Ruschioni, ao discutir as questões sonoras do audiovisual, aponta a deficiência de artigos que enfocam o som, a música e a integração audiovisual demonstrando um descuido para com essa produção. Ruggero cita Claude Baiblé, Michel Chion, Andersen, Gorbman, Prendergast e Simeon como autores que, no final dos anos 80, problematizaram a predominância da linguagem imagética à sonora no audiovisual mediado eletronicamente. (cf. RUSCHIONI: 1999, p. 19).

A discussão sobre as formas de convivência entre as linguagens imagética e sonora permanece até os dias atuais, sendo debatida por diversos estudiosos e por diferentes pontos de vista.

Ao discutir a Linguagens dos Sons no seu livro O cinema ou o homem imaginário, Edgar Morin assinala que na maioria das vezes a música significa a imagem e a imagem significa a música, remetendo a “uma espécie de concurso de inteligência” (MORIN: 1980, p.163). Logo, considera que a trilha musical seja inerente ao cinema, “como que seu banho alimentício” (IDEM).

Ao dedicar à trilha sonora um enfoque semelhante, Eduardo Mendes inicia sua dissertação de mestrado refletindo que se houver um pensamento articulado entre os fenômenos imagéticos e sonoros haverá uma maior capacidade da transmissão de informações, o que nenhum dos dois elementos conseguiria separadamente (cf. MENDES: 1993).

Assim como Machado, citado inicialmente, Roy Armes, em seu livro On Vídeo, ressalta que as origens do cinema são vistas como oriundas exclusivamente da fotografia em que a primazia da imagem é intocável, com o som entrando apenas no final da década de 1920 e ainda para suplementar o visual (cf. ARMES: 1999, p. 19)

Na mesma postura dos autores acima citados, Arlindo Machado, no texto O fonógrafo visual, aponta a escassez de trabalhos que abordam sobre as relações de sentido estabelecidas pela inserção da música. Observa também sobre a deficiência de termos técnicos relacionados à produção musical do audiovisual se comparadas às produções imagéticas – movimentos de câmera, enquadramento, recortes de quadros, profundidade de campo e outros (MACHADO: 1997, p. 178-179).

No texto Música como (P)arte da narrativa, o maestro e diretor musical de televisão Júlio Medaglia inicialmente atribui à música uma função descritiva, seja ela feita para televisão, teatro ou cinema. Essa visão parece reduzir as possibilidades da música. Todavia, no decorrer do texto, complementa seu ponto de vista, considerando-a como uma terceira e efetiva dimensão narrativa, como um importante veículo de informações, de idéias no desenvolvimento do roteiro da ação. Medaglia critica seu uso como mero fundo musical, uma vez que sua semântica é tão expressiva como a da literatura e das artes visuais. O autor postula a necessidade de uma mudança de concepção por parte dos autores, dos diretores e, inclusive, dos músicos (MEDAGLIA: 1988, p. 274).

Carrasco (1993) aborda sobre as potencialidades do filme, o autor propõe os princípios da teoria dos gêneros (cunhos épicos e dramáticos), da dramaturgia e dos fundamentos da articulação fílmica para a elaboração da trilha musical. Segundo ele, a música é uma linguagem indispensável para instigar a emoção, sendo que toda construção dramática tem por objetivo a busca do pathos, ou seja, atingir o espectador em seus níveis mais subjetivos de sentimento. Assim, a música é responsável por incitar a emoção, atingindo os níveis mais profundos da subjetividade. É a linguagem que, seja por meio dos gêneros épico, dramático ou lírico, tem por objetivo a comoção, uma fonte de êxtase que arrebata o espectador.

Todos esses autores apresentam complementares opiniões sobre a mesma problemática: a superioridade da imagem sobre o som e os prejuízos que essa forma de conceber o audiovisual acarretam para o resultado final da obra. Tais opiniões fundamentam-se na fragilidade dos equipamentos de áudio, na concepção dos envolvidos nessa produção, na ausência de estudos e na própria complexidade da linguagem musical, gerando um quadro que, sob alguns aspectos, esclarece a produção audiovisual hierarquizada nas diferentes mídias.

Sintetizando as opiniões aqui expostas, fazemos referência ao texto de Pedro Nunes:

É preciso antes reforçar a idéia de que a arquitetura sonora, as relações cromáticas e o processo de edição-montagem formam uma espécie de totalidade fragmentária indissolúvel…a arquitetura sonora não existe de forma submissa ao diagrama imagético, nem tão pouco o conjunto de imagens híbridas existentes no filme se articula de maneira superior aos significantes sonoros. Ambos, com suas especificidades estéticas e de articulações sintáticas, formam um território autônomo, sem fronteiras e sem espaços para o lugar comum”. (NUNES: 1994, p.108-109)

Portanto, constatamos que os produtores vêm integrando essas linguagens em diferentes e questionáveis níveis de resolução, do ponto de vista da utilização sonora para efeito estético global desses produtos.

Embora possamos destacar em diversas obras, realizações mais harmoniosas e homogêneas, estamos aqui analisando tendências, levando-se em consideração não só nossa própria experiência e atuação na área, enquanto criadora, bem como a partir de nosso papel reflexivo sobre as teorias críticas que têm se desenvolvido na Universidade e fora dela sobre o assunto.

Antes de encerrar, fazemos menção a algumas manifestações exemplares nas quais se verifica a integração bem resolvida entre som e imagem: Wochenende (1930) de Walter Ruttman e Blue (1993) de Derek Jarman (cf. MACHADO, 2000, p. 156). Embora a proposta de Ruttman tenha sido alvo de críticas como a de Michel Chion – que pela tela vazia enquadra a obra como uma emissão de rádio ou como um exemplo precoce de música concreta – Wochenende propõe um repensar sobre a forma de conceber a relação hierárquica audiovisual, uma vez que convida o espectador a projetar suas próprias imagens através do som (CHION: apud MACHADO: 1997, p. 150).

Como Blue desenvolve-se com o mesmo critério de linguagem, atribuímo-lhes as mesmas considerações. É importante ainda mencionar Ettore Scola que, em 83 dirigiu O Baile com duas horas de imagens encadeadas pela música que de forma predominante narrava a história da Europa na II Guerra Mundial.

Há um nome de destaque – Walter Murch – que, a partir da década de 70, revolucionou a produção sonora no cinema. Para Mendes, o filme O Poderoso Chefão (1972), uma das obras de Murch, rompe com os padrões do cinema narrativo norte-americano de construção da trilha sonora (cf. MENDES, 1993). Essa ruptura refere-se tanto à função dramática como à audibilidade. Tal função verifica-se nos ruídos que deixam de ser um elemento de redundância da imagem, adquirindo a condição de complementaridade, ou seja, acrescentando-lhe informações. Quanto à audibilidade, até então havia uma subordinação da trilha musical à trilha de vozes. Quando não havia falas, a trilha de música adquiria a mesma intensidade da trilha de vozes. Por último, vinha a trilha de ruídos, onde internamente a hierarquia de intensidade estabelecida obedecia à seguinte ordem: ruídos de efeitos, depois os de sala e então, os ruídos ambientais (cf. MENDES, 1993).

Mesmo diante de todas essas inovações, foi em Apocalypse Now (1979) que chegou ao apogeu do uso narrativo do som cinematográfico, pois a trilha de ruídos ambientais declara-se com um caráter absolutamente não-naturalista. Como exemplos citamos os sons ambientais que passaram para a primeira pessoa da narrativa, expressando os estados emocionais e a exteriorização em sons dos estados emocionais e subconscientes dessas personagens. Essa prática desencadeou em uma maior proximidade entre o interlocutor e o filme, na medida em que estabelece códigos narrativos. Além disto, foi em Apocalypse Now que Murch gerou a terminologia desenhista de som – sound designer -, a quem foi designada a responsabilidade de toda a sonoridade da obra. (cf. MENDES: 1993). Essa mudança na equipe de produção é importante, na medida em que expressa uma preocupação técnica com o todo sonoro da obra, o que antes não ocorria.

Norman MacLaren e Arthur Omar são outros exemplos de importantes cineastas. Omar, explora o audiovisual com uma perspectiva sinestésica. Em entrevista à pesquisadora Guiomar P. Ramos, Omar descreve o som e a música como mecanismos poderosos, dizendo que a música provoca uma sensação capaz de ampliar a capacidade do cérebro para questões de ordens abstratas, como o cálculo matemático. Assim, para ele a música ultrapassa a perspectiva leiga, segundo a qual a música erudita inspira imagens poéticas (cf. RAMOS: 1995).

Para Omar, o filme nasce como música, “uma intuição violenta de música (mesmo que não sonora)”. Ele relata que é a partir da análise dessa intuição, que descobre o potencial imagético e auditivo de cada idéia. Como os pilares da visão são formados de matéria auditiva, tal qual o filme, ele intitula esse pensamento musical de imagem sonora (RAMOS: 1995, p. 2). Essa expressão foi traduzida por Ismail Xavier como: a presença dos sons, da voz, do silêncio, da imagem, das letras, da tela escura, da granulação fotográfica e das cores organizam-se, nos filmes de Omar, como música.

Não julgamos, portanto, impossível a integração entre som e imagem no audiovisual, nem o alto grau de resolução musical dessas obras, mas destacamos que, de forma geral, tem havido predominância no trato da imagem em relação ao som e um certo empobrecimento das possibilidades da música na expressão audiovisual.

Dessa forma, através da poética audiovisual desenhada nas obras dos artistas citados, em que se contempla as necessidades estéticas das duas linguagens, observamos que não é freqüente a submissão da música à imagem ou da imagem à música. Verificamos não ser o formato audiovisual e nem seus gêneros que implicam numa hierarquia de linguagens. Assim o audiovisual em si, com seu caráter intersemiótico, não é o fator determinante no estabelecimento da hierarquia imagética.

Entendemos que está na cultura, aqui referida aos valores, às parcerias, à formação, às crenças, às tradições e ao contexto no qual o produtor se insere, seja em nível pessoal, familiar ou social – incluindo as gravadoras, a televisão e a mídia -, a resposta para o nível de resolução da produção audiovisual de um artista. Sempre que houver uma valorização do sonoro, esse será utilizado de forma compatível com suas potencialidades na arte sincrética audiovisual.

Ainda cabe apontar que, entre outros, todos esses criadores trabalham a relação som/imagem de forma criativa, apresentando, ao nosso entender, o que há de melhor qualidade nas produções cinematográficas: o diálogo e a interação entre essas expressões, promovendo uma experiência sinestésica que, ao nosso sentir, possibilita um outro prazer estético, o contato com o sublime. Infelizmente, criadas numa sociedade que valoriza especialmente a imagem, conforme já assinalamos, essas produções, realizadas às margens dos sistemas mercadológicos dominantes, transitam fora do circuito de acesso do grande público, ficando a maioria dos espectadores sujeitos às produções de outras qualidades.

BIBLIOGRAFIA

ARMES, Roy. On Vídeo. Trad. Georg Schlesinger. São Paulo: Summus, 1999.

CARRASCO, Claudiney Rodrigues. Música e articulação fílmica. Tese de mestrado. São Paulo: USP/ECA,1993.

________________________________. Sygkronos. Tese de doutorado. São Paulo: USP/ECA,1999.

CAVALCANTI, Alberto. Filme e realidade. São Paulo: Cultrix, 1939.

DOANE, Mary A . A voz no cinema: a articulação do corpo no espaço. In: ISMAIL Xavier (org.) A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Embrafilme/Graal, 1993.

MACHADO, Arlindo. Pré- cinemas & pós-cinemas. São Paulo: Papirus, 1997.

MEDAGLIA, Júlio. Música impopular. São Paulo: Global, 1988.

MENDES, Eduardo Simões dos Santos. A trilha sonora nos curta-metragens de ficção realizados em São Paulo entre 1982 e 1992. Tese de mestrado. São Paulo: USP/ECA, 1993.

__________________. Walter Murch: A Revolução no pensamento cinematográfico. Tese de doutorado. São Paulo: USP/ECA, 2000.

MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Moraes Editores, 1980.

NUNES, Pedro. As relações estéticas no cinema eletrônico: um olhar intersemiótico sobre A última tempestade e Anjos da noite. Tese de mestrado. São Paulo: PUC/SP, 1994.

PEREZ, Cesar Bargo. Melodrama e Cinema. Seminário apresentado à disciplina Romantismo, Folhetins e Melodrama: a estética da sociedade moderna e contemporânea. São Paulo: USP/ECA, nov. 2001.

PUDOVIKIN, Vsevolod. Argumento e realização. Lisboa: Arcádia, 1961.

RUSCHIONI, Ruggero Andrea. Ambientes unificados para a produção integrada imagem-som em mídia computacional. Tese de mestrado. São Paulo: USP/ECA, 1999.

2 As primeiras exibições cinematográficas ocorreram nas feiras, onde este personagem tentava o diálogo sincronizado à imagem exibida. Quando o filme mudou-se para a sala de cinema, o uso dos pregões tornou-se impraticável por motivos de acústica. Outro motivo de seu desaparecimento foi por começarem a fazer longos comentários, tornando monótona a exibição. (CAVALCANTI, 1939).

3 “Os donos de cinema rivalizavam entre si para atrair o público. Primeiro o piano esteve em moda. Depois um trio…. uma pequena orquestra… numa orquestra sinfônica”(CAVALCANTI: 1939, p.142).

4 A descrição detalhada destas formas de análise encontra-se bem descritas em MENDES: 1993. p. 20-28.

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Este post tem um comentário

  1. Author Image
    Whuhjabjuahuah@hotmail.com

    Vocês deviam mostrar tipos de experiêcias que demostram a função estética expressiva da luz.

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