O APOCALIPSE COMPARTILHADO EM THE WALKING DEAD

THE SHARED APOCALIPSE IN THE WALKING DEAD

Paula Gomes[1]

RESUMO

Esse artigo visa explorar o mundo ficcional da história em quadrinhos The Walking Dead e o processo de adaptação desta narrativa para uma série televisiva. Para atingir tal objetivo iremos analisar o subgênero do Apocalipse Zumbi e sua relação com a narrativa seriada; as mudanças narrativas operadas na adaptação sob uma perspectiva de compartilhamento de universos ficcionais em uma franquia de mídia; e a dinâmica de compartilhamento do universo entre os criadores e os fãs.

PALAVRAS-CHAVE: The Walking Dead; Apocalipse Zumbi; Universos Ficcionais; Franquia de Mídia.

ABSTRACT

This article aims to explore the fictional world of the comic book The Walking Dead and the process of adaptation of this story for a television series. To achieve this goal we will address the themes of the genre of Zombie Apocalypse and its relation to serial narrative, the narrative changes operated in the adaptation from the perspective of shared fictional universes in a media franchise, and the dynamics of the shared universe among creators and fans.

KEYWORDS: The Walking Dead, Zombie Apocalipse, Fictional Universes; Media Franchise

Introdução

O subgênero do terror conhecido como Apocalipse Zumbi surgiu no ano de 1968, com o filme do então cineasta amador George A. Romero, A Noite dos Mortos Vivos (1968), que contava a história de um grupo de sobreviventes em um mundo apocalíptico no qual os mortos começam a voltar à vida para se alimentar dos vivos. Essa premissa, que seria reutilizada por diferentes cineastas, bem como pelo próprio Romero em mais cinco outros títulos, gradativamente foi incorporada por outras mídias, que não só ajudaram a expandir e renovar sua base de fãs, como também, foram responsáveis por injetar novo fôlego ao subgênero.  É o caso dos jogos da série Resident Evil (1996, JAPÃO) do criador Shinji Mikami, e dos livros World War Z (2006, EUA) e O Guia de Sobrevivência a Zumbis (2010, EUA) de Max Brooks. Dentro desse processo de migração, as histórias em quadrinhos permaneciam um meio ainda pouco explorado por essas narrativas, salvo alguns títulos dispersos, como a minissérie da Marvel Comics, Zumbis Marvel (2005, EUA) e a saga da DC Comics, A Noite Mais Densa (2009, EUA) que figuraram como algumas das tentativas contemporâneas de desenvolver histórias em quadrinhos de zumbis para um grande público. Este cenário só sofreu uma alteração com o lançamento do título The Walking Dead pela pequena editora Image Comics em  2003, que, ao atingir no último mês de novembro a edição de número 104, configurou-se como a história em quadrinhos de zumbis de maior expressividade de público já lançada. Escrita por Robert Kirkman, e desenhada por Tony Moore, (que posteriormente foi substituído por Charlie Adlard) o título conta a história da saga de Rick Grimes, um policial de uma pequena cidade dos Estados Unidos que, junto a outros sobreviventes, tenta proteger sua família e companheiros em um mundo pós-apocalíptico dominado por mortos-vivos.

O drama humano em The Walking Dead

Podemos observar que a narrativa de The Walking Dead possui algumas das principais características do subgênero Apocalipse Zumbi, as quais podemos citar a ambientação da história em um cenário pós-apocalíptico, marcado pela destruição das instituições políticas religiosas e sociais; e a exploração dos conflitos que surgem entre os sobreviventes em consequência deste novo rearranjo social. Entretanto, essa narrativa possui um ponto divergência em relação a aquelas que a influenciaram: a opção de focar a narrativa nos personagens e seus conflitos.

A iniciativa de criar uma narrativa de zumbis com enfoque nos personagens se configura como uma inovação no subgênero criado por George Romero, que optou por apresentar em todos os seus filmes personagens claramente alegóricos, representantes de tipos ou classes sociais, que serviam de motor para as criticas sociais que o autor almejava realizar. Deste modo, seus filmes não possuem personagens complexos, capazes de conquistar a empatia do publico, pois este, simplesmente, não era o seu propósito, como indica Wetmore, ao discorrer sobre o primeiro filme de Romero:

Ele é parte pos-apocaliptico, no qual um pequeno grupo de personagens simbólicos tentam sobreviver a um evento que destrói o mundo […] E é parte um filme de horror, no qual um pequeno grupo de personagens simbólicos são mortos um por um por uma ameaça natural ou sobrenatural […] (WETMORE, 2011, p.29, tradução nossa) [2]

Esta opção narrativa de trabalhar com personagens planificados foi amplamente utilizada por outros autores, o que resultou em um desenvolvimento precário de narrativas seriadas dentro do subgênero, pois a maioria dos personagens presentes nessas tramas não sobrevive ao final das histórias, vítimas de seus próprios erros, ou se o fazem, raramente conquistam carisma suficiente para a produção de uma continuação da narrativa. É por esse motivo que a única continuidade que pode ser observada nos filmes de Romero está localizada nos próprios zumbis, que a cada novo título da franquia são retratados de forma mais humana e complexa, em detrimento dos personagens humanos, que sempre são renovados. Ademais, não se pode dizer que essa é uma característica do subgênero apenas em suas versões cinematográficas: basta observarmos a franquia de mídia Resident Evil que também não centra sua continuidade nos personagens, e sim em uma instituição, a Umbrella Corp, responsável pela produção e disseminação do vírus causador da praga de zumbis em todos os títulos da série.

Essa inaptidão para continuidade narrativa dentro do subgênero é apontada pelo próprio criador do título dos quadrinhos, Robert Kirkman, ao se referir aos motivos que o fizeram criar The Walking Dead:

Eu simplesmente amo os filmes de zumbis, simples assim. Um dia surgiu a ideia que eles não precisavam acabar. Não seria legal ver um filme de zumbi que continue e permita que você siga aqueles personagens naquele mundo por anos? Esse esboço inicial de ideia se tornou The Walking Dead.[3]

Para poder produzir essa “história que nunca acaba”, focada no desenvolvimento das linhas narrativas dos personagens, a opção por utilizar-se de uma mídia seriada torna-se uma peça de fundamental neste processo, como explica Bishop “[…] uma mídia de narrativas seriais proporciona espaço para ações extensas, e para o desenvolvimento detalhado dos personagens a longo prazo”. (2011, p.8, tradução nossa)[4]. Deste modo, podemos dizer que, ao optar por construir uma narrativa de zumbis com ênfase no desenvolvimento dos personagens, Kirkman pôde explorar esse gênero narrativo sob uma perspectiva de serialidade, que ainda havia sido pouco explorada por outros autores ou até mesmo por outras plataformas midiáticas.

A série televisiva

The Walking Dead gradativamente se estabeleceu no mercado de histórias em quadrinhos conquistando uma ampla base de fãs, bem como reconhecimento da crítica, com o prêmio Eisner Awards em 2010, na categoria “Melhor Série Contínua”. Neste mesmo ano foi lançada uma série no canal AMC que visava adaptação da história em quadrinhos para a televisão. Frank Darabont, produtor da série de televisão relaciona o sucesso dessa história com uma retomada de interesse do público no subgênero do Apocalipse Zumbi: “Nestes cinco anos, avós começaram a entrar em livrarias e comprar livros de piadas de zumbis para seus netos […] existem bonecos de zumbis. É incrível como isso se tornou uma onda cultural”[5]

Essa nova tendência cultural de resgate de histórias de zumbis é entendida por Bishop como um renascimento do gênero, motivado por um novo contexto geopolítico mundial, favorável ao surgimento deste tipo de história de terror:

Devido aos desastres causados pelas guerras, terrorismo, e desastres naturais lembrarem tão fortemente os cenários dos filmes de zumbis, essas imagens de morte e destruição possuem um maior poder de impactar e amedrontar a população que diferentemente, vem se tornando fatigada com outros tradicionais filmes de terror (BISHOP, 2009, p.18, tradução nossa)[6]

Denota-se então um ressurgimento do interesse pelo subgênero, motivado por mudanças sociais e políticas que possuem similaridades simbólicas com o cenário pós-apocalíptico das narrativas de zumbis, projetando assim uma identificação com as ansiedades contemporâneas. Esse fenômeno possibilitou uma retomada na produção de narrativas do subgênero em múltiplas mídias, que acabou favorecendo a adaptação da história em quadrinhos The Walking Dead para a televisão.

A comunidade de fãs

Em um primeiro momento é preciso ressaltar que uma adaptação nunca será experimentada como um texto autônomo por uma audiência que já esta familiarizada com texto original, como defende Hucheon ao dizer que “Se nós conhecemos o texto original, sempre iremos sentir sua presença refletindo no texto que estamos presenciando” (Hucheon, 2006, p.6[7]). Para refletir sobre essa relação do público com os textos originais e adaptados, Hucheon sugere o termo conhecedor para o público que já teve contato com o texto original e desconhecedor para a audiência que experimenta a adaptação antes do texto fonte. Esses dois públicos irão consumir a obra de formas distintas, portanto, se uma adaptação deseja atingir a ambos, ela precisa contemplar essas duas formas possíveis de leitura da narrativa. (Ibid, p.121).

Ao aplicarmos esse conceito na análise da adaptação de The Walking Dead pode-se observar que, por se tratar de um meio de comunicação de massa e, portanto, precisar de grandes audiências, a série televisiva precisaria não só recorrer à audiência formada pelo público conhecedor dos quadrinhos, como também atrair o público desconhecedor desta história. Deste modo, iremos explorar as estratégias utilizadas para atingir esses objetivos e como elas influenciaram em mudanças na narrativa.

Os fãs da história em quadrinhos

Uma estratégia frequentemente utilizada para conquistar o público conhecedor é o resgate de alguns aspectos da narrativa e personagens do texto fonte que obtiveram grande aceitação desse público. Podemos ver essa estratégia sendo amplamente utilizada na adaptação de The Walking Dead, na medida em que ela resgata alguns cenários icônicos da história em quadrinhos, como a fazenda de Hershel e a prisão, por exemplo, bem como personagens que são considerados os favoritos do público, dentre eles a espadachim Michonne e o vilão Governador.

Outro artifício utilizado tanto em adaptações de textos que já possuem uma comunidade de fãs, quanto em produtos de uma franquia de mídia, é o de aproximar a imagem do criador do texto fonte a todos os conteúdos produzidos posteriormente. Essa ação visa amenizar a ambígua relação entre os fãs e os produtores de determinado mundo ficcional, como aponta Henry Jenkins em seu livro sobre cultura de fãs, Textual Poachers:

Enquanto os fãs demonstram uma ligação particularmente forte com narrativas pop, interagindo com elas de modos que as fazem suas propriedade de certa forma, eles também são dolorosamente cientes que essas ficções não pertencem a eles e que outra pessoa tem o poder de fazer coisas com aqueles personagens que vão em direta contradição com os interesses dos fãs. Algumas vezes os fãs respondem a essa situação com uma veneração respeitosa aos produtores de mídia, e frequentemente respondem com hostilidade e raiva contra aqueles que têm o poder de “reequipar” suas narrativas em alguma coisa radicalmente diferente daquilo que a audiência deseja (JENKINS, 1992, p.24 tradução nossa)[8].

Para que essa relação instável entre os fãs e os produtores possa ser administrada, a aproximação do criador da história original com os outros conteúdos produzidos exerce uma força legitimadora para a comunidade de fãs. Essa estratégia foi amplamente utilizada em The Walking Dead na medida em que o criador Robert Kirkman está constantemente assegurando os fãs de que as mudanças operadas na série estão sendo aprovadas por ele, como pode ser observado nessa entrevista concedida a um site de fãs brasileiros:

Era importante pra mim que desde o primeiro dia as duas versões, quadrinhos e seriado, permanecessem separadas até certo ponto. O seriado segue os quadrinhos, existem tramas bem especificas dos quadrinhos que serão adaptadas no seriado, mas de tempos em tempos eu vou querer surpreender os fãs. Eu posso dizer que qualquer mudança feita no seriado é aprovada por mim, então eu sempre estou lá para me certificar que eles se mantenham fiéis ao tom e a intenção dos quadrinhos. [9]

Os novos fãs

Uma vez mapeadas as estratégias utilizadas para manter a base de fãs dos quadrinhos na transição para a série, analisemos as técnicas empregadas para obter novos fãs para a adaptação televisiva. Para tanto, é necessário observar as mudanças operadas na trama da série, e quais teriam sido as motivações dos produtores para realizá-las, pois à medida que a série progride, novos personagens e percursos divergentes dos quadrinhos estão sendo explorados.

A primeira – e, talvez, mais importante divergência entre as duas tramas até o momento, reside na sobrevivência do personagem Shane, que morre precocemente nos quadrinhos, mas tem sua vida estendida na série. A sobrevida que Shane ganhou na televisão possibilitou uma maior exploração do triângulo amoroso formado entre Shane e o casal Rick e Lori, bem como alterou a dinâmica do grupo de sobreviventes, gerando mais conflitos dramáticos. Outra alteração entre as tramas pode ser apontada na inserção de três novos personagens na série televisiva, os irmãos Merle e Daryl, e o negro T-Dog que protagonizam uma relação pautada pela descriminação racial. Ao analisar essas mudanças na trama original, podemos inferir que elas possuem o intuito de explorar novos pontos de tensão entre os personagens, gerando uma carga dramática mais intensa, e operando, dessa maneira, uma fusão dos gêneros terror e drama dentro da série. Deste modo, os elementos de terror da trama cedem espaço para os conflitos humanos, como o próprio produtor Frank Darabont confirma “É mais sobre os personagens do que os zumbis… É sobre um grupo de pessoas que são forçadas a sobreviverem juntas, a serem uma família, e suportar circunstâncias muito, muito difíceis”[10]. Essa fusão entre os gêneros do horror e do drama já era observado na história em quadrinhos de Kirkman, mas o seriado intensifica essa coexistência formando um gênero híbrido que, segundo Jenkins, marca uma tendência na televisão norte-americana.

Se o sistema de estúdios de Hollywood promoveu gêneros distintos como atrativos consistentes para segmentos especiais de audiência, a televisão americana contemporânea se baseia em um processo que Todd Gitlin (1983) chamou de “recombinação” para expandir o apelo de qualquer programa: “A lógica de maximizar o lucro rápido produziu um híbrido de Hollywood, uma forma recombinante que assume que algumas características selecionadas de hits recentes podem ser emendas juntas para construir um sucesso eugênico” (64). As emissoras então promovem séries que não pertencem a um único gênero, mas sim a múltiplos gêneros, desejando harmonizar a segurança de construir a partir de sucessos do passado, com a novidade que atrai o entusiasmo da audiência[…] (JENKINS,1992,  p. 127, tradução nossa[11])

A ênfase dramática fica mais evidente quando observamos a vinheta de abertura da primeira temporada da série, que nos apresenta uma sequência de imagens de um cenário urbano desolado e vazio, intercalado com retratos de fotografias destruídos dos personagens principais. A figura do zumbi é apenas sugerida pela presença de um corvo se alimentando, mas a cena é mostrada rapidamente, diminuindo seu impacto gráfico e afastando-se do gênero do terror.

Em resumo, podemos dizer que duas dinâmicas diferentes estão sendo operadas na adaptação de The Walking Dead para a televisão: 1- O resgate de elementos da história em quadrinhos, bem como a força legitimadora do criador Robert Kirkman estão sendo utilizados para atrair os fãs dos quadrinhos para adaptação; e 2- a intensificação da fusão dos gêneros terror e drama, seguindo uma tendência da televisão norte-americana contemporânea de desenvolver narrativas que mesclam o familiar com o novo, ao recombinar as características de vários gêneros para torná-las um produto híbrido.

A realidade alternativa da série de televisão

Como já foi dito, a série televisiva The Walking Dead está operando mudanças na narrativa da história em quadrinhos. Essas mudanças, contudo, podem funcionar de maneiras distintas, por vezes atuando como uma forma de exploração das lacunas deixadas nos quadrinhos, ao abordar momentos que não foram explorados, como por exemplo, o drama do personagem Morgan para aceitar a transformação de sua esposa, que foi melhor desenvolvido na série; ou ainda podem ser contrapostas pelas duas narrativa, como a morte prematura do personagem Dale na série, inviabilizando a relação amorosa que ele mantém com Andrea nos quadrinhos, e alterando, portanto o percurso narrativo dessa personagem.

Para entendermos como essas mudanças se articulam no universo narrativo de The Walking Dead, iremos resgatar a análise de Ndalianis sobre as mudanças operadas no universo do Super Homem pela série televisiva Smallville, que representam o que ela chama de um processo de remitologização ou de uma mitologia alternativa à original. Ela compara esse fenômeno ao conceito de multiverso adotada pelas histórias em quadrinhos da Marvel Comics, que possibilitava a coexistência de múltiplas histórias paralelas, pertencentes a realidades alternativas, constatando que a série televisiva criou uma realidade alternativa do universo do Super Homem:

Como em Smalville, cada continuidade, especialmente aquelas que lidavam com as dimensões míticas da história do super herói, foi escrita em cima de versões anteriores. O mito-como-serialidade não se manifesta como uma continuação linear que é típica do seriado, mas como uma serialidade multilinear que frequentemente reconta a mesma história de uma maneira alternativa. No lugar de recusar-se a reconhecer a existência da outra história, cada nova linha narrativa reconhece aquelas que estão abaixo dela, mesmo que seja com o intuito de rejeitá-la. (NDALIANIS, 2009, p. 398-399, tradução nossa)[12]

Aliado a essa questão, o criador de The Walking Dead relata a existência de uma dimensão alternativa entre a série a história em quadrinhos:

Eu olho para as histórias que contei em uma perspectiva diferente e as inverto. Eu posso criar novas coisas porque o show possui personagens, cenas e várias outras coisas que não estão na história em quadrinhos. É realmente como se eu fosse para uma dimensão alternativa e estivesse fazendo um outro tipo de The Walking Dead.[13]

Essa dimensão alternativa que coexiste com a versão original em um mesmo universo ficcional pode ser comparada a uma perspectiva de franquia de mídia, que frequentemente produz múltiplas versões narrativas de um universo. Ao analisar esse fenômeno na franquia Alien, Ndalianis observa que determinado centro narrativo deste universo não é dado como prioritário em detrimento de outro, na medida em que existem múltiplos centros narrativos e essa estrutura policêntrica opera em um processo intertextual e serializado, dependente de uma dinâmica de compartilhamento dentro desses sistemas (2009, p.64).

O processo intertextual a que ela se refere pode ser observado em The Walking Dead na medida em que a história em quadrinhos e a série televisiva se configuram como dois centros narrativos coexistentes e conectados por um compartilhamento narrativo intertextual. Ademais, podemos observar uma complexificação deste intercâmbio intertextual entre a história em quadrinhos e a série televisiva com a especulação que está sendo realizada sobre a possibilidade de migração do personagem Daryl, existente na série, para a história em quadrinhos, estabelecendo desta maneira uma via de compartilhamento intertextual de mão dupla entre esses dois centros narrativos.

O universo da franquia de mídia

Para analisarmos a dinâmica de compartilhamento narrativo operado dentro dessa franquia, utilizaremos o escopo teórico do pesquisador Derek Johnson que defende que a franquia de mídia estabeleceria uma integração horizontal, cujo intuito não seria o de deter um controle vertical sobre um único produto, e sim de expandir a oferta de diferentes produtos no mercado. Este conteúdo é, portanto, entendido mais apropriadamente como uma produção seriada “[…] na qual cada estabelecimento trabalha de forma relacionada às outras, mas procura se diferenciar ao produzir uma sequência ou um bem auxiliar em relação ao último produto realizado […]” (Johnson, 2010, p.9, tradução nossa)[14] Para tanto, ele defende que a franquia precisa trabalhar com o conceito de construção de mundos, retomando a ideia de Jenkins que defende que o “storytelling se tornou a arte de construir mundos, conforme artistas criam ambientes envolventes que não podem ser totalmente explorados ou esgotados em um único trabalho ou mídia” (JENKINS, 2006, p.114. tradução nossa).[15]

Deste modo, um sistema de franquia de mídia estabelece um processo em que os mundos precisam ser compartilhados, negociados entre as diferentes mídias, de forma que um mundo nunca se torne um conceito estático, sólido, e esteja sempre em constante transformação:

Franquias exigem que consideremos mundos compartilhados e a criação compartilhada de mundos em termos da dinâmica relacional entre as culturas criativas que constroem e usam esses mundos a partir de uma variedade de posições institucionais. Nesta criação compartilhada de mundos, franquias precisam ser desenvolvidas pelos seus criadores como sistemas em andamento, visando apoiar uma elaboração conjunta de uma ampla base de coautores. Tal perspectiva pede que consideremos a criatividade não como o desenvolvimento de recursos criativos, mas também como o uso de recursos pré-existentes. (JOHNSON, 2010, p.14, tradução nossa)[16]

Para ilustrar esse tipo de relação, Johnson sugere que imaginemos o design de um mundo de uma franquia de forma similar ao design de um jogo eletrônico, no qual game designers criam um sistema de regras, uma jogabilidade, de forma aberta, que possibilite aos jogadores uma atuação mais livre e de certa maneira imprevisível: “Refletindo sob essa lógica, a criação de mundos dentro de uma franquia pode ser considerada um processo de design para o surgimento, construir um conjunto de recursos que possam ser trabalhados em cima, de forma estruturada porém imprevisível pela rede social que o compartilha” (Ibid, p.14, tradução nossa)[17].

Em relação a essas regras, Henry Jenkins, ao explorar os pontos em que a série The Walking Dead não é “fiel” aos quadrinhos, defende que “os fãs estão prontos para aceitar expansões e elaborações, até mesmo grandes mudanças na continuidade (especialmente aquelas que permitem que elas explorem outros aspectos dos conflitos dos personagens) contanto que elas sejam consistentes com as regras[18] .  Jenkins diz ainda que essas regras seriam estabelecidas entre Kirkman e os fãs nas cartas adereçadas a eles no final das edições da história em quadrinhos. Esse contrato estabelecido entre o autor e os fãs nas edições dos quadrinhos coloca-se como um aspecto importante para a reflexão sobre as regras que norteariam a recepção de um universo ficcional em diferentes mídias, mas torna-se insuficiente na medida em que desconsidera o processo de regulamentação estabelecido entre a própria comunidade de fãs e este universo, que ocorre sem passar pela mediação do criador.

Neste sentido, propõe-se outro método para mapear o sistema de regras que precisa ser seguido no processo de migração de um universo ficcional, que se utilizará do conceito de Mundos Transmidiáveis de Klastrup e Tosca, sobre mundos narrativos que perpassam por diversas mídias:

Mundos transmidiáveis são sistemas de conteúdos abstratos a partir do qual um repertório de histórias ficcionais e personagens podem ser atualizados ou derivados através de uma variedade de plataformas de mídias. O que caracteriza um mundo transmidiável é que a audiência e os designers compartilham uma imagem mental da sua “mundialidade” (uma quantidade de características que diferenciam esse universo). A ideia de uma mundialidade específica do mundo frequentemente se origina da primeira versão do mundo, mas pode ser elaborado e modificado no decorrer do tempo. Frequentemente o mundo tem uma comunidade de fãs que o perseguem através das mídias. (KLASTRUP & TOSCA, 2005, p.1, tradução nossa)[19]

Os mundos transmidiáveis seriam compostos por três características principais, denominadas mythos, topos e ethos. O mythos corresponde as lendas e folclore deste mundo, bem como seus personagens principais e as criaturas exclusivas do mesmo. O topos é definido pelo período histórico e pelo espaço geográfico, e o ethos, os princípios éticos e morais, que vigoram neste mundo (Ibid, p.4). Klastrup e Tosca incluem ainda alguns eventos narrativos como partes constituintes dos mundos, mas defendem que nem todos os eventos do mundo original precisam necessariamente estar presentes em suas outras extensões.

No momento em que aplicamos esta definição, ao mundo de uma franquia, podemos estabelecer que o compartilhamento de mundos em múltiplas mídias precisa ser norteado por determinadas regras, que corresponderiam ao seu mythos, topos e ethos.

Mythos, topos e ethos em The Walking Dead

O mundo ficcional de The Walking Dead narra a saga de Rick Grimes, protagonista desta narrativa e principal elemento constituinte do mythos. Deste modo é necessário que esse personagem esteja presente nos dois centros narrativos da franquia, a história em quadrinhos e a série televisiva.  É importante ressaltar, entretanto, que o principal elemento deste personagem que precisa ser mantido  é a sua personalidade, por isso, os eventos e caminhos que ele percorre podem variar de um centro para outro, contanto que suas ações sejam guiadas pelos mesmos princípios morais. Ao comparar as duas versões de Rick Grimes, nos quadrinhos e na televisão, é possível observar um compartilhamento de personalidades, na medida em que ambos possuem um sentimento ambíguo em relação ao desejo e a obrigação de exercer a liderança sobre o grupo, e têm suas decisões guiadas por um senso de proteção familiar. Nota-se, no entanto, que algumas características desta personalidade estão se modificando no decorrer da narrativa da história em quadrinhos. Essas mudanças também precisarão ser absorvidas pela série, de forma que o personagem percorra essencialmente a mesma jornada, mesmo que por caminhos diferentes.

Podemos notar ainda que a prorrogação da morte do personagem Shane na série não afetou o mythos do mundo na medida em que as novas linhas narrativas criadas na série não colocam a personalidade do personagem Rick em contradição, pois, as decisões tomadas por ele nessa nova situação são condizentes com a sua personalidade da história em quadrinhos.

Outro elemento pertencente ao mythos é o conjunto de características específicas da infestação de zumbis neste mundo, como, por exemplo, o fato de não ser necessário ser mordido por um zumbi para tornar-se um, pois todos os vivos já estão infectados; e a ausência de explicações para os motivos que causaram essa infestação. Podemos notar que a série manteve essas duas características ao analisarmos o último episódio da primeira temporada da série, TS-19, no qual o grupo liderado por Rick chega ao CDC (Centro de Controle de Doenças) e é recepcionado pelo Dr Edwin Jenner, último cientista restante no laboratório, que revela que ainda não existe uma explicação para a contaminação e confidencia a Rick que todos os sobreviventes já estão contaminados.

O topos de The Walking Dead estabelece-se como um mundo situado em uma realidade contemporânea, afetado por uma epidemia de zumbis. Contido neste panorama geral, pode-se observar um topos formado por elementos geográficos específicos, constituído por alguns locais icônicos que serviram como uma ambientação mais específica dos arcos narrativos da história, como o acampamento em Atlanta, a fazenda de Hershel, a prisão e a comunidade do Governador, Woodbury. Podemos notar que, na tentativa de situar geograficamente o universo dos quadrinhos na série televisiva, esses locais são mantidos, mas outros locais também estão sendo adicionados ou excluídos na versão seriada, oferecendo uma nova chance de exploração do território do universo. Um exemplo deste fenômeno seria a utilização do prédio do CDC como cenário da série televisiva, que não havia sido explorado pela história em quadrinhos, apesar de ficar localizado em Atlanta, cidade onde o grupo de Rick monta seu acampamento nas duas narrativas.

O ethos é representado neste universo na forma de uma sociedade pós-apocalíptica na qual todos os protocolos éticos e morais precisam ser reestabelecidos dentro dos múltiplos grupos sobreviventes e são contrapostos uns aos outros na medida em que esses grupos entram em contato. Nesse âmbito, estamos lidando com uma sociedade que se reestabelece essencialmente de forma multifacetada, na qual os códigos de conduta só possuem validade no interior de determinado grupo. Esse código social e moral, fragmentado e instável, é explorado tanto na história em quadrinhos como na série televisiva, ainda que os conflitos narrativos gerados por ele possam ser diferentes nas duas mídias.

Conclusão

No decorrer deste artigo foi possível observar que o processo de expansão de um mundo ficcional para outras mídias, não exige necessariamente uma correspondência narrativa dos eventos ocorridos, de modo que, um mesmo universo pode conter múltiplos centros narrativos, contanto que os protocolos que regem este universo, contidos no mythos, topos e ethos, sejam respeitados.

Observamos ainda que esta dinâmica esta presente na adaptação televisiva da série The Walking Dead, que, ao manter o mythos, topos e ethos estabelecidos nos quadrinhos, ambienta o público dentro do universo ficcional,ao mesmo tempo que opera mudanças no percurso narrativo da série. Essas mudanças possibilitam a exploração de fios narrativos não desenvolvidos nos quadrinhos, que geram realidades alternativas deste mundo, em um processo de compartilhamento de mundos policêntricos, característicos de um sistema de franquia de mídia.

Referências Bibliográficas

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KLASTRUP, Lisbeth e TOSCA, Susana. Transmedial Worlds—Rethinking Cyberworld Design, 2005. Disponivel em: www.itu.dk/courses/DDRT/F2008/25042008-tosca.ppt


[1] Graduada em Comunicação Social pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), aluna do Programa de Pós- Graduação em Imagem e Som na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e pesquisadora das narrativas do gênero Apocalipse Zumbi.

[2] “It is part post- apocalyptic film, in wich a small group of emblematic characters survive an event that  ends the world as we know it and attempts to continue to survive[…]It is part horror film, in wich a small group of emblematic characters are killed off one by one by a supernatural or natural but evil menace[…]

[3]Robert Kirkman em Entrevista concedida ao site Walking DeadBR em 2011

[4] “A broad narrative canvas provides room for expansive action, as well as long-term and detailed character development.”

[5]Entrevista concedida ao livro The Walking Dead Chronicles: The OfficialCompanion Book. Abrams Books, 2011. p.18

[6] “Because the aftereffects of war, terrorism, and natural disasters so closely resemble the scenarios of zombie cinema, such images of death and destruction have all the more power to shock and terrify a population that has become otherwise jaded by more traditional horror films.”

[7] “If we know that prior text, we always feel its presence shadowing the one we are experiencing directly.”

[8] While fans display a particularly strong attachment to popular narratives, act upon them in ways which make them their own property in some senses, they are also acutely and painfully aware that those fictions do not belong to them and that someone else has the power to do things to those characters that are in direct contradiction to the fans’ own cultural interests. Sometimes, fans respond to this situation with a worshipful deference to media producers, yet, often they respond with hostility and anger against those who have the power to “retool” their narratives into something radically different from that which

the audience desires.

[9]Entrevista concedida ao site Walking DeadBR. Disponivel em: http://walkingdeadbr.com/wdbr-entrevista-criador-robert-kirkman/

[10]Frank Darabont em entrevista concedida a Entertainment Weekly.

[11] If the Hollywood studio system promoted distinct genres as consistently appealing to particular audience segments, contemporary American television relies upon a process which Todd Gitlin (1983) has called “recombination” to broaden the appeal of any given program: “The logic of maximizing the quick payoff has produced that very Hollywood hybrid, the recombinant

form, which assumes that selected features of recent hits can be spliced together to make a eugenic success” (64). The networks thus promote series which belong not to a single genre but to multiple genres, hoping to combine the security that comes from building on past success with the novelty that attracts new audience enthusiasm[…]

[12] Like Smallville, each continuity, especially those dealing with mythic dimensions of the superhero story, wrote itself over the previous versions. The myth-as-serial manifests itself not as the linear continuation that is typical of the serial, but rather as a multilinear serial that often retells the same story in an alternative way. Instead of refusing to acknowledge the existence of the other story, each new story thread acknowledges those that lie beneath it even if it is in order to reject it.

[13]Entrevista publicada no livro The Walking Dead Chronicles: The Official Companion Book. Abrams Books, 2011. p.71

[14] […]in that each franchise outlet works in relation to one another, but seeks to distinguish and modulate one sequel or ancillary good from the last […]

[15] Storytelling has become the art of world building, as artists create compelling environments that cannot be fully explored or exhausted within a single work or even a single medium.

[16] Franchises demand that we consider shared worlds and shared world building in terms of the relational dynamics between the creative cultures constructing and using those worlds from a variety of different institutional positions. In shared world building, franchises must be designed by their originators as ongoing systems to support ongoing elaboration from a wider base of co-creators. Such a perspective asks that we consider creativity not just as the development of creative resources, but also as the use of existing resources.

[17] franchise world building can be considered as a process of designing for emergence, of constructing a set of resources that can elaborated upon in structured but unpredictable ways by the social network that shares them.

[18] JENKINS, Henry. 2011. “Making My Peace with The Bicycle Girl: Reflections on The Walking Dead Web Series” Disponível em: http://henryjenkins.org/2011/10/a_conversation_about_transmedi.html

[19] Transmedial worlds are abstract content systems from which a repertoire of fictional stories and characters can  be actualized or derived across a variety of media forms.  What characterises a transmedial world is that audience  and designers share a mental image of the “worldness”  (a number of distinguishing features of its universe). The  idea of a specific world’s worldness mostly originates  from the first version of the world presented, but can be  elaborated and changed over time. Quite often the world  has a cult (fan) following across media as well.

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