Sobre os novos rumos da televisão musical: MTV, YouTube e o “fim” do videoclipe

Thiago Soares é doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), especialista em Cinema pela Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de Los Baños (EICTV – Cuba) e jornalista. Integrante do grupo de pesquisa Mídia & Música Popula Massiva. Autor do livro “Videoclipe – O Elogio da Desarmonia” (2004). E-mail: thikos@uol.com.br.

RESUMO: A partir da reconfiguração da grade de atrativos da Music Television Brasil (MTV), que anunciou extinguir os videoclipes de sua programação em 2007, o artigo problematiza o novo panorama da televisão musical. Identifica-se o alargamento do conceito de emissora de TV musical, que passa a abranger tanto os sistemas produtivos televisivos quanto as plataformas online de disponibilidade de vídeos. Nesta perspectiva, sinaliza-se uma especificidade no conceito de remediação, atrelado ao fato de que um novo meio (a internet) não só age no terreno da televisão musical a partir das lógicas de conservação e ruptura, mas cria elos de dependência.

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O compartilhamento de vídeos através de plataformas digitais (YouTube, My Space, Yahoo! Videos etc.) mudou a dinâmica de circulação dos videoclipes. Antes sujeito às grades de programação e horários das emissoras de televisão musical, o clipe passou a estar arquivado e disponível em sites, problematizando a principal “moeda de troca” da televisão: o “ineditismo”. Aparentemente, este novo cenário de circulação do videoclipe fez com que o diretor de programação da MTV Brasil, Zico Góes, declarasse que “o videoclipe não é tão televisivo quanto já foi. Apostar em clipe na TV é um atraso”. E encenou-se, na MTV Brasil, uma polêmica que colocou em questionamento o futuro deste audiovisual[1]. O anúncio do “fim” de um determinado formato, gênero ou meio é uma “prática” recorrente no campo da Comunicação. No entanto, a despeito de conclusões apressadas ou de “visões futuristas” apocalípticas, este artigo tenta ampliar o espectro de compreensão do fato apontando para a direção tal que ao se discutir o futuro do videoclipe, na verdade, está se encenando um debate sobre as novas configurações da televisão musical.

A discussão requer a visualização dos dois campos de práticas em tensão: a televisão e a música popular massiva[2]. Como estratégia de endereçamento do gênero televisivo, de maneira geral, o videoclipe herda:

1. Aspectos ligados, na televisão comercial, aos números musicais televisivos e todas as suas características ligadas à performance do artista protagonista;

2. Elementos que caracterizariam um uso mais experimental dos recursos audiovisuais, apontando para um universo de práticas próximos da videoarte.

É desta tensão entre se configurar um número musical sobre a performance do artista e um atrativo que experimenta recursos sinestésicos audiovisuais que o clipe se origina. Dos gêneros musicais, o videoclipe imbrica uma série de estratégias discursivas atreladas às dinâmicas da indústria fonográfica, possibilitando, através deste audiovisual, empreender um conjunto de ações que reforcem elementos ligados à autenticidade e cooptação dos produtos musicais em circulação. Acrescente-se à dinâmica dos gêneros musicais no universo de práticas da música popular massiva, as novas configurações de circulação dos produtos musicais, através dos compartilhamentos de arquivos em plataformas online.

Para podermos compreender de que forma o universo de práticas da televisão e da música popular massiva agem sobre o clipe, devemos radiografar este objeto levando em consideração as ingerências de ordem de uma economia política atrelada a este audiovisual. De maneira simplista, o videoclipe serve como alicerce de divulgação massiva de uma canção de um álbum fonográfico. Sua produção se apresenta atrelada ao universo do artista que a obra sintetiza. Clipes de artistas pertencentes a gravadoras são financiados, de maneira geral, por estas instâncias. Aqueles que se encontram fora dos ditames institucionais da indústria fonográfica, grosso modo, também produzem clipes fora destes parâmetros. A problematização da instância produtiva deste audiovisual apresenta três eixos que agem na sua forma de circulação televisiva:

1. Videoclipes podem ser produzidos por meio de verba e contratos com gravadoras, fazendo com que haja uma negociação entre artista e a própria gravadora para a realização do audiovisual e a posterior possibilidade de inserção nas instâncias de circulação televisiva;

2. Podem ser produzidos fora das gravadoras, sem verba destas instâncias produtivas, mas sendo apropriados como material de divulgação pela indústria fonográfica e, através da mediação das gravadoras, tendo a possibilidade de inserção nas instâncias de circulação televisiva;

3. Clipes podem ser produzidos fora das gravadoras, sem verba destas instâncias produtivas e também sem possibilidades de inserção nas instâncias de circulação televisiva.

Diante do quadro visualizado através da compreensão da lógica produção-circulação televisiva dos videoclipes, percebe-se que a entrada das plataformas online de compartilhamento de vídeos é um elemento capaz de problematizar as dinâmicas massivas de circulação destes audiovisuais. O videoclipe não é mais um produto somente televisivo. Passa a integrar as dinâmicas de consumo da “cibercultura” e precisa ser compreendido também através desta lógica. Circunscreve-se um debate que atravessa uma problemática acerca do papel da televisão musical na circulação deste audiovisual e das novas formas de apropriação do videoclipe que passa a ser inserido em gadgets (Ipods, reprodutores de MP3 com vídeo), celulares, videologs, blogs e sites específicos.

A questão pressupõe enxergar uma instância de recepção que atrela conceitos como imediatismo e disponibilidade (no acesso a informações online) em contraponto a aspectos ligados a controle e determinação (no assistir a conteúdos da televisão). A complexidade está em perceber como as características destas duas ações de acesso ao videoclipe pela instância da recepção convergem num modelo de televisão musical que agrega o canal de TV à plataforma online de disponibilidade de vídeos. O percurso argumentativo deste artigo passa pela compreensão do conceito de remediação no campo das práticas da televisão musical e da música popular massiva na cibercultura para, assim, tentarmos compreender as novas dinâmicas de circulação do videoclipe na cultura contemporânea.

Sobre remediação

O conceito de remediação, como proposto por Bolter e Grusin (1999), traduz-se como a propriedade de incorporação de características de um media em outro. A remediação não é inaugurada através dos objetos da cibercultura, mas, nota-se que a problemática ganha relevo na análise de produtos e processos que atravessam as dinâmicas digitais. O princípio da remediação visa traçar considerações sobre de que forma os novos media remetem a elementos dispostos em media anteriores. O conceito auxilia na compreensão das lógicas de circulação que, aparentemente, “inaugurais”, são demonstrativas de processos já anteriormente instaurados, na verdade. A dinâmica da remediação no campo dos produtos musicais já foi discutida por Simone Sá (2005; 2006), que aponta a disseminação dos “tocadores do formato MP3, as trocas de arquivos musicais a partir do advento de ferramentas par-a-par, download de ringtones para celulares, bandas que dispensam gravadoras e divulgam seu trabalho na rede, podcasting; além do incontável número de sites, blogs, listas e comunidades no orkut” (2006: p. 3) como sintomas de uma certa efervescência das práticas musicais na cibercultura. O problema para a autora é compreender, de maneira efetiva, “o que se remedia na cibercultura – ou seja, como as novas tecnologias de audição se imbricam com as anteriores, e quais os pontos de ruptura” (2006: p. 3). Tentando dar um relevo da discussão sobre as dinâmicas de disponibilização de vídeos nas plataformas online, a nossa problemática se encena sobre os possíveis pontos de aproximação e distanciamento deste processo nas dinâmicas de circulação de produtos da televisão musical.

A entrada das plataformas online de compartilhamento de vídeos se configura como uma nova instância de circulação. Ainda a partir dos conceitos de Sá (2006), compreende-se que o processo de formação de uma nova intância de circulação permite visualizar uma gramática do novo meio. Segundo a autora, quatro variáveis são articuláveis: aspectos cognitivos e práticas sociais dos usuários;  linguagens e tecnologias envolvidas na estocagem da informação; aspectos político-institucionais envolvidos na produção-circulação-recepção da informação através dos meios e o contexto macro-econômico em que se insere tal meio (SÁ, 2006: p. 120). Na medida em que nossa argumentação for tomando escopo, os elementos relacionados serão articulados na compreensão dos momentos distintos de observação dos novos caminhos da televisão musical.

Rádio e televisão musical: primeira remediação

Transformar a televisão num meio musical significou, a partir de sua natural disposição audiovisual, potencializar a sua característica de “áudio”, fazendo com que o “visual” fosse atrelado a uma dinâmica dos artistas da música popular massiva. Compreende-se por televisão musical a institucionalização dos processos de produção e circulação de produtos musicais através de emissoras de televisão segmentadas, ampliando assim o espectro de alcance destes produtos que passaram a não só ocupar um único meio, o rádio (áudio), mas se apresentaram de maneira massiva também numa configuração televisiva (visual). Relevante destacar que, antes propriamente do conceito de televisão musical ser disseminado, o cinema já se instaurava como alicerce “visual” dos produtos musicais[3], sobretudo através dos filmes musicais protagonizados por astros da música (The Beatles, Elvis Presley etc.). No entanto, o fator que nos remete ao processo de remediação diz respeito à noção de fluxo: tanto o rádio quanto a televisão organizam suas programações a partir de uma dinâmica ininterrupta de programas, intervalos e atrativos, apresentando gâneros e formatos, além de estruturas de produção, praticamente análogas. A televisão musical se presentifica em canais como MTV, VH1 e congêneres.

Muito se discutia no início da formatação da MTV nos Estados Unidos, em 1981, se a televisão musical seria apenas um “rádio com imagens” (McGRATH, 1996: p. 13). A história das rádios comerciais norte-americanas no final dos anos 70 ajuda a perceber sintomas de aproximação entre os sistemas radiofônicos e televisivos, compreendendo que tais aproximações estariam circunscritas na perspectiva aglutinadora da cultura da mídia (KELLNER, 2002). O ano de 1977 foi particularmente decisivo para tal aproximação: as rádios viviam nos EUA um período de recessão, com suas programações maciçamente voltadas para o público adulto enquanto a indústria fonográfica passava por um período de crise em função das baixas vendagens de seus álbuns. Artistas da soul music e da música country não funcionavam mais como alavancas de vendagens de LPs. Tratando a questão a partir de uma perspectiva econômica, as gravadoras não detinham retorno financeiro com seus artistas; verbas, apoios ou suportes materiais não seriam também repassados para os meios de comunicação de massa. A crise das rádios norte-americanas no final dos anos 70 reverberava na indústria fonográfica. Visualizando esta cartografia, é possível perceber a profunda dependência que, dentro da indústria fonográfica, os meios de comunicação de massa possuem das instâncias produtivas da música popular massiva – e vice-versa. Neste período, as emissoras de rádio funcionavam como um ambiente capaz de gerar circulação para os produtos da indústria da música, apresentando-se como a principal peça da engrenagem de divulgação massiva da música.

Um quadro de novas configurações da circulação de produtos da música, neste momento histórico, se apresenta:

1. Necessidade de um novo ambiente de divulgação dos produtos da indústria fonográfica, uma vez que se vivia uma visível saturação do espaço radiofônico como meio de circulação;

2. Entrada de novos sistemas imagéticos de legitimação do artista no terreno musical, sobretudo o cinema musical e os filmes que se apresentavam como fortes aparatos para a construção do conceito de celebridade na dinâmica do star system musical;

3. Crescimento e progressiva popularização da televisão como eletrodoméstico nas residências, fazendo com que a programação das emissoras de TV tivesse que se apresentar para “toda a família”. São criadas, assim, orientações a partir dos públicos que estivessem “em casa” em horários pré-determinados;

4. A progressiva ocupação de espaços publicitários na televisão por produtos segmentados para mulheres, jovens, crianças e que, de início, não se apresentavam como público-alvo potencial da TV comercial.

A visualização destas variáveis ajuda na identificação das necessidades de implementação de uma televisão musical que tivesse circunscrita no princípio da segmentação e fosse alicerce da formatação imagética do star system no terreno da música popular massiva.

A MTV, emissora síntese da chamada televisão musical, nasce dentro de um contexto de segmentação dos conteúdos da televisão aberta e busca por espaços na televisão por assinatura. A história da TV por assinatura pressupõe enxergar duas fases distintas na sua expansão: a primeira, com vistas a fazer chegar sinais de TV nas mais longínquas localidades e a segunda, de endereçamento segmentado dos conteúdos dispostos. A criação da MTV articula-se a esta segunda etapa de expansão e pode ser percebida a partir do princípio da junção de instituições da mídia[4]. A televisão musical incorpora procedimentos de geração de seus produtos que integram espaços do rádio, da televisão segmentada e das indústrias fonográfica e cinematográfica. As características da televisão musical estariam marcadamente articuladas a uma dinâmica de circulação radiofônica através:

1. Do uso das listas e paradas dos “mais pedidos” artistas ou videoclipes que ocupariam os “horários nobres” de seus principais programas;

2. Da conjunção do chamado single (ou “música de trabalho”) entre rádio e televisão, ou seja, uma canção era divulgada a partir de um único fragmento integrante do álbum fonográfico e imposto pela instância da indústria fonográfica;

3. Do fortalecimento do star system da indústria fonográfica e a importância de formatação de conteúdos concomitantes ao lançamento dos álbuns (reportagens, cobertura de eventos, festas de premiação etc.);

4. Da aparição de uma escala transnacional de exibição do videoclipe, criando demandas até então inexistentes no campo da música popular massiva, o que pode ser compreendido a partir de uma lógica da cultura pop mundial (STRAW, 1993).

Televisão musical e plataformas online: segunda remediação

Compreendemos as dinâmicas de remediação através de uma perspectiva histórica dos meios. Dessa forma, nota-se como a televisão musical herdou uma série de características tipicamente radiofônicas na sua configuração e formatou um modelo de sucesso adotado de maneira massiva por inúmeras emissoras. A própria MTV Networks, administradora da marca MTV, adotou na década de 90 uma política de abertura de “filiais” da MTV fora dos Estados Unidos (McGRATH, 1996). De acordo com este princípio, novas “MTVs” foram “aparecendo”, reforçando um modelo de televisão musical estabelecido pela emissora e consagrando uma linguagem intrinsecamente ligada ao videoclipe e aos ditames da cultura pop. Como atesta Valeria Brandini (2006), “desde a sua criação, em 1981, a MTV Networks apresentou sua imagem pública aos fãs consumidores do rock segundo o seu “discurso único MTV” – uma só linguagem, irreverente e inovadora caracteriza as transmissões em todo mundo” (BRANDINI, 2006: p. 6). Portanto, a abertura da MTV Europa (Inglaterra), MTV Latina (México) e MTV Brasil, entre outras, serviu como alicerce de uma modelização de televisão musical que passou a, também, habitar outros canais, trazendo para a MTV o princípio de “emissora fundadora” de um modelo adotado mundo afora.

É lógico que o modelo de televisão musical incorporado pela MTV, de um “discurso único”, começou a ser problematizado nos anos 90. Viu-se, no terreno musical, uma série de contornos que tiraram do rock a sua aura de gênero musical transnacional e centralizador de um discurso unitário – como pressupunha a própria MTV Networks inicialmente. A aparição de um profícuo cenário de música eletrônica, destacando artistas, DJs e produtores que vinham de países fora do eixo Estados Unidos-Europa, a abertura do mercado da música popular massiva aos elementos étnicos, a ascensão da world music, o fortalecimento do rap e dos artistas que evocavam tradições locais, passaram a tensionar o modelo de televisão musical “de discurso único” proposto pela MTV. É neste esteio que se visualiza aberturas, nas “filiais” da emissora, à criação de produtos que não necessariamente circulariam em todas as MTVs. A MTV Brasil, por exemplo, passou a ser “incubadora” de uma série de programas de televisão fora daqueles instaurados pela modelização da televisão musical (as paradas dos mais pedidos, as listas associativas entre clipes e atrativos da cultura pop, o telejornalismo musical etc.). Desenvolvem-se, na emissora brasileira, programas a partir de gêneros consagrados na televisão aberta comercial: programas de auditório, de debate, de entrevistas, de “tira-dúvidas”, talk shows, que foram reposicionando a MTV Brasil no mercado televisivo brasileiro. Nota-se uma abertura da MTV a um modelo de programação que mesclava atrativos tipicamente oriundos de uma configuração radiofônica com aqueles de marcado apelo televisivo, gerando, assim, produtos marcados pelo hibridismo e por uma televisão que, constantemente, também mudava.

A chegada da internet e a formatação de uma sociabilidade que passa pela cibercultura criou, e ainda o faz, novas tensões na formatação dos produtos musicais. As práticas de produção crescentemente autônomas e independentes das grandes gravadoras como o fenômeno de “napsterização da música” e a apropriação a partir do desenvolvimento do formato MP3, além do universo da circulação dos produtos musicais constituído por sites, listas, revistas, blogs e podcasts dedicados à música (SÁ, 2006), são tensionadores da formatação da televisão musical. Este cenário sinaliza a idéia de que a televisão musical teria que seguir rumo ao natural processo de digitalização de seus atrativos assim como os produtos musicais já se apresentavam.

O processo de remediação da televisão musical nas plataformas online de compartilhamento de vídeos pode ser observado, inclusive, na própria programação da MTV. Programas com a participação do internauta votando nos seus atrativos ou videoclipes preferidos (“Video Clash”), atrativos em que os espectadores deixavam “recados” no site e os textos se presentificavam na tela da TV (“My Own”) ou mesmo vinhetas com vídeos pessoais postados pelos espectadores (“VidaLog”), são indicativos das inúmeras formas de presentificação de uma forma de se relacionar com os atrativos da internet e que atravessavam os programas da televisão musical. Neste caso, é possível avançar e compreender que até a própria configuração da tela da televisão assume características de interface computacional, com “janelas”, “caixas de texto e imagem” e afins. Compreende-se, então, que a MTV adota procedimentos extensivos dos ambientes de compartilhamento de conteúdos musicais na sua programação. O site da MTV é, por sua vez, pautado pelos atrativos da própria emissora. Navega-se pelos programas de TV da MTV (“Ponto Pê”, “Disk MTV”, “Ya Dog!”, “Chapa Coco”) no próprio site e o apresentador, durante o atrativo, faz inúmeras convocações para que se visite o site do programa e, consequentemente, o da MTV.

Compreende-se que não só a televisão musical, mas a própria televisão passaria pelo processo de remediação com a disseminação da internet. Gustavo Fischer (2006) enumera uma série de caraterísticas para se pensar a disponibilização dos produtos audiovisuais na web. A principal diz respeito à diferenciação da noção de “uso” e “apropriação” destes produtos. Para o autor, “o âmbito do ‘uso’ é entendido como focado na colocação de produções por parte dos ‘proprietários’ corporativos[5]“, enquanto que a noção de “apropriação” remete a “um agir individual ou coletivamente por sujeitos ou grupos sem vínculo autoral de origem, por assim dizer, com a produção” disponibilizando este material em fóruns, websites temáticos e páginas pessoais. Destaca-se, em sua argumentação, um princípio norteador da disseminação dos conteúdos online: a desintermediação. Quando se remete à noção de “uso”, Fischer sinaliza para a disponibilização do conteúdo através da intermediação da instância produtiva; na sua idéia de “apropriação”, o autor deixa transparecer a noção de desintermediação. Podemos, então, partir para a compreensão da disponibilidade de conteúdos da televisão musical com base nesses aportes.

Seriam conteúdos da televisão musical: programas, trechos de programas, videoclipes, fragmentos de números musicais, apresentações ao vivo, entregas de premiação musical, entre outros. A partir de quem disponibiliza este tipo de conteúdo teríamos dois eixos sobre o qual poderíamos categorizar as práticas da remediação da televisão musical nas plataformas online de compartilhamento de conteúdo. No primeiro, estariam as plataformas que fazem “uso” do conteúdo da televisão musical, ou seja, os próprios sites das emissoras de TV que disponibilizariam seus conteúdos, além da criação de novas plataformas, em banda larga, que ampliariam a oferta de produtos disponíveis. São exemplos deste primeiro eixo de atrativos os sites MTV, VH1, Multishow, MTV Overdrive. No segundo eixo, aparecem as plataformas que se “apropriam” de conteúdos da televisão musical e disponibilizam através de sujeitos ou grupos desintermediados das instâncias produtivas formatando uma noção colaborativa, como se apresenta em sites como o YouTube, Overmundo, MySpace, entre outros. A compreensão da idéia de “uso” ou de “apropriação” dos conteúdos da televisão musical pelas plataformas online de compartilhamento de vídeos pode sinalizar aspectos ligados à noção de intermediação das instâncias ligadas à indústria fonográfica no processo de circulação dos produtos musicais. Ao mesmo tempo, o efeito de “intermediar” ou “desintermediar” pode ser uma eficiente estratégia discursiva das instâncias produtivas com o intuito de gerar a noção de uma atitude colaborativa do espectador em relação ao meio.

Considerações

O duplo endereçamento – televisivo e musical – do videoclipe está circunscrito numa lógica midiática. Portanto, é possível delimitar produções de sentido que demarquem aspectos ideológicos dos textos, bem como seu alcance comercial (de público-alvo). Pensar o videoclipe a partir da noção dos estudos de gênero significa enxergar as dinâmicas de condições de produção e reconhecimento, os indicativos de possibilidades de produção de sentido e de interação entre os modos de produção, circulação e consumo. A abordagem dos gêneros ajuda a dar conta dos rótulos e das manifestações particulares, bem como do processo de produção de sentido na cultura midiática. Pressupõe-se compreender as manifestações materiais dos videoclipes ancoradas em seus aspectos expressivos e, consequentemente, na materialidade dos suportes em que circulam. As condições de produção e de reconhecimento, as estratégias de leitura e o campo social que abarca a produção do videoclipe também devem ser incluídos numa leitura midiática deste audiovisual. Compreender o videoclipe a partir da chave analítica dos gêneros pressupõe visualizar um entrelugar nas estratégias de produção e no sistema de recepção que está inscrito nos próprios produtos.

Referências bibliográficas

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DANTAS, Danilo Fraga. A Dança Invisível: Sugestão para tratar da Performance nos meios auditivos. In: FREIRE FILHO, João e JANOTTI JÚNIOR, Jeder. Comunicação & Música Popular Massiva. Salvador: Edufba, 2006. p. 55-68.

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KELLNER, Douglas. Cultura da Mídia. São Paulo: Edusc, 2002.

MACHADO, Arlindo. A televisão levada a Sério. São Paulo: Senac, 2001.

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SÁ, Simone Pereira. A Música na Era de Suas Tecnologias de Reprodução. In: FREIRE FILHO, João e JANOTTI JÚNIOR, Jeder (orgs). Comunicação & Música Popular Massiva. Salvador: EdUFBA, 2006.

STRAW, Will.  Popular Music and Post Modernism in the 1980s. In: FRITH, Simon; GOODWIN, Andrew et GROSSBERG, Lawrence. Sound & Vision: The Music Video Reader. New York: Routledge, 1993. p. 3-24.

TESCHE, Adayr. Gênero e Regime Escópico na Ficção Seriada Televisual. In: CASTRO, Maria Lília Dias e DUARTE, Elizabeth Bastos (orgs). Televisão: Entre o Mercado e a Academia. Porto Alegre: Sulina, 2006. p. 73-90.


[1] A discussão tornou-se central, em dezembro de 2006, quando a MTV Brasil anunciou uma nova grade de programação para o ano de 2007 que excluía o videoclipe de seus “horários diurnos”. O videoclipe estaria na programação apenas em horários noturnos, de madrugada, cumprindo a função de “encher” a grade televisiva da emissora. Nos horários mais “nobres”, programas de auditório, de entrevistas, debates, documentários, reality shows, entre outros gêneros, integrariam o conteúdo disponível pela MTV Brasil em seu canal de televisão.

[2] Remetemos à definição de Janotti Jr.(2005) de que, a música massiva supõe as expressões “que se valeram do aparato mediático contemporâneo, ou seja técnicas de produção, armazenamento e circulação tanto em suas condições de produção bem como em suas condições de consumo.”

[3] É preciso considerar a relevância da imagem no campo da indústria da música. Das capas dos discos, para os encartes, os artistas da música passam a criar pequenos filmes que sintetizavam suas canções. Na década de 60, os Beatles fizeram “curtas musicais” para as canções “Penny Lane” e “Strawberry Fields Forever”. Tais filmes tinham circulação restrita, funcionavam apenas como material experimental do grupo. A indústria fonográfica se apropria do dispositivo da imagem com a criação de filmes estrelados por popstars, como Elvis Presley (“Jailhouse Rock” de 1957) e The Beatles (“A Hard Days Night”, de 1964). A relevância da imagem no campo da música é proporcional ao fortalecimento do star system no terreno da música popular massiva. Programas de televisão como o “The Kenny Everett Video Show” e o “Top of The Pops”, que reproduziam a estrutura das paradas radiofônicas no ambiente televisivo, inseriam na programação das TVs abertas, atrativos musicais em apresentações ao vivo, voltadas, de maneira geral, para o público jovem – nova matriz de endereçamento dos produtos da indústria da música.

[4] A emissora nasceu da união de um canal infantil Pinwheel, que mais tarde virou o Nickelodeon, em parecria com a Warner-Amex Cable (a empresa de TV a cabo da Warner) e subsidiada pela financiadora de cartões de crédito American Express. Em 1985, com a gigantesca adesão de clientes aos serviços da MTV, a emissora passou a ser administrada pela Viacom.Inc que, mais tarde, se transformaria na MTV Networks.

[5] O autor usa como exemplo, o Globo Media Center, pertencente à Rede Globo e que dispnibiliza trechos ou programas da própria Rede Globo, através de sua plataforma online. (FISCHER, 2006: p. 2)

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