Le Journal de Mickey e Le Journal de Tintin – o mercado europeu de HQ dos anos 50

Le Journal de Mickey and Le Journal de Tintin – european market for comic of the 50s

Priscila Gomes Halabi¹

Resumo

A análise comparativa entre edições das publicações de 1952 de Le Journal de Mickey e Le Journal de Tintin nos permite observar suas semelhanças e diferenças em relação à edição e ao conteúdo. Tendo em vista o contexto histórico vivido nesse período, pode-se entender a intenção de tais publicações diante dos consumidores franceses, concluindo-se que, apesar das várias semelhanças, tais produções atingiam  nichos diferentes de consumidores.

Palavras-chave: mercado-hq-tintin-mickey

Abstract

The comparative analysis between the 1952 editions of Le Journal de Mickey and Le Journal de Tintin publications, allows us to see similarities and differences beyond editing, and content. Given the historical context, one can understand the intent of such publications on the french consumer. It can be concluded that despite the many similarities, such productions reached different types of consumers.

Keywords: market-comic-tintin-mickey

Introdução

Para Adam Smith, economista clássico do século XVIII, o produto cultural era fruto de um trabalho não produtivo, isso porque, para ele, não gera riqueza à nação uma vez que não gera produtos úteis à população (2007, BENHAMOU, F., p.15). Contudo, percebeu-se depois que o produto cultural supre certas necessidades e desejos, e por isso está inserido no mercado, é consumido e, mais do que isso, influencia o comportamento do consumidor diante de outros segmentos do mercado.

Durante o século XX, com a incidência das Guerras Mundiais, a ascensão do modelo capitalista americano e o confronto ideológico entre esse modelo e o modelo socialista da URSS, a conquista territorial para a manutenção de qualquer um dos modelos econômicos e políticos, e consequente manutenção de um desses países no poder, já não era mais física, como no século XVI, ela era ideológica. Nesse momento, o que objetivava os EUA era impedir a influência soviética sobre os países, os quais de certa forma dominava, e fortalecer o capitalismo (2008, HOBSBAWM, E., p. 15-21)

Nesse contexto surge, em 1934, a edição piloto de Le Journal de Mickey, na França. Uma revista que, apesar de carregar o nome do mais popular personagem estadunidense, causava grande identificação do publico europeu com seu conteúdo, não só pela empatia em relação ao personagem, mas por conta de diversas estratégias que facilitaram a inserção dessa revista na Europa. Mais tarde, outra revista surge com uma proposta bastante similar, o Le Journal de Tintin, em 1948 na França. Dessa vez carregava o nome de um personagem belga na capa, já familiar aos consumidores, pois aparecia desde 1934 nas publicações internacionais das Aventuras de Tintin, feita pela editora Casterman.

Apesar de ambos os enredos carregarem a mesma ideia moral e política, o confronto entre as duas obras se dava porque disputavam um mesmo mercado, o de histórias em quadrinhos francês. Além disso, cada uma trazia consigo, de certa forma, a identidade de uma região, uma era estrangeira e outra não. Esse artigo pretende entender a relação dos dois modelos de revista no mercado europeu, a partir da comparação das edições do ano de 1952, pós guerra, quando Le Journal de Mickey ressurge no mercado tendo zerado suas edições. Visa entender os artifícios editoriais e narrativos usados por cada uma afim de conquistar um espaço no mercado tendo em vista a origem de cada obra.

A origem dos jornais

Le Journal de Mickey chega ao mercado francês nos anos 30, sendo gerido por Paul Winckler. Esse foi o início do fenômeno cultural de história em quadrinho francofônico. O texto era pioneiro em termos de linguagem de HQ por apresentar textos em balões ao invés de textos anexos aos quadrinhos. Suas páginas eram maiores do que as de outras publicações do gênero na época e parte dele era colorida, inovações estéticas que também impulsionaram as vendas, e podem ser vistas na figura 1.

Figura 1: Página de Le Journal de Mickey de 1934

Para que fosse aceito com mais facilidade pelo público francês, o jornal também sofreu algumas alterações narrativas em relação às versões publicadas nos EUA. Foram criados os personagens franceses Jacques Bordier e Nicole de Chanceaux, em enredos ambientados no território francês. Também eram divulgadas notícias francesas sobre acontecimentos esportivos e publicadas fotos dos membros do Clube do Mickey, medidas que facilitavam a identificação do leitor com os personagens. Outras referências à cultura estadunidense foram substituídas por referências à cultura francesa, como no caso de uma das histórias, na qual a citação de nomes de poetas americanos foi substituída pela de poetas franceses.

Outras vezes, a adaptação não acontecia, o que capacitava o leitor para o entendimento, e então, consumo de outras obras estrangeiras, como foi o caso de algumas sátiras americanas não substituídas. Alguns clichês e merchandises estadunidenses também não foram substituídos, mas, de modo geral, o jornal tentava ao máximo se adaptar ao contexto no qual se inseria.

Tintin, personagem belga, já era conhecido dos franceses desde antes de 1934, quando passou a ser publicado lá pela editora Casterman. Apesar de não ter sido criado na França, tinha muito mais relação com essa cultura. O inter-relacionamento dos mundos profissionais tanto da Bélgica como da França, através do intercâmbio de artistas, fortaleceu a ideia de unidade do conceito de histórias em quadrinho franco-belgas. Além disso, por razões comerciais, os produtores de quadrinhos belgas minimizaram cada vez mais as especificidades regionais expressas em suas HQs, fazendo com que os produtos atingissem mais facilmente uma maior parte do mercado europeu. Com essas medidas, o produto belga não era estrangeiro ao francês e tinha boa aceitação por parte desse público.

Quando Le Journal de Tintin surgiu em 1948 na França, apresentava grande semelhança com Le Journal de Mickey em relação à linguagem editorial. Isso fez com que o consumidor já estivesse preparado para receber o novo produto uma vez que estava familiarizado com o formato. Além dessa influência, muitos dos artistas que trabalhavam no Le Journal de Tintin, tiveram uma formação fundada pela experiência com Le Journal de Mickey. Portanto, Le Journal de Tintin, que não era um produto essencialmente francês, ainda havia sofrido grande influência de obras estadunidenses.

A universalidade de Mickey

Mickey, o personagem que dava nome ao jornal, era e ainda é bastante popular. Seu criador, Walt Disney, teve obras publicadas em 30 idiomas, em mais de 100 países, e conseguiu se adaptar, através de recursos narrativos, como alguns citados acima, a uma diversidade de culturas (DORFMAN; MATTELART, 1977).

Histórias protagonizadas por animais, como as de Disney, geram empatia das crianças devido a forma animalesca dos personagens, que são intelectualmente inferiores às crianças, que usam de uma linguagem pouco desenvolvida para se expressar. Essas características transmitem ideia de certa ingenuidade dos personagens, o que, ao mesmo tempo, camufla o discurso carregado de ideologias que esses personagens transmitem. Uma ideologia capitalista, egoísta e burocrática, que era forte característica estadunidense principalmente do período que analisaremos (DORFMAN; MATTELART, 1977).

Os personagens do jornal, e seus discursos, conseguiam ser universais, atingindo um grande público infantil. Além disso, a disseminação de ideologias estadunidenses, capacitavam esse público para o recebimento e entendimento de outros discursos particulares dessa cultura. Logo, não era só a obra que se adaptava ao leitor infantil, esse também sofria, progressivamente, um processo de adaptação para a assimilação do produto.

A disputa comercial entre Le Journal de Tintin e Le Journal de Mickey

Raymond Leblanc, editor de Le Journal de Tintin, percebeu a concorrência entre sua obra e a de Wincker. A clientela de Tintin era composta por adolescentes e jovens adultos, enquanto a de Mickey por crianças. Cada um atingia uma parte do mercado, apesar de todas as suas semelhanças. No entanto, Leblanc ambicionava atingir também a fatia consumidora de Mickey.

Nesse contexto e com esse intuito, pediu que os desenhistas desenvolvessem animais como personagens. Foi então que foram criados Chick Bill e Kid Ordinn. Contudo, Hergé discordava de tal estratégia e argumentava que uma história só funciona quando o leitor crê nela, e que isso não acontece quando os personagens são animais.

Por conta do controle que Hergé tinha sobre a publicação, os personagens não foram inseridos nos jornais. Mais tarde, Leblanc lança um jornal chamado Chez nous- Junior, sobre o qual Hergé não tinha nenhum controle. É lá que, em 1953, o personagem Chick Bill é lançado.

Com essa decisão de Hergé, Le Journal de Tintin não chegou a atingir o nicho atingido por Le Journal de Mickey, de modo que ambas as publicações continuaram a ser feitas sem que fossem concorrentes no mercado.

A disputa nas edições de 1952

Le Journal de Mickey teve sua produção interrompida algumas vezes, entre junho e setembro de 1940 e entre 1944 e 1952. O que iremos observar são alguns aspectos da produção de 1952. Nesse ano, a numeração das edições é zerada e outro Jornal número 1 é lançado. Dessa vez com 16 páginas de 30 cm de comprimento, sendo 8 coloridas  e 8 em preto, branco e tons de  laranja. O Jornal custava 20 francos.

Le Journal de Tintin, na edição de 1952, custava 25 francos, tinha 20 páginas, exportava versões para França, Suíça, Canadá, Bélgica, Holanda, e emitia 600 mil cópias por semana. A página tinha 29,5 cm de comprimento. Percebe-se que as edições não apresentavam grandes diferenças.

As histórias publicadas no Le Jounal de Mickey tinham como personagens: Mickey, Pateta e Pato Donald, e eram criadas por Louis Santel, um belga. Outras eram criadas por Bob Karp e Charles Alfred Taliaferro, estadunidense. A obra era também composta por duas novelas: Le Tour de France (ver figura 2) e Os sete anões. A primeira era criada por um francês, Pierre Fallot, e era interativa, já que convidava o leitor a participar de um concurso ao resolver o enigma a partir da leitura da novela. A segunda era escrita por um americano, Anthony Joseph Strobe. Além disso, a revista continha uma página com jogos e passatempos infantis.

Figura 2: Página da edição 1 de Le Journal de Mickey, de 1952

No ano de 1952, Le Journal de Tintin apresentou séries de Bob e Bobette, escritas por Vandersteen, belga. Série de Cori, le moussaillon, de De Moor, belga. Quick et Flupke, de Hergé, belga. Hassan et Kaddour, de Laudy, belga. Jo, Zette et Jocko, de Hergé, belga. Lefranc, de Martin, francês. Luc et Laplume, de Funcken, belga. Professeur Troc, de De Moor, belga. Rémy et Ghislaine, de Craenhals, belga. Titi, de Tibet, francês, Tintin, de Hergé, belga. Tintin Actualités, diversos autores. Sendo a maioria dos autores, belgas, e todos europeus.

Conclusão

Ambas as publicações surgem em um contexto histórico em que as culturas estão cada vez mais integradas e, de certa forma, uniformizadas. É por isso que, mesmo em um país como a França, com uma identidade cultural consolidada por séculos de história, os leitores estão capacitados a receber o que é estrangeiro, seja vindo da Bélgica ou dos Estados Unidos, e capacitados a absorver aquilo sem o estranhamento que esses produtos poderiam gerar.

Além dessa mudança de comportamento do consumidor, se comparada a seu comportamento em anos anteriores, a própria produção dessas obras culturais é universalizada devido ao intercâmbio de mão-de-obra para sua confecção. Com isso, cada artista leva um pouco de sua cultura e influencia à construção do produto final, que se torna um híbrido cultural.

Devido aos diferentes nichos que cada uma das obras atinge dentro do mercado de HQ, elas não apresentam a rivalidade que a primeira vista podem parecer apresentar, e mesmo a suposta familiaridade maior e menor que o leitor pode ter com cada uma, não chega a prejudicar a aceitação de alguma delas no mercado, o que reitera e vai de acordo com o contexto político e social que se vivia no século XX, e que só tendeu a se intensificar com o passar do tempo.

Bibliografia

BENHAMOU, F. A Economia da Cultura. Ed. Ateliê Editorial, São Paulo, 2007.

DAYEZ, H. Le Duel Tintin Spirou. Ed. Luc Pire, Bruxelas, 1997-2001.

DORFMAN, A.; MATTELART, A. Para Ler o Pato Donald: Comunicação de Massa e Colonialismo. Ed. Paz e Terra, 1977.

GROVE, L. Mickey, Le Journal de Mickey and the Birth of the Popular BD.                             Em: < http://etc.dal.ca/belphegor/vol1_no1/articles/01_01_Grove_Mickey_de.html>. Acesso em 20 de Maio de 2012.

HOBSBAWM, E. A Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 2008.

Sitiografia

Le Journal de Mickey número 1. Disponível em: <http://coa.inducks.org/issue.php?c=fr%2FJM++++1> Acesso em 20 de Maio de 2012

Le Journal de Tintin número 167. Disponível em: <http://lejournaldetintin.free.fr/affiche.php?action=detail&asso=2&annee=1952&numero=167&menu=10&menu_id=45> Acesso em 20 de Maio de 2012.

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