Raya Angel Zonana**
Resumo: O filme A Professora de Piano (Henecke, 2001), é tomado como um texto imagético, que a partir de uma “escuta psicanalítica”, torna-se palco para uma visão da perversão.
Palavras Chave: Perversão, psicanálise, cinema
The Piano Teacher: Perverse Notes
Summary: The Piano Teacher (Hanecke, 2001) is taken as a text in images that, departing from a “psychoanalytic listening”, becomes the stage for a vision of perversion.
Keywords: Perversion, psychoanalysis, cinema.
Buscando alguma inspiração para pensar o filme A Professora de Piano (La Pianiste de Michel Haneke, 2001), encontro em André Green (1971) um pensamento que me estimula. Ao falar sobre a análise que o psicanalista pode fazer de um texto literário, de como a psicanálise se encontra com a literatura, esse autor nos diz que o psicanalista não lê o texto, ele o “escuta” através de sua escuta psicanalítica. Para isso, fala de uma leitura flutuante que perpassa as palavras e detém-se nos desvãos. Explica que esta não é uma leitura negligente, pelo contrário, é uma leitura que provoca o aparecimento de ideias e afetos. Ideias que se constituem enigmáticas, acompanhadas pelo fascínio da comoção que o texto provoca. Levado então por este fascínio, o analista-leitor-intérprete reage ao texto através da associação de ideias, pela qual naturalmente é tomado, como a uma produção inconsciente, como à sua própria produção inconsciente. Transforma-se assim, segundo Green, no analisado do texto.
Neste caso, o texto é imagético, e as imagens são poderosas, implicando o psicanalista na história. As sensações escapam da tela e invadem o olhar. E no caso de A Professora de Piano, o universo da sexualidade e da perversão se impõe aos sentidos.
Encontrei nas ideias de Green algo que senti vendo e revendo o filme. De início, assisti-o para retomá-lo e deixar vir à tona as lembranças que ele deixara em mim, quando o vi pela primeira vez, há alguns anos atrás. E, assim como da primeira vez, repetiu-se a comoção, o choque e o fascínio que as imagens me provocaram. Cabe aqui dizer algo sobre o termo fascínio. Fascinar é atrair de maneira irresistível, encantar (enfeitiçar), alucinar, deslumbrar (tirar o lume, a luz), dominar, hipnotizar, ofuscar, pasmar, subjugar, surpreender. Estes são alguns dos sinônimos de fascinar, e lemos em Olgária Matos (1997)1 que há um denominador comum nesses termos: a iminência de um perigo que se encontra na ambiguidade do sentido da palavra. Todos esses termos levam à ideia de orientação e, ao mesmo tempo, de descaminho. O fascínio provoca a perda de um rumo conhecido, a perda de referências estáveis, e nos propõe uma instabilidade, um estranhamento. As imagens de um filme facilmente são associadas às de um sonho. E assim como no sonho, tramado pelo inconsciente, as imagens no cinema podem e fazem coincidir os contrários, expondo a ambiguidade que transparece no humano e aproximando sentimentos de intimidade e estranhamento. Presa deste estranho encantamento, tomo este texto imagético, produção do humano, e que desencadeou em mim sensações que, pelo impacto, me movem a associar alguns pensamentos que exponho agora ao leitor.
O filme
O filme tem seu cenário em Viena, Áustria. A sociedade vienense transborda musicalidade. Lembro aqui de Viena no final do século XIX, momento em que esta cidade era um dos principais centros culturais da Europa, vivendo uma efervescência criativa em várias áreas. O movimento que ocorre em Viena nesta época, é de uma quebra dos padrões estéticos que vêm na esteira de uma sociedade que se percebe em desintegração com o fim do Império austro-húngaro. A Viena fin du siècle é também o berço da Psicanálise. Freud, ao descortinar o inconsciente, descentraliza o Homem da racionalidade e o coloca à mercê do desejo, do estranho que o habita e em torno do qual esse homem irá constituir sua identidade, agora plena de dúvidas e instabilidade. Mais tarde, Freud descreve como, a partir do Id – morada das pulsões, o “espaço psíquico” mais primitivo do ser humano -, a criatividade, a possível sublimação destas pulsões, se tornará ciência, arte, que são, para Freud, as mais elevadas criações do humano. Das pulsões, do mais primitivo, da sexualidade, de Eros mesclado a Thanatos é que surge a expressão mais sublime do Homem. Em uma cena do filme, a pianista cita Adorno falando da angústia de Schummann, que, já próximo à loucura, tem a percepção desta e continua criando, compondo, ainda que pressinta a perda da razão. “Ainda sabe o que significa a perda de si mesmo, antes de ser abandonado”. Ela fala do crepúsculo da mente, da loucura. É esta ligação entre a loucura e a arte, entre a dor e a arte que desponta como pano de fundo do filme.
As mudanças políticas ocorridas no final do século XIX no chamado Velho Mundo, desembocam na Primeira Grande Guerra, numa Europa onde a morte e a depressão levam a um enfraquecimento do papel do Pai, fato que culmina com a subida ao poder de figuras representativas do Grande Pai, perverso, despótico, como Hitler – nascido na Áustria -, que toma o mundo como um joguete para seu próprio narcisismo, como vemos na bela e terrível metáfora de Charlie Chaplin, no filme O Grande Ditador (1940). É nessa Europa, devastada pelas guerras e reconstruída dos escombros restantes, que se instala, já em nossos dias, século XXI, a modernidade dos Shoppings Centers ao lado de edifícios antigos e de prédios art noveau, onde caminham pareados a liberdade sexual, o desejo de um consumo insaciável, da busca do gozo e do puro prazer (marcas da pós-modernidade), e a repressão sexual da tradição burguesa, onde o pop e rock convivem com recitais de música erudita promovidos por famílias com restos aristocráticos. O filme “La Pianiste” propõe um olhar para esse tema, pela voz de Klemmer, jovem pianista que, num recital, pensava tocar Schöemberg2, “pois os erros passariam despercebidos”, mas, após uma conversa com a professora, sobre doença e loucura, decide tocar um “scherzo” (brincadeira, em italiano) de Schubert. Há a dualidade do harmônico, da sonoridade de um compositor do romantismo, que convive junto ao fragmentado, aos sons de uma música contemporânea, incômoda.
Temas incômodos, contrastantes, que expõem feridas vivas da sociedade contemporânea, principalmente de uma Europa angustiada com o novo, com as diferenças que insistem, são a matéria de Haneke3, cineasta premiado, mas de difícil aceitação por sua estética agressiva.
A primeira cena do filme mostra uma mulher de cerca de 40 anos, com uma expressão distante em um rosto de traços suaves, delicados, que, ao chegar em casa, é recebida pela mãe idosa, rosto enrugado, severo, que censura a filha pelo atraso. Diz saber que o último aluno saiu da aula há três horas. O que teria feito neste intervalo? Em seguida, arrancando a bolsa das mãos da filha, abre-a e encontra um vestido e o talão de cheques que examina ansiosamente. Segue-se uma discussão entre as duas. O vestido, novo, é rasgado e a mãe tem os cabelos puxados e arrancados pela filha descontrolada. O corte de cena é feito através de um close numa tela de televisão diante da qual a mãe queixosa choraminga e diz que uma filha que bate na mãe deveria ter as mãos decepadas. O que seria para uma pianista ter as mãos decepadas, senão a perda de seu instrumento de trabalho, de sua identidade? A filha responde em tom áspero, agressivo, que aos poucos dá lugar à culpa, desculpas, e a uma reconciliação em meio a lágrimas. A mãe, já mais calma, diz “somos assim mesmo, é o temperamento da família”. Comenta que a filha jamais poderia usar um vestido chamativo, “da moda”, cuja fugacidade faria com que ficasse rapidamente ultrapassado. A filha responde num tom calmo, que é uma roupa clássica, semelhante a um vestido que a mãe tinha tido na juventude. A fugacidade do moderno, desta era líquida do objeto descartável em contrapartida ao que seria o clássico e supostamente duradouro, entra em cena, não só como problemática da pós-modernidade, mas também como ideia da relação entre mãe e filha que deve se manter eternizada, com laços indissolúveis, sem cortes que venham do novo, do diferente.
À noite, após escovar os dentes numa cena trivial, mãe e filha deitam-se e dormem. Na mesma cama. Não há privacidade ou espaço próprio. Tudo é comum às duas mulheres fusionadas. Nestas primeiras cenas, já podemos perceber as nuances desta relação tão delicada, tão intensa e tão impregnada de amor e ódio que ocorre entre mãe e filha.
A destruição do vestido novo, assim como os cabelos arrancados da mãe durante a briga, fazem notar que o ódio talvez ultrapasse o sujeito filha ou o sujeito mãe, e se estenda pelo feminino e seus emblemas: cabelos, vestidos, adornos, véus que velam (mal), o que se teme ver: a falta.
Uma cela
Na cena seguinte, mãe e filha entram no elevador de um edifício do qual fecham rapidamente a porta, impedindo que um jovem homem também entre. O elevador, com uma porta pantográfica vazada, permite que mãe e filha possam ver e ser vistas pelo homem que sobe as escadas. A cena é paradigmática e sintetiza, numa bela imagem, a relação das duas mulheres com o mundo exterior. Elas estão “enjauladas”, juntas e solitárias no elevador. O homem sobe as escadas correndo, sozinho, “por fora”. A entrada do homem no mesmo espaço, nesta “cela” que elas ocupam, é impossível.
A professora de piano faz um recital na casa de uma família burguesa, em meio a um jantar, assistida por uma pequena audiência. Próxima aos 40 anos, Erika não chegou a ser uma concertista. É somente uma professora de piano. Assim que acaba o concerto, a mãe se apressa a levar um abrigo para a filha.
De que uma mãe abriga seus filhos? Certamente dos perigos do mundo. Tanto de um mundo externo, como de um perigoso e violento mundo pulsional interno. Neste mundo pulsante, insistente, a mãe seria um refúgio sombreado, um espaço que procura amenizar a falta de representações do infante, – este que ainda não tem fala. A criança gestada e sonhada pela mãe, se constitui, ela própria, em uma sombra, uma sombra falada (Aulagnier P. 1979). Assim a mãe, ainda precedendo o nascimento da criança, supõe e fantasia seu filho criando esta sombra imaginária que ela projeta sobre o corpo do infante no nascimento. Já neste primeiro instante há uma imposição do olhar materno para que seu filho se molde a esta sombra por ela expressa. É a mãe que sabe do corpo de sua criança. A voz da mãe se dirige a este corpo, apaziguando-o, mas também, excitando-o. Constrói-o de maneira a que ele confirme a identidade pré-estabelecida em fantasia. Aí se dão as primeiras grandes alegrias e os primeiros desapontamentos. Escapam forças pulsionais que não conseguem ser “entendidas” pela mãe, que falha em sua tarefa de eclipsar4 o calor do mundo interno e sente que o corpo de sua criança, embora dela dependente, é já autônomo e escapa ao modelo da sombra falada. O sujeito se constitui, e constitui-se também o sujeito mãe, assim como se constrói essa primeira e paradigmática relação, nas margens da qual, por caminhos ora sombreados ora abrasadores, seguirão todas as outras relações da vida deste novo e precário ser.
A mãe, ao “falar” ao infante, toma o lugar de porta-voz. E, nas brincadeiras que faz ao limpá-lo, nos arrulhos amorosos que com ele troca ao amamentá-lo, nas cantigas com as quais o faz adormecer, “ela comenta, prediz e acalenta”5, podemos dizer, ela representa todas as suas manifestações e o insere na cultura ao enunciar os ditames de uma ordem externa, à qual ela também está submetida. Este é um passo necessário, e fundante do psiquismo da criança. Esse passo não se dá somente com leveza e graça, pois, tudo que a mãe oferece em sua fala, com ternura ou severidade, como recompensa ou punição, se dirige àquela sombra sonhada, falada e imposta àquele corpo que se supõe por ela coberto. É o ideário materno, os objetos por ela libidinizados, que vão “formatar” o infante. Há aí uma interpretação materna que já está matizada pelo princípio da realidade, pela cultura que envolve a dupla, e que colore o espaço psíquico da criança que ainda vive no nível do princípio do prazer. Essa é uma violência necessária imposta pela cultura. No entanto, pode haver um excesso. E é nesse excesso, traumático, que se faz a loucura, ou, para usarmos os termos de Erika, a professora de piano, é aí que se inicia, ainda na aurora da mente da criança, já, o crepúsculo dessa mente, da qual se espera que pense, mas cujo pensamento se teme como fonte de mudanças, de perda do controle.
O pensamento é o espaço do segredo, da individualidade, do que pode ser ocultado, e, portanto, o espaço da diferenciação. Para uma mãe excessiva, intrusiva, o pensar da criança é temido como aquilo que provoca trincas nesta relação tão firmemente articulada. É o motor da mudança. Quando a mãe de Erika lhe fala de como deve cuidar de seu trabalho, de como deve manter Schubert como seu, de como ninguém deve superá-la (ou superar a dupla, talvez, já que o sucesso da filha é o sucesso da mãe), Erika lhe diz que não é ela, mãe, que terá “como julgar meu campo musical”. Esse é o espaço no qual a mãe insiste em entrar e Erika, a duras penas, insiste em impedi-la, pois percebe que a outra face seria o enlouquecimento.
Erika, em um diálogo com o jovem pianista que por ela se apaixona, Klemmer, conta que Schubert morre com problemas mentais, assim como Schummann, outro de seus compositores preferidos. A loucura é uma vivência que ela julga conhecer, já que, revela, seu pai havia ficado, por muitos anos, num hospício onde havia falecido. Erika diz saber o que é o crepúsculo de uma mente. Penso que é isto que o filme nos faz ver. Erika passa de um suposto controle de seus sentimentos, de uma aparente frieza que a defende da dor, para um estado de descontrole, de sujeição a suas pulsões e, sem conseguir manter o domínio de seus desejos destrutivos, acaba por destruir a si própria.
Um outro
A mãe de Erika perturba-se com o interesse que o jovem Walter Klemmer demonstra por sua filha. O que poderá vir a mudar entre as duas, esse homem, esse outro tão diferente? Só há espaço, nesta “célula”, para um pai louco, morto, que não dita a lei. Mas o piano pode ser este outro. Ao exercer seu ofício, Erika cria espaço para o segredo e individuação. Schubert pode ser o homem que, pela insanidade, remete-a ao pai. Paradoxalmente, é na loucura de Schubert que Erika encontra um pai que poderia operar uma ruptura com a mãe. E, na ambivalência entre o amor e o ódio, para estas duas mulheres, o ódio supera o amor. Como lemos em Freud (1930), o outro e a necessidade que dele temos, só pode ser motivo de ódio.
A trágica professora de piano exercita esse sentimento de ódio, absorvido com o leite materno da identificação, com todos os seus alunos. Observa e aponta insistentemente suas falhas, destituindo de valor seus esforços. A pulsão de morte transborda num superego cruel, impositivo. A perversão ou desvio, neste caso, aparece na criação de uma equivalência entre ensinar e subjugar. Ataca invejosamente seus alunos pela liberdade que eles têm de buscar o prazer e de viver sua sexualidade, como ocorre com um aluno adolescente6. Mas, é especialmente má com Shober, menina feiosa que tem talento e, como ela própria, afinidade com Schubert. Tenta prejudicá-la, destruí-la. Mas, se ao vê-la, vê a si mesma, a quem então Erika destrói? E a destruição se faz na forma como instrumenta sua eroticidade. Eros e Thanatos convivem, e em sua fusão e desfusão vão delineando a sexualidade perversa de Erika. Ela não pode crescer. Esta é a ordem estabelecida para que nada mude na história que se tece entre ela e sua mãe.
Vemos Erika entrando num moderno shopping, em uma loja de artigos pornográficos. Só há homens. Ela aguarda para entrar numa cabine onde, ao assistir um filme pornô, retira do cesto de lixo lenços de papel usados, talvez ainda úmidos de esperma, e os cheira. Goza ou não? Se o faz, é com o cheiro7 do gozo masculino. Em outro momento, diz à mãe que irá ensaiar na casa de colegas até tarde e pede a ela que não ligue para lá, pois não é mais criança. Erika vai a um drive-in, e, em meio à escuridão, excita-se vendo e ouvindo casais que fazem sexo dentro dos carros. Aí, dá vazão à sua excitação urinando ao lado dos carros, como uma pequena menina, que, de seu quarto, ao ouvir ruídos do sexo dos pais, diante da cena primária, urina na cama.
Antes do jantar, no banheiro de sua casa, retira da bolsa uma gilete, e corta-se, aparentemente no clitóris. Após limpar a gilete e guardá-la cuidadosamente na bolsa, penteia-se e vai jantar com sua mãe. A dor marca e demarca o corpo. Se não há um outro cuja presença exponha limites, a dor do corte pode fazê-lo.
Qual seria o gozo dessa mutilação, dessa dor? Lembro-me de Marie Bonaparte, que se submeteu à cirurgia de retirada do clitóris com o intuito de ter acesso ao gozo vaginal, que seria, supostamente, o verdadeiro gozo feminino. O gozo do vazio, da falta. Lembro ainda da existência de culturas, nas quais, logo após o nascimento, retira-se o clitóris das meninas, para impedir o prazer sexual. No entanto, a cena não é tão explícita, e deixa que o espectador imagine… Talvez, o que Erika faça seja um corte no hímen. Tentar sair da sexualidade infantil e tornar-se mulher, entrar no mundo da sexualidade adulta? Mas, Freud (1917) nos mostra que, para que isso ocorra, é necessário que o ritual do rompimento do hímen seja executado por um outro8 que, ao romper este invólucro simbólico do corpo feminino, lhe traga a ideia de vazio, falta e, consequentemente, da alteridade. Essa é a dificuldade de Erika, deixar-se penetrar, permitir a intimidade.
No encontro com Walter, no banheiro, ordena-lhe que não a toque, ela é que irá tocá-lo, o que faz de forma mecânica e com certa agressividade, chegando a machucá-lo. Masturba-o e o observa impassível, impõe e comanda o gozo dele. Não goza.
Intimidade e dor
O filme expõe contrastes, alternâncias entre cenas que propõem ao espectador certa beleza, algum calor de sentimentos e cenas incomodas que retiram quem o assiste do conforto da poltrona, tornando-o voyeur de uma sexualidade opressiva, subjugante. O espectador é invadido e é também colocado na posição de um invasor da cena. A banalidade com que Erika se corta, assiste a filmes pornográficos, sem expressar prazer ou dor, sem sequer mudar sua expressão, impacta. Assim é na perversão. O controle em relação ao objeto deve ser total. Não se pode sair do script. É como se a perversão, o fetiche, fossem sempre muito “justos”, apertados demais para tamponar a angústia que surge caso a falta se faça notar. A fantasia incestuosa é vivida diretamente, não simbolizada, como na cena em que Erika busca com a mãe a relação sexual que não se permite com mais ninguém. Tudo deve ser medido com cuidado para que não haja escapes. É assim o pedido que Erika faz a Walter numa minuciosa carta na qual descreve todos os movimentos que devem ser seguidos na “atividade” sexual da dupla. Assim procedendo, o que Erika evita é exatamente que haja uma dupla. A perversão transforma o outro em “algo”, com o qual se goza. O objeto tem uma opacidade na medida em que é uma extensão do próprio corpo. Não é possível o contato, se não há outro. No início do filme, Erika caminha num movimentado Shopping Center, e, em meio à multidão, um desconhecido esbarra em seu ombro. Erika limpa insistentemente o ombro, o local do “perigoso” contato.
Walter tenta seduzi-la, quer abraçá-la, tocá-la, conversar com ela. Conversar talvez seja uma das maneiras mais claras de viver a alteridade. Num diálogo, explicita-se a diversidade do pensamento, a diferença do que se tem de mais íntimo. Erika não consente nessa aproximação. É através dos instrumentos que guarda debaixo da cama (como uma menininha que esconde seus tesouros da mãe) que se aproxima. As cordas para amarrá-la, subjugando-a, são concretizações da prisão que vive com sua mãe, e com ela própria. Quando Walter sai de sua casa, após satisfazer as fantasias sadomasoquistas de Erika, machucando-a, é na cama, com a mãe, que Erika se consola. Na relação incestuosa, a professora de piano não é mais do que uma pequena menina curiosa com a sexualidade da mãe, – “vi os pelos do seu sexo”9 lhe diz – cujo único desejo é ser para sempre a menina da mamãe.
Com a carta na qual ordena os atos que Walter deve realizar para “amá-la”, ela, busca deter o poder da relação impedindo intimidade e conhecimento. Exerce sua “função” de professora perversa. No entanto, à medida que ele se nega a fazer esse jogo, é ele que passa a ter o domínio. Erika se depara com alguém que não a obedece, que efetivamente a submete e de quem necessita. A partir desse ponto, vemos a degradação emocional de Erika. Seu crepúsculo.
Percebemos também que Walter acaba preso nas tramas da perversão. Após tentar desvencilhar-se, cede e deixa emergir seus aspectos perversos. Lê com horror a carta, mas termina por atuá-los, até prazerosamente com Erika. Invade sua casa, possui-a à força (como Erika exigia na carta). Age assim, após perceber-se “louco, masturbando-me embaixo de sua janela, você é louca e quer me enlouquecer”. Também ele perde, por alguns instantes, a sua autonomia, recuperada logo a seguir. Em vários momentos do filme, Walter triunfa sobre Erika, como ocorre nesta cena. Logo após a prova de admissão para o conservatório diz, arrogante, que sua apresentação foi brilhante. Após um encontro sexual com Erika no banheiro asséptico do conservatório, corre e pula pelo corredor atapetado de vermelho, em claro contraste entre uma sexualidade contida e outra esfuziante, e, na última cena, entra no teatro rindo e desprezando Erika. Há no personagem um tom de arrogância e poder, desde o primeiro encontro com a professora. Walter se constitui num homem que não se dobra às negativas da professora. Pelo contrário, invade seus espaços, a sala de aula, sua casa, a cabine do banheiro. Faz o que a mãe dela sempre fez, e assim reedita uma dupla sadomasoquista10. Esse cenário, onde se origina?
Freud (1919) vai seguindo passo a passo uma fantasia infantil e aporta na ideia de que ao fantasiar que apanha de seu pai nas nádegas, a criança serve a dois senhores. Nesta fantasia masturbatória, o desejo edípico da criança, ser tocada pelo pai11, se realiza ao mesmo tempo em que é punida por esse desejo. Os dois senhores? Eros e Thanatos imbricados e satisfeitos na mesma fantasia. Assim também, em “O Problema Econômico do Masoquismo”, texto de 1924, Freud entende que a culpa “inconsciente” pelos desejos edípicos seria punida com torturas infligidas ao sujeito, que, no entanto, retiraria delas um enorme prazer.
Sentir os odores do gozo masculino, provocá-lo, ou impedi-lo, no outro, e manter-se observadora, colocar-se subjugada, maltratada pelo homem, determinando o gozo deste, e não gozando, imputar-se dores e mutilações são as formas de sexualidade que Erika se permite. Afasta-se da mãe e mantém-se unida a ela, no manter sob controle o gozar do outro. Não há consideração pelo objeto, e sim despersonalização, desubjetivação, como maneira de evitar a intimidade e dependência ameaçadoras.
Eliane R. de Moraes (in Sade, 1991), nos conta como os libertinos de Sade rejeitam todo tipo de relações que impliquem dependência entre indivíduos: sentimentos de compaixão, fidelidade, solidariedade, levam à escravização. As virtudes são para os fracos, merecendo o amor, signo da falta, marca da carência, nada mais que desprezo. E, citando Dolmancé, personagem sadeano: “E cada um de nós não é para si mesmo o mundo inteiro, o centro do Universo?”.
Freud (1905) expõe a sexualidade humana como desviante, pois, fundada nas pulsões de auto-conservação, na necessidade, dela se desvia em busca do prazer. É um texto revolucionário num início do século XX: “… sob a influência da sedução, as crianças podem tornar-se perversas polimorfas e podem ser levadas a todas as espécies possíveis de irregularidades sexuais. Isto mostra que uma aptidão para elas existe inata na disposição das crianças.” Freud continua e conclui que “… esta mesma disposição para as perversões de toda a espécie é uma característica humana geral e fundamental”. A maneira como esta sexualidade é instrumentada na busca do prazer, e o investimento no objeto, a partir do interjogo entre Eros e Thanatos, é determinante.
Cem anos depois de Freud, Michael Parsons (2002), descortina, através de alguns autores, parte do panorama que pode nos ajudar na difícil aproximação à perversão e à Erika. Mc.Dougall (1986), aponta que a ideia de perversão somente pode ser referida a relacionamentos, nos quais, como propõe Stoller (1985), há uma despersonalização do objeto, uma tentativa de desumanizar o outro para evitar a intimidade. Khan (1974) fala da perversão como o maior esforço em busca de uma intimidade, ao mesmo tempo que é uma defesa frente a ela12.
Na perversão o objeto é uma extensão sem limites do próprio corpo, usada como suporte para a descarga da pulsão. Erika goza no corpo de Walter. Olha para o pênis ereto deste e o impede de se tocar. O pênis é dela.
Para Green, o objeto revela a pulsão exatamente como um revelador químico faz em uma película de filme fotográfico. Objeto este que vai sendo impresso e para sempre marcado, desde a “fotografia”, tirada no momento do emblemático primeiro encontro com o seio materno, modulado com o som da voz da mãe e colorido pelo seu olhar. E assim, qual detalhe desta cena será para sempre guardado, e passará a ser o “disparador” para o aparecimento, na memória, daquele primeiro retrato, será sempre um mistério, que se repetirá a cada novo encontro na busca eterna deste primeiro objeto. Essa é também a maneira como se constitui o fetiche, “detalhe significativo” que ativará a sexualidade, e que ficará para sempre colado sobre o primitivo objeto de desejo, criando para o sujeito um cenário que o despiste da visão da incompletude do objeto.
Nos jogos perversos, na verdade, não há jogo. Há um controle da situação, sem entrega, sem espaço para a fantasia, que é o verdadeiro motor de um jogo sexual. Imagino se para essa professora de piano existe essa possibilidade, se em algum momento a fantasia pode acontecer. Vemos que o que é capaz de provocar uma mudança de expressão, alguma comoção em Erika, é a música, apesar de tentar conter-se, controlar-se para que seus sentimentos não lhe escapem. Nos movimentos musicais, ela pode ver nuances. Observa com cuidado as variações e intensidades dos tons e ritmos das peças musicais. Ela diz para Walter durante uma aula: “Schubert vai do grito ao sussuro.” Será que Schummann e Schubert fariam, em seu mundo pulsional, a sombra que sua mãe não pode fazer? Poderiam, através da música, nuançar um mundo de sentimentos onde a alteridade se fizesse presente? Seria possível criar um outro cenário?
Na Realidade de um Cenário
Se o cenário criado é a morte, a dor, a submissão, onde e como esse cenário foi apreendido como fonte de prazer?
A resposta a essa pergunta não está no filme. Talvez essa seja uma pergunta para a qual não haja resposta e, como psicanalistas, possamos somente tecer hipóteses, pois a verdadeira estória fica sempre submersa naquele espaço onde a palavra não habita. Para não nos perdermos ao caminhar pelo labirinto de ideias, o fio de Ariadne que tomamos como guia é sempre a clínica. A teoria, para Freud, surgiu de sua observação às pacientes que o procuravam para curar suas dores.
Não cabe aqui, pelo cuidado e respeito ao segredo13 do paciente, expor uma situação clínica. Um filme é um tema no qual o psicanalista pode apoiar sua escuta para evocar sua experiência viva com as pessoas de cujo sofrimento se aproxima e busca compreender. Entre o cinema e o divã há uma ferida viva que não termina quando as luzes da sala se acendem. No entanto, na sensibilidade da cena de um filme, muitas vezes, encontra-se um tênue fio que reflete a dor que deveras se sente14.
Num processo de análise, as cenas se repetem e as cenas mudam. Erika submerge tomada como refém da mãe que também não suporta as diferenças, a passagem do tempo, a própria feminilidade, e uma ausência paterna que, ao não fazer o corte entre mãe e filha, não permite que Erika se destaque. O incesto no qual não há o corte e a individuação, cria a cena perversa. Um genitor narcísico engloba o filho, não como um outro, mas sentindo-o como uma extensão de si mesmo. No artigo Incesto: o corpo roubado (Tesone, 2005), lemos “O desejo de um, não é compatível com o desejo do outro. Em sua ‘utopia totalizante’, o pai (mãe) incestuoso (a) vivencia-se como o dono do tempo e o dono da morte”. Lembramos também Ferenczi (1932), sobre a confusão de línguas entre adulto e criança, situação na qual a criança entende como ternura e jogo lúdico, a sexualidade que o adulto lhe impõe, e que assim, se inscreve como traumática.
Mas o filme, em sua polissemia, como toda obra de arte, abre várias vertentes para o imaginário. Deixa brechas para que, assim como nos diz Green, possamos “dar ouvidos” à nossa escuta particular. Este foi nosso exercício neste trabalho. A psicanálise abre o campo para outras escutas, com outras teorias, para observarmos outros ângulos de cada história.
E por fim…
A cena, no caso de Erika, não muda. Walter poderia apontar para um outro caminho. O final do filme, no entanto, nos mostra essa impossibilidade. Ela repete a cena traumática, atuando-a, ora na posição passiva, ora como aquela que submete Walter obrigando-o a obedecê-la.
Nessa repetição não se promove a simbolização. A cena incestuosa impede. A pulsão de morte domina o palco, como no “deslizamento” de Erika, que se lança com o olhar perdido sobre a branca e vazia pista de gelo, após um frustrado encontro que poderia ter sido amoroso.
No dramático Lied de Schubert tocado no filme está sintetizado este pungente final. Erika apunhala-se no peito15 e sangra pelas ruas de Viena, enquanto na sala de concertos, a música prossegue. Na letra do Lied, a indiferença diante da tragédia mantém o contraste com o qual Haneke pontua todo o filme:
Os cães latem, sacodem as correntes/ As pessoas dormem em suas camas.
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*Versão modificada de trabalho apresentado em reunião científica na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) em 31 de Maio de 2007.
**Raya Angel Zonana é Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, médica psiquiatra Faculdade de Medicina USP.
Notas
1. Revista Ide da SBPSP – n° 30 – 1977 – p 81.
2. Schöemberg foi o compositor que rompeu definitivamente com a estética musical vigente no final do século XIX, acelerando um processo de erosão da antiga ordem na música. Chamou de emancipação da dissonância, a rejeição do sistema harmônico diatônico, e ao longo do século XX, cria a música dodecafônica. ( Schorske,C.E. – Viena Fin de Siècle – Companhia das Letras – 1988 SP).
3. Entre os filmes mais conhecidos deste diretor, estão A Fita Branca, premiado em Cannes em 2009, e Caché (2005). A professora de Piano recebeu, em 2001, em Cannes, o prémio do Júri como melhor filme.
4. Armando Ferrari, psicanalista italiano, entende como uma função da mãe, a possibilidade de eclipsar para seu bebê o facho de intensa luminosidade que as pulsões impõem à criança, nesse momento ainda sem condições de mediá-las, representá-las.
5. Aulagnier, P. – A violência da Interpretação: do pictograma ao enunciado (p.106) RJ – Imago 1979.
6. Podemos pensar também no acesso à sexualidade que, em nossa cultura, ainda é mais permitido ao homem. O filme alude a esta questão e Erika “fareja” o gozo masculino.
7. Freud, em vários textos reafirma a ligação do olfato com a sexualidade. O Homem, ao passar para a posição ereta, desvaloriza o olfato, priorizando a visão. O olfato, entretanto, permanece ligado à sexualidade primitiva. Freud nos lembra que as crianças gostam do cheiro de suas secreções, assim como para os adultos elas são importante fator de excitação sexual. Em vários momentos Erika mostra sua excitação (quando Walter toca piano, por exemplo) passando um lencinho no nariz, esfregando-o, enfim, excitando-se.
8. Em Tabu da Virgindade, Freud mostra como em certas culturas, o rompimento do hímen é executado ritualisticamente por uma outra mulher, ou por um homem mais velho, e não pelo marido. Porém, há sempre um outro que ao romper o hímen, introduz a mulher no mundo da sexualidade, assim chamada, adulta, ou genital.
9. Também os pêlos femininos tornam-se um fetiche, através do qual, a visão da mãe como não possuidora do pênis é “recusada”.
10. O filme é baseado em uma novela da escritora austríaca Elfriede Jelinek, com aspectos autobiográficos. Na versão escrita, o personagem de Walter tem alguns elementos que o ligam ao nazismo, o que nos remete a um outro filme que trata dessa mesma questão: “O Porteiro da Noite”. (Liliana Cavanni)
11. O nome Walter, aproxima-se da palavra Vater, que em alemão significa pai.
12. Os trabalhos de Mc Dougall, Stoller e Khan aqui referidos, estão citados no texto de Michael Parsons de 2002.
13. Segredo aqui, tomado não somente como sigilo medico, mas também com a ideia de intimidade, de individualidade e identidade com o qual esta palavra é usada por Aulagnier, já citada anteriormente neste trabalho.
14. Referência ao poema Autopsicografia de Fernando Pessoa, do qual transcrevo o trecho a seguir: O poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente.
15. Esta cena ocorre de forma muito semelhante, também em um filme mais recente “Cisne Negro”, dirigido por Darren Aronofsky, de 2011, cuja temática é a mesma de “A Professora de Piano”.
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Belíssimo texto! Obrigada!