Notas psicanalíticas sobre o Fantasma de Murnau

Amadeu de Oliveira Weinmann[1]

Resumo: A partir do filme Fantasma, de F. W. Murnau, o artigo propõe uma reflexão sobre a pregnância do tema do duplo na literatura romântica do século XIX, no cinema alemão do início do século XX e na própria psicanálise freudiana. Operando com conceitos elaborados por Freud em O estranho, este trabalho sugere que o duplo consiste no avesso do sujeito racional iluminista, isto é, em um sinistro porta-voz de seu desamparo constitutivo.
Palavras-chave: psicanálise, cinema, duplo, expressionismo, racionalismo.

Psychoanalytic notes on Phantom, by Murnau

Abstract: From the film “Phantom”, by F.W. Murnau, the article proposes a reflection upon the pregnancy of the theme of the Double in the romantic literature of the 19th century, in the German cinema of the early 20th century and in Freudian psychoanalysis. Operating with concepts elaborated by Freud in his essay “The Uncanny”, this paper suggests that the double consists on the reverse of the Enlightenment’s rational subject, i. e., on a sinister spokesperson of its constitutive helplessness.
Keywords: psychoanalysis, cinema, double, expressionism, rationalism.

Introdução

O filme Fantasma, lançado em 1922 por F. W. Murnau e inspirado no romance homônimo de Gerhart Hauptmann, também publicado em 1922, apresenta estranhas ressonâncias com a teoria psicanalítica. Nele, o problema do duplo – trabalhado com maestria por Freud em O estranho[2], de 1919 – é explorado em todo seu potencial disruptivo. Isso não consiste exatamente em uma novidade, pois tal tema tem raízes profundas na literatura romântica do século XIX e encontra-se presente em outros filmes do expressionismo alemão. De fato, é precisamente essa recorrência o que intriga. Não há de ser por casualidade que Freud toma um conto fantástico de E. T. A. Hoffmann – O homem de areia, de 1815 – como ponto de partida para suas reflexões. O duplo está no zeitgeist – o espírito do tempo.

A partir dos conceitos elaborados por Freud em O estranho, este artigo procura compreender a pregnância da temática do duplo no cenário cultural em que florescem o romantismo, o cinema expressionista e a própria psicanálise. A hipótese assumida é de que ela corresponde à cisão do sujeito delineado pelo racionalismo iluminista, decorrente da perda de seu suporte ontológico transcendente: a morte de Deus. Dito de outra forma, o duplo consiste no sinistro porta-voz do desamparo constitutivo do homem das Luzes.

O problema do duplo no Fantasma, de Murnau

Lorenz Lubota (Alfred Abel) é um modesto servidor público, que sonha em ser poeta. Um dia, a caminho do trabalho e perdido em devaneios, é atropelado pela carruagem da bela e rica Veronika Harlan (Lya de Putti). Lorenz transtorna-se. Esquece Marie Starke (Lil Dagover), que o ama em silêncio, negligencia seu emprego e descuida de sua sofrida mãe (Frieda Richard). Obcecado por Veronika e iludido com a ideia de que será um grande poeta, Lorenz pede dinheiro emprestado à sua tia Schwabe (Grete Berger), que é agiota, a fim de vestir-se melhor e, assim, impressionar sua amada. No entanto, seus esforços no sentido de tornar a ver Veronika fracassam. Incitado por Wigottschinski (Anton Edthofer), o inescrupuloso amante de Schwabe, a usufruir do dinheiro da tia, Lorenz encontra Melitta (Lya de Putti), uma sósia perfeita de Veronika. A partir desse momento, o protagonista entrega-se de corpo e alma a proporcionar ao duplo de sua amada todo o luxo que o dinheiro de sua tia pode comprar. Descoberta sua fraude, necessitando de mais recursos e dominado pela paixão, Lorenz alia-se a Wigottschinski em um roubo, que culmina no assassinato de Schwabe.

A exposição dos efeitos perturbadores – para não dizer sinistros – do encontro com o duplo é um dos temas recorrentes no cinema alemão do início do século XX. Em 1913, O outro, de Max Mack, trata da angústia de um homem que, após um acidente, desenvolve uma dupla personalidade (CÁNEPA, 2008). Nesse mesmo ano, Stelian Rye dirige O estudante de Praga, filme com roteiro do escritor de contos de horror Hanns Heinz Ewers, inspirado em Fausto, de Goethe, A singular história de Peter Schlemihl, de Adelbert von Chamisso, A imagem perdida, de E. T. A. Hoffmann, A noite de dezembro, de Alfred de Musset, William Wilson, de Edgar Allan Poe, O duplo, de Dostoiévski, O Horla, de Guy de Maupassant, e O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, dentre outras obras literárias que tematizam o fenômeno do doppelgänger (MÜLLER, 2008)[3]. É curioso observar que Otto Rank, em seu trabalho O duplo, de 1914 – importante fonte de O estranho, de Freud –, toma como ponto de partida para suas reflexões essa história de Ewers e debruça-se sobre uma farta produção literária (especialmente de cunho romântico), mitológica e folclórica, que tem na problemática do duplo seu foco principal (MÜLLER, 2008; SANTOS, 2009).

Em O estudante de Praga[4], Balduin (Conrad Veidt) – um jovem ambicioso, mas pobre – em um momento de desalento encontra Scapinelli (Werner Krauss), um homem mais velho, que promete ajudá-lo. Com seus poderes demoníacos, Scapinelli cria a oportunidade de Balduin salvar a condessa Margaret (Agnes Esterhazy) e sussurra no seu ouvido: “lá vai a sua rica herdeira”. Atormentado por não possuir recursos financeiros para cortejar Margaret, que está comprometida com o Barão Waldis-Schwarzenberg (Ferdinand von Alten), o protagonista recebe a visita de seu Mefistófeles, que lhe propõe um pacto: em troca de um objeto qualquer de seu quarto, Scapinelli oferece seiscentas mil peças de ouro. Entusiasmado, o jovem aceita a proposta, mas se surpreende com o objeto reivindicado: sua imagem no espelho. Agora rico, o rapaz não mede esforços para conquistar a condessa. No entanto, seu duplo está decidido a atrapalhar seus planos. Desafiado pelo barão, Balduin, considerado o melhor espadachim de Praga, promete não matar o rival, mas seu outro eu antecipa-se e assassina Waldis-Schwarzenberg. Enlouquecido, Balduin atira em sua imagem. Porém, é seu peito que sangra.

No mais importante filme do expressionismo alemão – O gabinete do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene –, o problema do duplo também se coloca, ainda que de um modo mais sutil. O Dr. Caligari (Werner Krauss) solicita autorização para expor o seu espetáculo na feira anual de uma pequena cidade alemã. Seu assistente Cesare (Conrad Veidt) é um sonâmbulo que, sob hipnose, adivinha o futuro. Entretanto, suas previsões são funestas e logo surge a suspeita de que o próprio Cesare encarrega-se de cumpri-las. Intrigado, Francis (Friedrich Feher) descobre que o Dr. Caligari é diretor de um hospital psiquiátrico e que pesquisa o sonambulismo. Assombrado diante do projeto macabro do doutor, Francis acusa-o de usar Cesare como seu duplo, isto é, de valer-se de sua susceptibilidade para realizar seus impulsos assassinos. No entanto, o final do filme é ainda mais surpreendente. Francis, que encarna a crítica racional dos abusos do poder, também tem seu duplo: ele, que é o narrador da história, é um louco internado no manicômio dirigido pelo Dr. Caligari.

Nesse sentido, Fantasma é um dentre outros filmes com temática fantástica, dotados de uma atmosfera sombria e aos quais o fenômeno do duplo confere um aspecto sinistro, que pululam no cinema alemão das décadas de 1910 e 1920 (CÁNEPA, 2008)[5]. No entanto, impressiona o modo como o duplo opera nesse filme de Murnau. Se Lorenz é o homem mais correto do mundo, o único em quem Schwabe confia, sua irmã Melanie (Aud Egede Nissen) é a desgraça da família, pois se prostitui. Enquanto Lorenz é um filho sem pai, Marie é uma filha sem mãe. A mãe de Lorenz trabalhou como uma mula a vida inteira, mas é pobre e infeliz. Em contrapartida, tia Schwabe é rica e poderosa, graças à impiedosa exploração dos que necessitam de seu dinheiro. Se, por um lado, Veronika só é vista por Lorenz – e pelos espectadores – em uma única cena, pois tem um pai que a preserva, por outro, Melitta é oferecida por sua mãe a Lorenz – e pelo diretor a nós.

Nessa trama, a atriz Lya de Putti encarna um dos mais típicos fantasmas da psicologia masculina: o da cisão em a inacessível e a fácil, imagem simétrica e invertida uma da outra, duas faces da mesma mulher. Dito de outra forma, Veronika consiste em uma personagem recorrente no cinema: a da mulher que desaparece. De acordo com o filósofo Slavoj Zizec (2010), tal temática alude à mulher total – A mulher –, aquela que seria capaz de suprir a falta em um homem. Na perspectiva lacaniana, essa mulher não existe, ou seja, dela não há registro simbólico. O encontro com ela só pode ser alucinatório – e Lorenz Lubota é o tempo todo atormentado por imagens oníricas, nas quais persegue a carruagem que conduz sua amada. E aqui temos aquela que talvez seja a mais importante manifestação do duplo no Fantasma, de Murnau. Lorenz mostra-se cindido entre a imagem de si construída em conformidade com o superego materno – a de um homem honesto – e o que acaba se tornando, a fim de conquistar a mulher com quem supostamente a relação sexual seria possível: um canalha como Wigottschinski.

Por fim, o fenômeno do duplo expressa-se nesse filme ainda de outro modo, não vinculado a um personagem. Sua história trágica dobra-se em uma moldura melodramática. Na abertura, o escritor e dramaturgo Gerhart Hauptmann, prêmio Nobel de literatura em 1912 – do qual o protagonista é um espectro ridiculamente esmaecido –, aparece segurando um livro. Ato contínuo, vemos Lorenz e sua esposa Marie em uma casa de campo. Lorenz queixa-se de sua vida e Marie entrega-lhe um caderno, presente de seu pai, para que seu marido escreva a história de seus sofrimentos. E este é o prólogo de Fantasma. No epílogo, Marie e seu pai esperam Lorenz na saída da prisão e dirigem-se a uma casa de campo, em uma cena que antecede imediatamente a do prólogo. Lorenz, personagem inteiramente dominado por uma mater dolorosa, encontra em seu sogro um suporte para sua masculinidade precária, que o amor de Marie não é suficiente para dissimular.

O duplo: um outro estranhamente familiar

Neste artigo, o texto O estranho, de Freud, exerce uma dupla função. Por um lado, oferece conceitos para pensar a questão do duplo. Por outro, é uma das obras que têm no tema do duplo um objeto primordial. Neste último sentido, ela tem de ser analisada como pertencente ao mesmo solo cultural do Fantasma, de Murnau – o que será realizado na próxima seção. Na presente seção, são os conceitos criados nesse fundamental trabalho freudiano o que interessa descrever.

Em O estranho, Freud interroga-se acerca das condições em que algo é percebido como sinistro. A partir de uma análise etimológica, o autor mostra que a palavra alemã unheimlich tem como oposto heimlich: familiar, doméstico, íntimo. Nessa perspectiva, sinistro seria o não familiar. Porém, nem todo o desconhecido é terrorífico. Ademais, heimlich também possui outros sentidos: algo oculto, clandestino, secreto, isto é, escondido de olhares estranhos, subtraído do conhecimento alheio. Por sua vez, unheimlich também significa dissimulado, suspeito, tenebroso, espectral. Nas palavras de Schelling (apud FREUD, 1984, p. 224): “denomina-se unheimlich a tudo o que, estando destinado a permanecer em segredo, oculto, vem à luz”. Assim, no largo espectro de sentidos da palavra heimlich há um que coincide com unheimlich. O sinistro mantém estranhos vínculos com o familiar.

Em sua análise de O homem de areia, de Hoffmann, Freud procura elucidar esse enigma. Desde o seu ponto de vista, o caráter sinistro desse conto fantástico decorre de algo extremamente familiar: a angústia de castração do menino, simbolizada no temor de que lhe sejam arrancados os olhos. Nesse sentido, o homem de areia não é outro senão o temido duplo do pai benevolente da infância. No entanto, a análise etimológica mencionada acima requer que essa questão seja posta em outros termos. Mais precisamente, o que há de unheimlich nessa obra é o fato de, por meio dela, vir à luz, ainda que de um modo deformado, algo que teria que permanecer oculto: o desejo incestuoso.

O duplo, de Otto Rank, é outra importante fonte para a reflexão freudiana. Freud (1984, p. 235) sintetiza assim a tese de Rank: “[…] o duplo foi, em sua origem, uma segurança contra o sepultamento do eu, ‘uma enérgica denegação do poder da morte’ […], e é provável que a alma ‘imortal’ tenha sido o primeiro duplo do corpo”. De acordo com o criador da psicanálise, tal concepção vincula-se ao narcisismo primordial. Porém, “[…] com a superação [ontogenética e filogenética] dessa fase, muda o signo do duplo: de um assegurador da sobrevivência do eu, passa a ser um sinistro anunciador da morte” (id., p. 235). Dito de outra forma, o caráter sinistro do duplo reside em que, por meio dele, algo que estava destinado a permanecer secreto – o temor do aniquilamento do eu, o qual consiste na contrapartida de sua onipotência – devém consciente.

Freud refere-se a outros fenômenos frequentemente percebidos como sinistros: a insistente repetição de determinados eventos, que não podem ser atribuídos à casualidade, a imediata realização de desejos enunciados, o cumprimento de certos pressentimentos, a ocorrência de um ataque epilético, a inesperada visão de um cadáver, dentre outros. E sugere que tais episódios suscitam uma atitude supersticiosa, mesmo naqueles cujo juízo crítico as repudia. Em outras palavras, o psicanalista propõe que algo do sistema animista de pensamento habita o sujeito moderno e que sempre que uma representação dessa ordem irrompe na consciência seu efeito é um estranhamento radical. A partir dessas distintas análises, Freud extrai uma conclusão: “[…] o sinistro é o outrora doméstico, o familiar de antigamente. Nesse sentido, o prefixo ‘un’, da palavra unheimlich, é a marca do recalcamento” (id., p. 244).

O duplo: o avesso da racionalidade positivista do século XIX

Evidentemente, o tema do duplo não é objeto de interesse apenas da literatura romântica, do cinema expressionista e da psicanálise. Ao longo da história da cultura ocidental, tal problemática também aparece nos discursos religiosos e filosóficos, assim como nos mitos, no folclore, na pintura e na música. Em Um périplo pelo território duplo, Adilson Santos faz uma excelente revisão do assunto. Na literatura ocidental, esse tema remonta à Antiguidade Clássica e consiste em um modo de assinalar a oposição de contrários. Porém, até a Renascença o duplo está ligado a uma concepção unitária do sujeito. Os personagens – gêmeos ou sósias – são idênticos, mas têm identidade própria. A partir do século XVII, inicia-se um processo de progressivo abandono dessa concepção e de formação de uma tendência de representação do heterogêneo: o alter ego, um outro eu. No entanto, é especialmente no século XIX que o duplo passa a indicar, incisivamente, a cisão do sujeito e temas tradicionais da psiquiatria – como o sonambulismo, a hipnose e a histeria – somam-se aos do sujeito que vendeu sua alma, ou perdeu sua imagem no espelho (ou sombra, reflexo na água, etc.) ou, ainda, se tornou prisioneiro de sua representação em um retrato.

É nesse solo que floresce a teoria psicanalítica. Em Viena e as origens da psicanálise, Mezan procura delinear o laço existente entre as elaborações conceituais freudianas e a cultura de seu tempo. De acordo com esse psicanalista, Freud teve uma sólida formação clássica, isto é, conhecia muito bem a literatura germânica dos séculos XVIII e XIX, lia voluptuosamente Shakespeare e outros autores ingleses e estudou por vários anos o grego e o latim. Ademais, possuía um vasto conhecimento da Bíblia, decorrente do respeito à tradição judaica vigente em sua casa. Ao ingressar na Universidade de Viena, também se interessou pela filosofia e frequentou cursos com Franz Brentano. Todavia, Mezan (1996, p. 89) assinala: “[…] a influência intelectual mais decisiva sobre ele foi a exercida por seu professor de fisiologia, Ernst Brücke”. E, juntamente com Helmholtz e Du-Bois Reymond, Brücke encarnava a mais poderosa tendência em filosofia das ciências do século XIX: o positivismo, que pretendia impor às ciências humanas os métodos das ciências naturais.

A princípio, essa afirmação surpreende, pois, no que concerne ao nascimento da psicanálise, é frequente atribuir-lhe raízes no romantismo alemão e laços de solidariedade com as vanguardas artísticas e intelectuais da Belle Époque. Ainda de acordo com Mezan, os movimentos culturais que irrompem no cenário europeu a partir de 1890 (época em que aparecem os primeiros textos psicanalíticos) costumam ser designados irracionalistas ou anti-intelectualistas. No entanto, o autor sugere que seu traço comum é uma atitude de revolta contra o positivismo, entendido como uma visão de mundo (weltanschauung). Em filosofia das ciências, isso implica retomar o problema do sujeito no que há para além da razão e da medida. Nas artes, “trata-se da dissolução paulatina dos códigos expressivos herdados da tradição renascentista, barroca e clássica [grifos do autor]” (id., p. 93). Na pintura, a fotografia torna prescindível a figuração realista e, a partir do impressionismo, a perspectiva tende a ser abandonada em prol de uma deformação criativa. Na literatura, a ênfase desloca-se da descrição naturalista dos personagens e da sociedade para as inovações estilísticas. Na música, a escala tonal cede espaço para o dodecafonismo. É a representação objetiva da realidade – noção que enlaça o positivismo, em filosofia das ciências, e o realismo, nas artes – o que é posto em questão.

Nessa luta de titãs, Freud ocupa um lugar muito singular. Por um lado, “[…] era efetivamente um positivista, e seu projeto era o de introduzir as concepções e os métodos da ciência no território da alma, até então reservado aos poetas, romancistas e filósofos” (id., p. 98). Isso fica evidente em conceitos como os de forças psíquicas, resistência, investimento energético das representações, dentre outros que parecem terem sido tomados da física. Por outro, foi reconhecido pelas vanguardas da Belle Époque – e será incensado pelas vanguardas dos anos 1920[6] – como um dos seus, por ter lançado luz sobre esse duplo do sujeito da razão positiva: o inconsciente. Mezan define Freud como um pesquisador racionalista e materialista, cujo pensamento se curva diante das determinações de seu objeto. Mais precisamente, a análise racional da não razão conduz o instaurador do discurso psicanalítico à literatura: da Bíblia à tragédia grega, de Shakespeare ao romantismo alemão do século XIX.

Porém, o parentesco do trabalho de Freud com o das vanguardas de seu tempo não se reduz às suas elaborações conceituais. É sobretudo por meio de sua técnica – a regra da livre associação e sua contrapartida, a atenção flutuante do analista – que a psicanálise promove a dissolução paulatina dos códigos expressivos vigentes. Nas palavras de Mezan: “o convite para associar implica a ruptura dos vínculos lógicos e o silenciamento da censura moral por parte do paciente […]” (id., p. 96). Dito de outro modo, é especialmente por meio de seu dispositivo clínico que a invenção freudiana possibilita ao duplo do sujeito da razão positivista expressar-se em sua linguagem estranhamente familiar.

A partir dessas formulações, é possível expor, ainda que preliminarmente, a hipótese deste trabalho. Se o tema do duplo aparece com insistente recorrência na literatura romântica do século XIX e no cinema alemão do início do século XX, e se consiste em um motivo para a reflexão psicanalítica, é porque concerne ao que há de recalcado no contexto cultural em que tal problemática se constitui, ou, mais precisamente, a algo que, estando destinado a permanecer encoberto, subitamente vem à luz. Em outras palavras, a persistente tematização do duplo alude ao avesso da racionalidade positivista e consiste no sinistro anúncio da morte de tal weltanschauung. No entanto, ainda é preciso mostrar como isso opera no Fantasma, de Murnau, em um registro que não o do roteiro, privilegiado nas análises até aqui realizadas por este artigo. E isso implica tecer alguns comentários acerca da estética expressionista.

Expressionismo: o duplo da racionalidade técnica do II Reich

Em 1911, o crítico de arte Herwath Walden, editor da revista Der sturm (A tempestade), cunha o termo expressionismo, a fim de assinalar o contraste entre a pintura impressionista e as obras de dois grupos de pintores: Die brücke (A ponte), surgido em Dresden, em 1905, e Der blaue reiter (O cavaleiro azul), formado em Munique, em 1911. Na perspectiva de Walden, enquanto o impressionismo visa captar os efeitos da luz sobre objetos visíveis, o expressionismo ocupa-se do que há de imperceptível e profundo na alma humana (CÁNEPA, 2008). Em termos técnicos, as obras de pintores como Kandisnky e Paul Klee caracterizam-se pela distorção das linhas, com ênfase na criação de formas alongadas, pelo uso de cores não naturais – por vezes extáticas, por vezes lúgubres –, pela recuperação do valor expressivo do preto e branco, pelo empastamento espesso, pelas pinceladas vigorosas, pela utilização de técnicas de xilogravura e pelo repúdio à imitação da natureza. Mediante esses procedimentos, os expressionistas pretendem reacender a força vital da arte, tornada anêmica pela sociedade industrial (McGINITY, 2011).

No entanto, o expressionismo não se restringe à pintura. Na literatura, poetas e romancistas operam uma desconstrução da sintaxe e procuram criar atmosferas emocionais densas, quando não catastróficas. Na música, as composições atonais de Schöenberg ilustram sua ruptura com os códigos estéticos. Na dança, Isadora Duncan e Rudolf von Laban libertam os movimentos espontâneos do corpo. No teatro, dramaturgos, como Gerhart Hauptmann, e diretores, como Max Reinhardt, procuram expressar os aspectos obscuros – por vezes demoníacos – da psique dos personagens, através de cenários fantásticos, efeitos de iluminação e maquiagem carregada. Na raiz de todas essas tendências, encontra-se o princípio, avesso ao positivismo, de que a subjetividade é a realidade crucial. Formulado pelo movimento Sturm und drang (Tempestade e ímpeto), no final do século XVIII, tal princípio permeia o romantismo, atravessa a filosofia nietzschiana e desemboca no pensamento freudiano, antes de florescer no expressionismo (CÁNEPA, 2008).

No cinema, o marco inaugural desse movimento é O gabinete do Dr. Caligari. Seu aspecto sinistro decorre de vários fatores, além do roteiro. Os cenários, dotados de pouca profundidade, mostram ruelas tortuosas e casas inclinadas, o que confere ao filme seu característico aspecto claustrofóbico e sombrio, reforçado por uma iluminação titubeante, pela maquiagem pesada e pela grande carga dramática da interpretação dos atores. Na primeira metade dos anos 1920, muitos filmes assumem essa orientação estética. De acordo com Cánepa (2008), é possível enlaçá-los, a posteriori, em torno de algumas estratégias comuns no que concerne à composição, à temática e à estrutura narrativa.

No cinema expressionista – na medida em que tal pretensão totalizante é admissível –, a composição do plano (cenário, decoração, iluminação, figurino, maquiagem, organização da cena, fotografia, etc.) tende a ser mais importante do que a articulação entre os planos ou os movimentos de câmera, o que faz com que seus filmes assemelhem-se a uma sucessão de quadros expressionistas. Por outro lado, no que diz respeito à temática sua fonte é sobretudo a literatura romântica, com suas histórias fantásticas de demônios, vampiros e monstros, que aludem a tiranos insaciáveis. Por fim, no que tange à estrutura narrativa o fascínio desse gênero decorre de seu caráter oblíquo, que não suprime ambiguidades. Nesse sentido, os intertítulos – integrados à forma visual do filme – são utilizados com parcimônia e não são explicativos. Ademais, a referência frequente ao espaço fora do campo visual do espectador, por meio de olhares, sem que se faça o contracampo, contribui para conferir um efeito de abertura para o imprevisível. E por conta da ênfase na composição do plano, a narrativa procede de um modo descontínuo, isto é, mediante elipses espaço-temporais, o que também coopera para a criação de seu tom enigmático.

Em Expressionismo cinematográfico, arquitetura e cidade, Benfati e Santos Jr. assinalam o paradoxo de um grande país industrial – a Alemanha – ser tão voltado, em suas distintas modalidades de criação artística, para seu passado medieval. De acordo com os autores, tal tendência não pode ser atribuída, exclusivamente, à derrota na I Guerra Mundial, pois lhe antecede. No entanto, Benfati e Santos Jr. (2006) observam que o florescimento do cinema expressionista coincide com o caos social do início da República de Weimar e sugerem que essa filmografia expressa uma recusa da vida urbana, identificada com a barbárie, não com a civilização. Nas palavras dos autores:

O período de luzes é, em sua aparência, colocado entre parêntesis e o universo ficcional retorna não apenas à natureza em contraposição à cidade, mas a uma temática voltada para a reagrarização e a submissão a temores primitivos, a dominação do instinto sobre a razão (id., p. 68).

Essa tendência regressiva tem na construção dos cenários dos filmes expressionistas uma de suas mais importantes manifestações. É o retorno ao estilo gótico medieval o que pretendem seus arquitetos. Nesse sentido, o espaço não é linear, mas deformado: as ruas são pequenas e tortuosas; as casas são escuras e, frequentemente, inclinadas; e escadarias, corredores e pátios internos conferem a essas películas uma sensação de ambiente confinado e ameaçador. Ademais, o modo como esses cenários são fotografados, com fortes contrastes entre áreas iluminadas e sombrias (chiaroscuros), tende a realçar o relevo e a exagerar ou recortar os contornos, acentuando seu aspecto fantasmagórico. No limite, é a expressão não racional dos estados de alma, mediante recursos visuais, o que almeja o cinema expressionista. No Fantasma, de Murnau, a vertigem de Lorenz Lubota, enquanto dança com Melitta em um café, exprime-se por meio de um cenário giratório. E, em um momento de angústia, o protagonista vê-se perseguido por prédios de estilo gótico.

Retomando o paradoxo apontado por Benfati e Santos Jr. – o de uma nação altamente industrializada, que se volta para seu passado medieval –, parece-me que ele não pode ser atribuído à derrota na I Guerra Mundial ou à crise social dos primeiros anos da República de Weimar, mas aos fatores que conduziram a essas catástrofes. Dito de outro modo, o expressionismo consiste no avesso da racionalidade técnica, que permeia o processo de modernização autoritária do II Reich. Nessa perspectiva, o Dr. Caligari é um duplo do comandante da unificação germânica – Otto von Bismarck –, que mesmeriza as massas alemãs e as incorpora em seu projeto imperialista. No entanto, o expressionismo não faz uma crítica racional dos abusos do poder, de inspiração iluminista. Tanto no que tange a seus aspectos formais, quanto no que concerne a suas temáticas ele não visa ao esclarecimento. Sua proposta estética é a de expor, em uma linguagem estranhamente familiar ao povo alemão – a do estilo gótico –, o que os líderes da Alemanha industrializada pretendem manter oculto: seus sinistros poderes.

Especificamente no que concerne ao Fantasma, é preciso salientar suas diferenças em relação a O gabinete do Dr. Caligari. Se neste trata-se de expressar os horrores decorrentes da onipotência paterna, naquele trata-se de exprimir o pesadelo em que consiste a inoperância do pai. Se o filme de Robert Wiene alude ao fundador do II Reich, é possível que o de F. W. Murnau refira-se à vulnerabilidade da República de Weimar. (www.simpleeverydaymom.com) Porém, tanto sobre um, quanto sobre o outro paira o espectro da tirania. Nesse sentido, é altamente significativo que o Fantasma, de Murnau, inicie com Gerhart Hauptmann, o autor da obra em que se baseia o filme. Se novas catástrofes anunciam-se, é crucial que sejam enunciadas.

Considerações finais

No Fantasma, de Murnau, o tema do duplo prolifera em muitas direções. Por um lado, há a dimensão mais evidente – e mais corriqueira – da sósia. Porém, há outras. Vários personagens espelham-se uns aos outros: Lorenz e Melanie, Lorenz e Marie, Lorenz e Wigottschinski, a mãe de Lorenz e a tia Schwabe, Veronika e Melitta, sob distintos pontos de vista, consistem na imagem simétrica e invertida um do outro. Para além do universo diegético, o duplo imiscui-se na própria narrativa: trata-se de uma história trágica – o amor de Lorenz por Veronika, que o enlouquece –, enquadrada em uma moldura melodramática: o amor de Marie por Lorenz, que o resgata. Ademais, a trama é invadida por um duplo – posto que se trata de um personagem – do autor do livro adaptado pelo filme. A enigmática presença desse personagem na abertura do Fantasma faz pensar que ele, por sua vez, tem seu próprio duplo: o Sr. Starke (Karl Etlinger), pai de Marie e encadernador, que aposta na carreira literária de Lorenz e, ao final, oferece-lhe um caderno para que ali registre suas dores. Por fim, ao longo do filme assistimos ao desdobramento de Lorenz em um outro de si mesmo.

Esta miríade de duplos perturba, produz inquietações. E, se olhamos o cenário cultural adjacente, não paramos de nos assombrar. Tal problemática dissemina-se pelo cinema alemão da época, é tomada como objeto pela reflexão psicanalítica e lança raízes profundas no romantismo do século XIX. Inevitavelmente, interrogamo-nos: a que corresponde essa proliferação discursiva? Ao longo deste artigo, procuro esboçar algumas hipóteses. No contexto cultural em que se circunscreve esse problema, ele alude à cisão do sujeito. Mais precisamente, o duplo consiste no outro do sujeito que se constitui nas dobras do racionalismo iluminista, em suas diversas vertentes: positivismo, em filosofia das ciências; realismo, nas artes; razão técnica, nas indústrias; razão de Estado, em política. É a morte de Deus, promovida pelo Iluminismo, que produz o desamparo do homem das Luzes e faz de seu duplo – a não razão – um sinistro mensageiro da morte de tal sujeito.


[1] Amadeu de Oliveira Weinmann é Professor do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia/UFRGS. E-mail: weinmann.amadeu@gmail.com.

[2] Embora utilize a versão da Amorrortu, que denomina Lo ominoso a esse trabalho de Freud, uso o título O estranho, pois é o consagrado no Brasil pela Imago. Entretanto, ao longo do texto traduzo unheimlich / ominoso por sinistro.

[3] De acordo com Santos (2009), o termo dopellgänger – que, literalmente, significa aquele que caminha do lado, companheiro de estrada – é cunhado em 1796 por Jean-Paul Richter, no contexto de nascimento do romantismo alemão.

[4] Neste artigo, baseio-me na versão de 1926 desse filme, dirigida por Henrik Galeen, pois no Brasil não há cópia em DVD da versão original. Para uma análise desta, ver Müller (2008).

[5] Como observa Müller (2008), não é adequado definir, retrospectivamente, os filmes do período imperial alemão – como a versão original de O estudante de Praga – como precursores do expressionismo, pois eles possuem uma lógica própria. Em seu contexto, são denominados filmes de arte (kunstfilm), pois consistem em filmes de autor (autorenfime), isto é, escritos por autores famosos, como H. H. Ewers.

[6] Sobre a relação de Freud com tais movimentos, Sousa e Endo (2009, p. 75) escrevem: “em julho de 1939, Dalí esteve na casa de Freud junto com Stefan Zweig. Freud já tinha sido uma espécie de guia espiritual do movimento surrealista e era admirado por André Breton. Nunca deu a devida importância à interlocução com Dalí. Alguns dias depois escreveu ao amigo Zweig suas impressões sobre o jovem artista espanhol: ‘até agora, parece-me, vi-me tentado a considerar os surrealistas, que aparentemente me escolheram como seu santo padroeiro, como loucos completos (digamos a 95%, como para o álcool absoluto). O jovem espanhol, com seus cândidos olhos de fanático e seu inegável domínio técnico, incitou-me a reconsiderar essa opinião’”.

Referências bibliográficas

BENFATI, Denio Munia; SANTOS Jr, Wilson Ribeiro. “Expressionismo cinematográfico, arquitetura e cidade”. In: Impulso, Piracicaba, v. 17, n. 44, p. 67-74, set./dez., 2006.
CÁNEPA, Laura Loguércio. “Expressionismo alemão”. In: MASCARELLO, Fernando (Org.). História do cinema mundial. 3. ed. Campinas, SP: Papirus, 2008. p. 55-88.
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McGINITY, Larry. “Expressionismo alemão”. In: FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte: os movimentos e as obras mais importantes de todos os tempos. Rio de Janeiro: Sextante, 2011. p. 378-381.
MEZAN, Renato. “Viena e as origens da psicanálise”. In: PERESTRELLO, Marialzira (Org.). A formação cultural de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 73-105.
MÜLLER, Adalberto. “O estudante de Praga: o duplo, o espelho, o autor”. In: HAMBURGUER, Esther; SOUZA, Gustavo; MENDONÇA, Leandro; AMANCIO, Tunico (Orgs.). Estudos de cinema – SOCINE. São Paulo: Annablume; Fapesp; Socine, 2008. p. 15-23.
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SOUSA, Edson; ENDO, Paulo. Sigmund Freud: ciência, arte e política. Porto Alegre: L&PM, 2009.
ZIZEC, Slavoj. “La femme n’existe pas”. In: ZIZEC, Slavoj (Org.). Todo lo que usted siempre quiso saber sobre Lacan y nunca se atrevió a preguntarle a Hitchcock. Buenos Aires: Manantial, 2010. p. 113-117.

Referências filmográficas

GALEEN, Henrik. O estudante de Praga. São Paulo: Cult Classic, s/d. DVD. 91 min.
MURNAU, Friedrich Wilhelm. Fantasma. São Paulo: Cult Classic, 2008. DVD. 125 min.
WIENE, Robert. O gabinete do Dr. Caligari. São Paulo: Continental Home Vídeo, s/d. DVD, 52 min.

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Este post tem 3 comentários

  1. Author Image
    Felipe dos Santos

    Nossa! Muito bom!

    Boa análise do ar sinistro dentro do expressionismo. Vou ter que ler mais vezes pra poder absorver tudo.

  2. Author Image
    Felipe dos Santos

    Um dos movimentos que mais transmite angústia, uma frustração recorrente ao otimismo iluminista.

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