Anotações sobre a perambulação automotiva, o Cinema Marginal e Aopção ou As Rosas da Estrada.

Notes on the automotive perambulation, the Marginal Cinema and Aopção ou As Rosas da Estrada.

Fábio Raddi Uchôa[1]

Resumo: Busca-se debater o tipo de perambulação automotiva existente em Aopção ou As Rosas da Estrada (1978-81), de Ozualdo Candeias. Para tanto, os pontos de referência são o Cinema Marginal e, depois, filmes de estrada dos anos 1970, como Iracema, uma transa amazônica (1974) e Perdida (1975).

Palavras-chave: Perambulação automotiva; Cinema Marginal; Ozualdo Candeias; Aopção ou As Rosas da Estrada.

Abstract: The aim is to discuss the kind of automotive perambulation existent in Aopção ou As Rosas da Estrada (1978-81) by Ozualdo Candeias. To that end, the references are the Marginal Cinema and some road movies of the 1970s, such as Iracema, uma transa amazônica (1974) and Perdida (1975).

Key-words: automotive perambulation; Marginal Cinema; Ozualdo Candeias; Aopção ou As Rosas da Estrada.

Introdução                                                   

A proposta aqui é pensar no filme Aopção ou As Rosas da Estrada (1978-81), de Ozualdo Candeias, contextualizando-o como um filme de perambulação automotiva, guardando um diálogo fragmentar com as perambulações próprias ao Cinema Marginal, porém voltando-se a uma crítica social mais contundente, atenta à violência, à desigualdade social e às migrações internas, intensificados durante a modernização brasileira dos anos 1960-70.

O cinema de Ozualdo Candeias é conhecido pelas situações liminares dos personagens, desgarrados e deslocados, caminhando entre espaços do campo e da cidade, com desfechos por vezes amargos e pessimistas, por vezes com traços redentores.  Em A margem (1967), dois casais perambulam pelas várzeas, aguardando uma morte redentora; em Zezero (1974) e O Candinho (1976), o migrante caipira desloca-se para a capital paulista, expulso do campo ou seduzido pelas falácias da cidade, em parábolas audiovisuais que culminam com a amarga desilusão, em tom de denúncia conscientizadora, ante a alienação religiosa ou às mazelas sociais da modernização conservadora.  Aopção ou As Rosas da Estrada, por sua vez, é o primeiro e único filme, dentro da obra do cineasta, que se coloca do início ao fim como obra de perambulação automotiva – personagens femininas, bóias-frias – prostitutas numa jornada infernal entre campo e cidade, que passam grande parte do tempo na boleia do caminhão ou em espaços abandonados às beiras das estradas; filme este no qual a violência, sobre os corpos e os horizontes, reverbera uma violência social mais ampla, dos descompassos entre a modernização industrial urbana e, por outro lado, a manutenção de relações sociais arcaicas próprias a um Brasil agrário.

A perambulação automotiva no Cinema Marginal

 

A perambulação deve ser pensada como um traço marcante do cinema moderno, consolidado em especial pelo Neo Realismo e pela Nouvelle Vague, porém também presente no cinema de vanguarda. Em oposição aos laços de causa e efeito próprios aos enredos e personagens do cinema clássico, a perambulação coloca-se como um andar a esmo, sem importância às motivações ou finalidades. Chama-se atenção aos corpos, aos movimentos em curso, construindo-se àquilo que o crítico francês Jean Douchet denomina como um espaço “entregue ao presente do acontecimento, registrado por uma câmera de atualidade, sofrido pelas personagens e observado pelo espectador, testemunha do acidente” (DOUCHET, 1999, p. 174).  Um espaço habitado por personagens que, por sua vez, “já não têm, […] o controle físico do seu comportamento, perderam-lhe o objetivo, entraram numa espécie de errância”, um deslocamento enquanto ato “em si” (Idem, Ibidem, p. 174), oposto à dramatização e ao psicologismo próprios ao cinema hollywoodiano. Em alguns casos, a perambulação associa-se a um gesto de liberação, ante à opressão ou ante a um mundo sem possibilidade de adequação. Assim, na sequência final de Os incompreendidos, de Truffaut, o personagem Antoine caminha em direção ao mar; nos minutos finais de Alemanha ano zero, acompanhamos o jovem Edmund em meio aos escombros de Berlim, momentos que precedem seu suicídio. No âmbito do cinema moderno, a perambulação porém não se limita a uma atividade física, identificando-se com as ambiguidades próprias ao estilo indireto livre no cinema (PASOLINI, 1966) – ao mesmo tempo objetivo e subjetivo; cortes, travellings, panorâmicas e movimentos nervosos de câmera que indicam um mundo apropriado a partir da loucura, desespero ou solidão dos próprios personagens.

Interessa-nos aqui, de maneira particular, a perambulação automotiva, reprocessada pelo Cinema Marginal, tomada como ponto de ressonância/contraste para Aopção de Candeias. A partir de 1968, com a promulgação do AI-5, o fechamento do Congresso e o aumento da perseguição política, há um clima de desesperança que, unido aos reflexos da contracultura tropicalista, desdobra-se na estética do Cinema Marginal. Trata-se de um grupo de cineastas e críticos que se concentra no bairro da Luz a partir de 1968, entre eles, Carlos Reichenbach, José Agrippino de Paula, Jairo Ferreira, Rogério Sganzerla, João Batista de Andrade, João Callegaro e Ozualdo Candeias. Em contato com atores e técnicos da região, tais cineastas dão origem a uma produção heterogênea, marcada pela violência estética, pela conscientização do fracasso diante da incapacidade de intervenção política num país em estado de sítio, bem como pelo reprocessamento da cultura importada, com uma colagem carregada na ironia e no deboche.  Em alguns destes filmes, a resposta à repressão militar desdobra-se num desencanto radical, com a eliminação das utopias e, às vezes, a encenação escatológica, eivada por berros e vômitos. Em termos gerais, percebe-se uma crueza do olhar, que reprocessa o kitsch da indústria cultural em ascensão, a curtição das aventuras sexuais na baixada santista, o universo dos intelectuais em crise, as perambulações sem destino, e também as deformidades físicas e urbanas. De acordo com Paulo Emilio Salles Gomes: “Conglomerado heterogêneo de artistas nervosos da cidade e de artesãos do subúrbio” propondo um “submundo degradado percorrido por cortejos grotescos, condenado ao absurdo, mutilado pelo crime, pelo sexo e pelo trabalho escravo, sem esperança ou contaminado pela falácia, [que] é porém animado e remido por uma inarticulada cólera” (GOMES, 1980, p. 97).  Dentro de tal grupo de filmes, por outro lado, há também traços de uma rebeldia em sintonia com o “seja marginal, seja herói”, do Bólide – Caixa 18 de Hélio Oiticica, onde o protesto contra a repressão política assume a figura do marginal como figura da revolta. Num contexto de reverberação do gesto tropicalista, há um reprocessamento da cultura industrial importada, fundindo-a com uma busca pelo nacional, assumindo um tipo de colagem particularmente carregado no deboche e no anti-intelectualismo.

Neste contexto, a perambulação automotiva será apropriada pelo cinema moderno brasileiro e, em especial, por cineastas de sintonia marginal, como Rogério Sganzerla e Andrea Tonacci. Nos filmes desta dupla de cineastas, a perambulação associa-se: ao questionamento ao cinema enquanto forma num contexto de crise, à rarefação da narrativa, bem como ao ácido reprocessamento da cultura industrial e cinematográfica americana. Entre tais cineastas, destaca-se a releitura de gêneros, com ênfase ao cinema de gangster americano, seu gosto por perseguições automotivas, o status dos calhambeques e Rolls Royces e, também, os travellings urbanos. Em seus filmes, os deslocamentos automotivos colaboram, hora para uma alegoria marcada pelo fragmento, hora para uma narrativa em si fragmentada, caracterizada pela disjunção, o embaralhar, a repetição neurótica, a não-conclusão e o deboche.

Em O bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, a perambulação automotiva destaca-se apenas em sequências pontuais. Na história do bandido Jorge, a viagem entre São Paulo e a Baixada Santista demarca um itinerário bastante explorado pelo Cinema Marginal paulista.  O deslocamento automotivo é uma peça, dentro de uma estrutura caleidoscópica mais ampla, onde a profusão de espaços, logradouros, gêneros cinematográficos e identidades mimetizam a personalidade de um bandido em crise; personagem em busca de si, cuja trajetória corresponde também à tentativa de compreensão do próprio terceiro mundo – amontoamento de disparates, contendo a própria Boca do Lixo como epicentro simbólico.

Em 1969, numa chave ainda mais debochada, Sganzerla realiza A mulher de todos (1969), filme centralizado pela personagem “Ângela Carne e Osso” – um furacão sexual com uma queda especial por boçais. O tema é a viagem à Baixada Santista, incluindo Bertioga e Praia Grande, estância representada como a Ilha dos Prazeres. A perambulação automotiva reduz-se a alguns travellings, de carros zanzando pela praia: espaço de fuga para os paulistas – e sua elite machista, conservadora, recalcada e animalizada. Trata-se de um espaço sem limites, que mimetiza a insaciabilidade sexual de Ângela, tendendo ao acúmulo de referências, à animalização e à verborragia.

O longa Bang-Bang (1971) de Andrea Tonacci reafirma a perambulação automotiva e a releitura de gêneros; proposta iniciada no curta Olho por olho (1966). No filme de 1971, a incapacidade de ação faz parte da caracterização dos personagens e da forma assumida pelo relato. A gangue formada por um ceguinho, uma senhora que regurgita salsichas e um parasita indiferente desloca-se por ruas de Belo Horizonte e estradas abandonadas, entre brigas e repetições infindáveis. A enervada deglutição de comida, os tiros para o nada, as pequenas ações repetitivas, bem como os esbarrões gratuitos, enfatizam a impotência. Como indicado por Ismail Xavier em O Cinema Brasileiro Moderno:

“Tonacci monta uma estrutura de tema e variações em torno da situação clássica da perseguição no cinema; enreda figuras grotescas de bandidos numa ação sem continuidade que se torna pretexto para jogos de composição espacial onde tudo sempre recomeça, o cineasta dando prioridade ao processo, não ao produto final.” (XAVIER, 2001, p. 77)

Os longos travellings viários, inspirados no cinema noir, compõem perseguições sem origem ou destino; os movimentos de câmera em pêndulo, inspirados em Godard, são usados para construir diálogos sem motivo; algumas vezes, os personagens são abandonados, enfatizando-se o vazio dos horizontes e paisagens desabitadas. O relato articula travellings e planos-sequência numa cadeia sem desdobramentos e com repetições neuróticas, como se fosse um câmbio automotivo quebrado, que falha ao engatar a segunda marcha. O relato reafirma o eterno re-começarde uma gangue de ladrões impotentes.

Nos dois cineastas referidos a perambulação automotiva fundamenta-se em travellings, bem como os trajetos fragmentários unidos por meio da montagem. Como na perambulação descrita por Jean Douchet, os percursos possuem mais importância do que as origens e os destinos. No Cinema Marginal, tratamos de percursos fragmentados e inconclusos, que mimetizam o estranhamento dos personagens e dos próprios diretores diante de um mundo tomado pela crise política e social.

O gosto por automóveis importados, por sua vez, nos remete à colagem, que aqui assume traços agressivos. O contraste destes carros com as paisagens do terceiro mundo, no contexto da própria releitura de gêneros, pode apontar: a) para a denúncia da desigualdade social encoberta pelo discurso oficial do Estado; ou b) para a celebração do kitsch como inclinação nacional; levando-se a estranhamentos entre nacional/estrangeiro, atrasado/moderno, em sintonia com um processo de “politização da colagem” (XAVIER, 1993, p. 22), que em certos cineastas do período colocava-se como elaboração de um olhar, novo e crítico, sobre o universo da indústria cultural.

            Podemos falar, portanto, de uma perambulação automotiva com nuanças líricas, onde os traços narrativos do filme aproximam-se da própria situação dos cineastas, unindo internalização da crise e tentativa de ruptura: “A perambulação, típica do cinema moderno, atingiu em sua versão marginal uma feição mais radical, afinada ao senso de ultrapassar limites, cortar amarras, como uma metáfora ao próprio gesto dos cineastas.” (XAVIER, 2001b, p. 21).

Aopção ou As Rosas da Estrada e um novo contexto sociocultural

            Feita essa breve apresentação, da perambulação automotiva no cinema marginal, passemos ao caso de Ozualdo Candeias, com destaque a Aopção ou As rosas da estrada. Enquanto nos filmes de Sganzerla e Tonacci a perambulação pauta-se pela atração por veículos importados e mimetiza o deslocamento dos personagens e cineastas ante o mundo, no cinema de Candeias, por sua vez, a perambulação lida com automóveis produzidos no próprio país: carros ou caminhões de carga. Estes percorrem um mundo em si deslocado, marcado pela ambiguidade (nem campo nem cidade), pela violência e pela desclassificação social. Em Sganzerla e Tonacci, há o auto-questionamento do cinema enquanto forma de representar o fracasso e a nação, lidando com níveis diferentes de alegorização do país e de esgarçamento da narrativa, porém, mantendo a tônica da ironia à cultura industrial e cinematográfica estrangeira. Nos filmes de Ozualdo Candeias também identificamos os influxos entre nacional e estrangeiro, próprios a uma guinada do cinema existente no final dos anos 1960. Há, porém, um deslocamento temático do olhar, voltando-se à pobreza e às mazelas decorrentes da modernização conservadora dos anos 1960-70. O foco é a população excluída, formada por prostitutas, migrantes rurais, ambulantes, pedintes, bem como um lumpen-proletariado urbano que não se integra no mercado de trabalho formal.

Em Candeias, temos uma perambulação em sintonia com descompasso social. Os deslocamentos físicos, pedestres ou automotivos, figuram uma violência social mais ampla. Na passagem dos anos 1960-70, consolidava-se um estado de exceção militar, marcado pela perseguição, a tortura e o silenciar das vozes dissonantes. A opção dos militares por uma modernização conservadora, com altos índices de industrialização e total limitação das liberdades democráticas, leva a uma realidade social marcada por desigualdades e ambiguidades. Um autoritarismo plutocrático radicaliza o abismo social. Desde 1967, destacam-se as altas taxas de crescimento econômico, a concentração de renda e a ampliação dos padrões de consumo modernos. Às elites, coube uma ampliação da renda; aos pobres, restou a intensificação do êxodo rural e a compressão dos salários. Cria-se um grande contingente populacional móvel. A modernização da agricultura, realizada de maneira selvagem, impele os colonos e camponeses ao mundo sem lei das fronteiras agrícolas, ou então, à violência da cidade grande. Junto com o predomínio da cultura de massas, alavancado pela consolidação da indústria cultural, há um colapso do espaço público e uma despolitização da vida social. (Cf. MELLO; NOVAIS, 1998). O processo se faz presente também nas grandes cidades: na capital paulista, a sub-urbanização é intensificada, radicalizando as diferenças entre núcleo urbano e periferia. O descompasso entre o crescimento econômico e a afirmação dos direitos políticos e civis é extremado.

            Nos filmes de Candeias, o referido abismo social torna-se regra. É colocado como contra-imagem, contrapondo-se ao discurso oficial do “Brasil grande” e questionando o crescimento econômico como falácia. Em 1967, A margem chama atenção aos espaços e à sociabilidade das várzeas, que por muito tempo foram locais de transição e moradia aos migrantes recém-chegados; locais cheios de meandros, sujeitos às enchentes, e de onde, antes do início da construção da Marginal Tietê nos anos 1950, era retirado o barro para a edificação da própria cidade. Em 1974, Zezero atenta para o cotidiano dos assistentes de construção, caipiras recém-chegados que se embrenham por obras e lazeres sexuais em espaços de várzea. Em Aopção ou As Rosas da estrada, o abismo social é extrapolado para o território nacional, acompanhando a exploração de mulheres bóias-frias, em termos braçais e sexuais, numa viagem atordoante, uma fuga infernal, iniciada nas fazendas de cana e finalizada na Boca do Lixo, em São Paulo.

            Assim como em outras realizações de Candeias, em Aopção o cineasta acumula múltiplas funções, incluindo as de roteirista, diretor, fotógrafo/diretor de fotografia e montador. Em sua grande parte, as películas utilizadas estavam vencidas, propiciando  desbalanceamentos entre claros e escuros, ou brancos em excesso, usadas pelo cineasta, de maneira criativa, na composição de uma jornada massacrante e infernal. De acordo com o produtor Virgílio Roveda, as películas eram material de descarte, pontas de negativo vencidas, levantadas junto a produtores e conhecidos do cineasta na Boca do Lixo; tais materiais foram enviados para laboratório, para a definição da sensibilidade de cada um dos fragmentos. Assim, Aopção exige por parte do cineasta uma constante luta para imprimir imagens gritantes em suportes de sensibilidade alterada. A realização do filme é conturbada, durando mais de dois anos entre a filmagem bancada pelo próprio cineasta e a finalização financiada pela Embrafilme.

Como afirmou João Luiz Vieira (1986), o fio condutor dos episódios do filme, apresentando o gradativo deslocamento de bóias-frias do campo em direção à cidade, são as estradas, uma paisagem periférica composta por fragmentos, detritos e restos de uma civilização distante. Motivadas por escapar do trabalho no campo e pelas impalpáveis perspectivas colocadas pelos horizontes das estradas, as personagens empreendem uma viagem que as leva de um estado a outro: de bóias-frias, tornam-se prostitutas, numa jornada marcada pela violência e a exploração dos corpos.

Insatisfeitas com a vida no campo, onde trabalham como cortadoras de cana, tomam o rumo das estradas, onde conseguem caronas em troca de sexo forçado com os caminhoneiros. Tais personagens transitam por acostamentos de estrada, beiras de rios, borracharias, cabanas abandonadas, postos de gasolina, além das próprias cabines dos automóveis. Algumas delas acabam em pequenos bordéis, trabalhando em troca de comida. A sua trajetória desemboca em São Paulo, cidade na qual continuam trabalhando como prostitutas, mas agora na região da Boca do Lixo paulista. Para as quatro moças, cujo itinerário conflui para a capital, o filme apresenta dois destinos diferentes, embora complementares. Duas delas são assassinadas, transformando-se em matéria para a imprensa sensacionalista e terminando na lata de lixo. As outras duas conseguem um trabalho mais digno, como motoristas. Apesar de tal possibilidade apresentar-se como uma centelha de salvação, ela é negada pelo tom do final do filme: a degeneração e o aniquilamento total dos corpos, transformados em reles mercadorias ou cadáveres dilacerados por meio da violência urbana. Como motoristas, tais moças reiteram o processo por meio do qual foram levadas à cidade, um processo de modernização do Brasil, tendo por resultado a criação de dois Brasis diametralmente opostos, um potencialmente desenvolvido e outro pobre, excluído, incrustrado em patamares extremos de pobreza.

Em Aopção, a construção da perambulação se dá a partir de alguns traços particulares: planos gerais, panorâmicas e travellings que acompanham o deslocamento de caminhões pela estrada; planos internos à cabine dos automóveis, identificados ao olhar das passageiras, que vislumbram pelo pára-brisa os horizontes indefinidos das estradas; planos associados aos olhares dos motoristas que procuram pelas moças-mercadorias; bem como uma sucessão de devaneios, associando closes dos rostos, nervosos movimentos de câmera e claridades saturadas, que se aproximam dos pesadelos e sonhos irrealizados das personagens.

O colocar-se na estrada é uma consequência natural. Em uma das primeiras alucinações, depois de dormir com um caminhoneiro, uma das moças vê a si mesma, sozinha e abandonada, diante de uma igreja, tomada por um nervoso chicote de câmera. Num vilarejo de beira de estrada, presenciamos o enterro de uma criança, sob uma luz de tal maneira estourada, que atribui ao evento uma atmosfera mítica. Mais adiante, no acostamento, uma das personagens é despida à força, numa brincadeira onírica entre mulheres que assume ares de pesadelo. Unindo estes episódios, por sua vez, os diversos enquadramentos e movimentos de câmera, internos ou externos aos automóveis, conduzem por uma rede de estradas sem contornos definidos; a perambulação cola-se à indefinição dos horizontes de vida e das fronteiras territoriais.

Durante a restrita exibição do filme em festivais, críticos como Antonio Alves Cury (1982) e João Luiz Vieira (1986) colaboram com interpretações que aprofundam os traços da aqui referida perambulação automotiva com sintonia ao descompasso social. Em “As rosas da estrada”, Antonio Alves Cury atenta para a falta de escolha das personagens. Segundo ele,

“É de se notar ainda que o espaço do filme (roça-estrada-cidade), entendido aqui como uma união da sociedade com a paisagem, tem uma importante função na estrutura fílmica. Os personagens estão como que colados à paisagem, nunca se destacam dela. São mesmo sua função.” (CURY, 1982, p.83).

Assim, tais personagens, membros das “camadas mais pobres da sociedade” (CURY, 1982, p.83), parecem agir em função de sua relação submissa com o espaço. João Luiz Vieira chama atenção à crueldade, bem como à fragmentação da paisagem e das personagens. Para ele, a agressividade de um Brasil contemporâneo forma a base para a estruturação da própria narrativa e da forma fílmica, ambas marcadas por fragmentos e estilhaços. A crítica de Vieira não apenas sintetiza em seu título (“Horizonte Perdido”) a falta de rumos das personagens, como também nos sugere um novo contexto interpretativo para a perambulação de Aopção.

Ao longo da década de 1970, despontam “filmes de estrada”, que apresentam uma “justaposição dialética entre um Brasil potencialmente desenvolvido e a marginalidade da maioria de seus habitantes, sobretudo mulheres” (VIEIRA, 1986, p. 37-38), algo explicitado no decorrer do trajeto das personagens femininas; são mulheres assediadas, tendo em seus corpos a gradativa marca da exploração, que é sexual e social. O corpo em curso é um dos focos das contradições. Corpo-mercadoria: instrumento de submissão, humilhação e imposição do sexo forçado. Instrumento de denúncia. Em Aopção, a mulher se oferece frente ao símbolo da Texaco. No filme de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, Iracema – Uma transa amazônica (1974), a jovem prostituta torna-se emblema visual da situação de exploração ao exibir a roupa estampada pela Coca-Cola. Em Perdida (1975), de Carlos Alberto Prates Correia, a ex-doméstica Stela toma o rumo da prostituição num posto Shell. Os contrastes estão também nos percursos, sem fronteiras definidas, ligando campo, floresta e cidade. Na constituição das personagens, predomina a transformação: dos nomes, dos vínculos sociais, das qualidades físicas e das vestimentas. Em termos do tipo de registro, há variações entre ficção e documentário, incluindo um desejo de documentação das fisionomias e do cotidiano de habitantes de beiras de estradas, pequenos vilarejos e dos recém-chegados à metrópole.

Iracema (1974) também apresenta a transformação da mulher em prostituta. A dialética, envolvendo um Brasil potencialmente desenvolvido e um Brasil pobre, explicita-se na relação entre os dois principais personagens: Tião, caminhoneiro apelidado de “Brasil Grande”, e Iracema, adolescente com traços indígenas, cuja trajetória sem destino é encaminhada pelas estradas, também com horizontes sem fim. A Transamazônica, simbolizando um Brasil grande, cujo progresso é alavancado pela exploração da floresta assemelha-se a uma grande ferida aberta no coração do país, uma paisagem desumana ao longo da qual terra e corpos são devastados. Assim como a mata, derrubada ilegalmente e queimada, os corpos das moças são surrados, violentados e até mutilados. Tais seres brutalizados, ícones de um Brasil moderno e cruel, deterioram-se no decorrer de uma jornada infinita.

Em Perdida, Stela abandona o trabalho como doméstica, numa casa onde era assediada e humilhada pela família do patrão. As estradas do Estado de Minas Gerais levam-na para um prostíbulo, para o trabalho numa fábrica e, por fim, a uma fuga em direção a Belo Horizonte. A transformação em prostituta é estimulada por um caminhoneiro que a seduz, forçando-a a vender-se aos homens de um vilarejo, mas logo após a abandona. Enquanto o coração da ingênua Stela acompanha o caminhoneiro pela Bahia, seu novo nome, Janete, cai na boca dos homens da pequena cidade. O filme passa a explorar os contrastes entre campo e cidade: a ironia é pesada; os ambientes de bordel, bem como o palavreado chulo, destoam ante ao rigor das composições e enquadramentos; em visita aos pais que moram isolados numa casa de pau-a-pique, a moça trajada em short e miniblusa pergunta sobre a pacata vida sexual da mãe; a trilha musical inclui o humor urbano de Noel Rosa e a música caipira. De caminhão ou trem, os deslocamentos são pontuais, mas reafirmam o estranhamento, entre o rigor quase godardiano dos enquadramentos e as referências interioranas, por vezes caipiras, subentendidas diegeticamente ou suscitadas pelas paisagens.

                                               *

A partir dos dois contextos-referência aqui propostos, Aopção explicita a complexidade da obra de Candeia quanto às referências cinematográficas. Por um lado, destacam-se a violência aos corpos, a exploração da nudez, a agressão ao espectador através das granulações e asperezas da película, bem como o pessimismo marcante, que nos remetem a uma estética do desespero, presente em filmes marginais como Hitler III mundo (1968), Gamal, o delírio do sexo (1969) e Orgia ou o Homem que deu cria (1970). Também em contato com tais obras, a perambulação em Aopção apresenta contaminações, entre a loucura dos personagens e a construção da narrativa, entre a falta de caminhos e a violência sobre os corpos e horizontes. Por outro lado, tais elementos são recontextualizados, numa perambulação automotiva que se volta a uma crítica social, afinada com o abismo entre industrialização e pobreza. Neste caso, o diálogo é com filmes dos anos 1974-75, como Iracema e Perdida, onde o estilo indireto livre é menos marcante; neles, abre-se espaço para associações temáticas, envolvendo diferentes tons de denúncia, entre a exploração sexual feminina e o desenvolvimento socioeconômico desigual.

 

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[1] Fábio Raddi Uchôa é doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, com trabalho sobre a cidade e o estilo na obra de Ozualdo Candeias. Foi pesquisador e arquivista da Cinemateca Brasileira, além de professor convidado da Faculdade de Artes do Paraná. Atualmente, desenvolve pesquisa de pós-doc junto ao Programa de Pos-Graduação em Imagem e Som da UFSCar.

 

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