Only for your ears…

Heloísa de A. Duarte Valente é doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), coordena o Núcleo de Estudos em Música e Mídia (MusiMid) e autora dos livros: Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio (Annablume) e As vozes da canção na mídia (Via Lettera/Fapesp) e Música e Mídia: novas abordagens sobre a canção (Via Lettera/Fapesp). Atualmente, desenvolve o projeto A canção das mídias: memória e nomadismo, patrocinado pela FAPESP.
Contato: www.musimid.mus.br

A música diz, não significa nada além dela mesma!

A música é uma linguagem dotada de características muito particulares e se apresenta em várias facetas. Quando dizemos que é uma linguagem, entendemos que cada linguagem constitui processos comunicativos, que se dão de maneira diferenciada. Por exemplo: o português, o inglês, o espanhol etc. são línguas que compõem o conjunto de linguagens verbais. Nelas existe uma relação instituída social e historicamente que determina significados, ainda que estes mudem ao longo do tempo. Cada significado é assimilado pela comunidade que fala, escreve e pensa nessas línguas. Assim se criam conceitos.

No caso da música, não existe essa atribuição de significados de maneira convencional. A música é composta de sons e silêncios organizados de acordo com leis, cuja origem está na estética de uma época (Barroco, Classicismo etc.), na cultura (as práticas do alto Xingu, do norte da Índia, o flamenco…). Não existe uma relação imediata entre os sons concatenados e o sentido que podem gerar. A escala musical, por exemplo, tem origem na série harmônica, um dado físico estudado pela Acústica, e os sons não podendo ser vistos senão através da sua representação por aparelhos (ciloscópios e outros). Assim sendo, a música está aberta – às vezes, mesmo, escancarada – a qualquer atribuição de sentido que se possa dar a ela, tanto mais ela esteja despojada de elementos intermediários. Pode ser recebida como pura sensação e sentimento, como quando ouvida pela primeira vez. Tanto mais juntamos vivências à experiência da escuta, tanto mais a música estará vinculada a uma semântica particular.

É claro que em casos como a canção, o gênero que mais se ouve na mídia, o texto verbal acoplado – e, portanto, pleno de sentidos convencionados – leva o ouvinte a prestar atenção ao conteúdo do texto. Aí, a música age como um meio dinamizante para a comunicação do texto. Mas se o ouvinte não consegue entender a língua em que o texto está sendo dito: a canção resultará como algo para se deixar levar: dançando, pensando, sentindo… E esse sentir pode conduzir aos mais diversos sentimentos (ódio, tristeza, nostalgia, alegria, medo…) e sensações (vertigem, calor, frio, sono etc.). Experimente-se desenhar ou escrever o que vier à mente enquanto se escuta. Compare-se com outras pessoas e as respostas serão, muito provavelmente, diferentes.

… Mas às vezes, a música quer dizer alguma coisa…

O fato de a música, por sua natureza particular, não querer dizer nada, não impede que ela possa assumir a atribuição de portadora de sentidos. Ocorrem situações em que o ouvinte não apenas consegue conferir um significado preciso a uma obra musical, como também chega a compartilhar um mesmo sentido com outras pessoas. Isso se dá porque o sentido foi dado por convenção cultural. Um exemplo bastante claro é o dos hinos nacionais. O Hino Nacional Brasileiro simboliza o nosso país e isso deve ser entendido pela criança desde a pré-escola. Caso contrário, sua educação para a cidadania começa mal…

Há também um caso muito interessante, o dos profissionais da mídia, que sabem explorar todos os sentidos que a cultura implantou, muitas vezes discretamente, e que colaboram para o reforço de uma mensagem. O sonoplasta, na dramaturgia, no noticiário; o compositor de jingles é uma pessoa que deve conhecer os sentidos, às vezes ocultos, que a música carrega para saber trabalhar sua mensagem. Quando conhece a linguagem musical, sua capacidade de transmitir a mensagem com eficiência aumenta imensamente! Em suma, a linguagem musical, em suas diversas funções (hino religioso ou cívico, canção de ninar, de trabalho, de roda), níveis de elaboração (canção, sinfonia, ponto de candomblé, house etc.), finalidades (entretenimento, cura, estudo…), não quer dizer nada, por si só.

Todos os sentidos que atribuímos a ela são gerados por uma comunidade, ou pela história de vida do indivíduo. É justamente essa particularidade que faz com que a música que pareça enfadonha para uma pessoa, seja relaxante para outra; ou ainda: que uma obra composta para a sala de concerto, como a Sagração da Primavera, de Stravinsky, tenha sido utilizada, com eficiência, como spot para uma série de terror (Calafrio) por uma rede de televisão há uns anos – e a adaptação parece ter sido bem sucedida.

A trilha sonora do cinema constrói a história da música midiática.

Tendo apresentado este breve panorama, cabe, agora, uma breve aproximação: o quanto a trilha sonora original pode apresentar/representar um determinado tempo histórico. Sendo este um tema para várias reflexões, opto por lançar alguns exemplos. Há obras cinematográficas que se esmeraram em criar uma trilha sonora de maneira tal que pudesse corresponder plenamente à época onde se desenrolava a ação. Para citar alguns exemplos, “Barry Lyndon” (1975), de Stanley Kubrik. Com música original de Leonard Rosenman, inclui obras de Bach, Vivaldi, Haendel, Paisiello, que remetem diretamente ao Barroco. Outras trilhas sonoras não seguem o realismo, apostando em liberdades (às vezes excessivas) poéticas. A série televisiva O quinto dos infernos (Rede Globo, 2002)* , cuja trama se desenvolve no Brasil imperial, utiliza a canção Só Louco (Gal Costa) como tema de amor entre D. Pedro I e Domitila de Castro Canto e Melo, a Marquesa de Santos; Raindrops Keep Falling on My Head (B. J. Thomas) é o tema do matreiro Chalaça e Pata Pata (Mirian Makeba marca a entrada da rainha Carlota Joaquina em cena).

Já a série James Bond – Agente 007 constitui uma história à parte. Desde o primeiro longa-metragem oficial de 1962, a composição de Monty Norman com orquestração de John Barry vem passando por várias mudanças no arranjo, adaptando-se à estética da música comercial do período do lançamento do filme. Desde 1997 a cargo do compositor David Arnold, a série James Bond mantém a mesma música-tema de abertura (aliás, parece, o único elemento constante em todos os filmes). O tempo cada vez mais acelerado, as texturas sonoras incluindo maior quantidade de sons rugosos, distorcidos, ruidosos; a presença de efeitos eletroacústicos denota o interesse dos produtores em manter atual, a partir do tema – elemento de maior permanência que o ator que assume o protagonista. Em assim fazendo, a música-tema de James Bond traça um percurso da evolução da trilha sonora original seguindo à estética de uma cultura midiática, ao longo de mais de 40 anos – mais que a evolução dos gadjets tecnológicos sempre apresentados pelo personagem Q (por 17 anos a cargo do ator Desmond Llewelyn, até sua morte) ou toda a tecnologia de ponta que a indústria cinematográfica exibe com luxúria e galhardia. Para além de uma provocação instigante, o tema apresenta-se como um curioso campo de pesquisa, até o momento, inexplorado.

*Outros exemplos: tema de abertura There Is No Business Like Show Business (Ethel Merman); Barco Negro (Mãe Preta), com Ney Matogrosso; I’ve Got You Under My Skin, com Frankie Valli; September (Earth, Wind & Fire): tema de D. Pedro.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Quinto_dos_Infernos

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