Montagem Cinematográfica no Cinema de Animação: Um Sobrevôo através dos Filmes

Editing in Animation Cinema: An Overflight through Films

Maria Luiza Dias de Almeida Marques¹

Resumo

O presente texto traz alguns apontamentos a respeito da montagem/edição em filmes de animação narrativos, observando em alguns filmes desde início do século XX até meados da década de 50, quais as trajetórias de alguns realizadores, em meio à evolução das tecnologias, bem como alguns aspectos da recepção do público, à luz de Donald Crafton, Alberto Lucena Jr., Rudolf Arnheim, Giannalberto Bendazzi, Noël Burch, entre outros.

Summary

This text brings some appointments about editing in narrative animation films, watching in some movies from the beginning of XX century to the 50’s, wich were the paths of some filmmakers among the technology evolution, as well as some aspects of audience reception, from reading Donald Crafton, Alberto Lucena Jr., Rudolf Arnheim, Giannalberto Bendazzi, Noël Burch, and others.

Palavras-chave: cinema, animação, montagem, audiovisual

Keywords: cinema, animation, editing, audiovisual

Introdução

Em 1980, o estatuto da ASIFA – Associação Internacional do Filme de Animação – definia animação como tudo aquilo que não é a simples representação de um evento capturado a 24 quadros por segundo, o que equivale a dizer que se trata da criação de movimentos/metamorfoses em todas as variedades de técnicas, excluindo-se a captura “ao vivo”.

Verifica-se nessa busca por uma definição global do que é o cinema de animação, um esforço em se delinear o comprometimento da técnica empregada com seu resultado estético. É conveniente sublinhar então algumas definições preliminares que adotaremos neste texto a fim de evitar malentendidos. Uma delas, das definições, trata da palavra “corte”. Grosso modo, no cinema narrativo clássico, busca-se o corte invisível, em que o expectador não perceba ou sinta que se mudou de plano dentro de uma mesma cena. Uma das questões colocadas neste texto e que tentaremos esmiuçar, é que, o cinema de animação tráz no corte seco a sua essência, antes mesmo da articulação espaço-temporal que se dá entre os planos, quando se fala da montagem.

Retomando a linha da história, a atmosfera efusiva de modernidade na virada do século XIX para o XX era propícia ao investimento em melhorias dos dispositivos destinados à produção de filmes, bem como à experimentos narrativos mais sofisticados, de maneira que houvesse a substituição do modo semi-artesanal de produção, ao mesmo tempo que a inscrição da nova mídia, (inicialmente considerada vulgar, simplória) na esfera das diversões de camadas mais aburguesadas já por volta de 1908 (BURCH: 1995, p. 71).

Nesse contexto, o surgimento de técnicas de animação no cinema aconteceu simultaneamente à disseminação do cinema “ao vivo” como significante fenômeno sociológico; na Europa, sobretudo Inglaterra e França, e nos EUA, onde condições técnicas, capital e mercado alavancaram um sistema industrial, é possível notar duas vertentes distintas de propostas no terreno da captura quadro-a-quadro: os filmes de efeito stop-motion e os desenhos animados. Os primeiros consistem em fotografias sequenciais com manipulação de elementos de cena; já os desenhos animados, herdam das histórias em quadrinhos os temas e a decupagem.

É provável que o americano Alfred Clark tenha sido o primeiro a utilizar o recurso da “substituição por parada de ação” para produzir um efeito impossível de se obter na filmagem ao vivo. Em seu filme curto The Execution of Mary, Queen of Scots, de 1895, a rainha Mary é decapitada diante dos olhos da plateia; para produzir tal efeito, Clark lançou mão da captura de uma cena ao vivo em que a rainha se ajoelha; em seguida, num corte seco invisível ao espectador, Clark substitui a atriz por um manequim, o qual é verdadeiramente decapitado, sem colocar em risco a vida da atriz.

Nestas duas imagens, a atriz oferece seu pescoço

Aqui, a atriz foi substituída pelo manequim; observe nestas fotos o movimento do machado

Sem questionar a paternidade deste tipo de efeito, é conhecida a história da pane na câmera de Méliès, que parou de filmar e voltou minutos depois, resultando na involuntária transformação de um veículo em carro funerário. Ainda que não realizado na mesa de edição, este acidente resultou num procedimento de montagem – o corte seco – e despertou em Méliès a possibilidade da manipulação do tempo, em que algum objeto é substituído por outro causando a ilusão da magia. Em outras palavras, um simples corte seco possibilitou a “substituição por parada de ação”, ou seja, o primeiro passo para a verdadeira técnica de animação (LUCENA: 2005, p. 41). Esta montagem primária para se fazer a substituição de algum objeto da cena a fim de se concretizar uma ilusão foi exaustivamente empregada em toda a obra de Méliès, assim como a fusão, as justaposições, as divisões da tela, enfim, artifícios facilitados sobremaneira pelos recursos digitais modernos.

Os trickfilms, ou filmes de efeitos, popularizaram-se, alucinaram plateias pelo mundo com truques surpreendentes, muito próximos a espetáculos de ilusionismo; seu sucesso levou os curiosos à investigação de cada fotograma até a compreensão do funcionamento da trucagem (LUCENA: 2005, p. 41). É interessante ver o exemplo bem claro em The Conjuror, de 1899, em que a bailarina salta e, no meio do arco do salto ocorre a “transformação” da bailarina em mágico – representado pelo próprio Méliès.

Falar de Méliès portanto (assim como dos Lumière, de Edison , de Chomón) numa época como a nossa, em que, à exemplo da virada do século passado, as transformações tecnológicas acontecem em ritmo alucinante, parece-nos indispensável para a compreensão das possibilidades expressivas (audiovisuais) que se desenham neste nosso presente mutante. A contribuição de Méliès é inegável no campo do cinema ficcional, e no caso específico do cinema de animação, ela deflagrou a possibilidade de criação de movimento/metamorfose através do mais primitivo recurso da montagem, o corte, dentro do mesmo plano, sem que seja percebido pelo espectador.

A Montagem inaugura a Animação

Um discurso recorrente entre os animadores é aquele segundo o qual a animação existe antes do que o cinema. Ou melhor, segundo Giannalberto Bendazzi em Cartoons: One Hundred years of Cinema Animation[1], o cinema é um tipo particular de animação, barato e industrial. Trata-se de uma discussão sem maiores desdobramentos, que dificilmente alteraria o rumo da história, mas que pode nos fazer lembrar que, de fato, as sequências de desenhos criadas para se ter a impressão do movimento (kino) trazem consigo os pressupostos da articulação espaço-tempo, independente do dispositivo ótico à disposição. A descoberta da emulsão sensível à luz sobre o celulóide flexível torna possível o cinema rodado “ao vivo”, e a produção industrial de câmeras e projetores (FRANCO: 1984, p. 116). Mas à época das projeções dos irmãos Lumière, de 1895 ao final daquele século, todo o desenvolvimento desses equipamentos para registro da realidade representavam apenas avanços tecnológicos; apesar do entusiasmo, poucos se arriscavam a considerar o cinema uma arte.  Os benefícios dessas tecnologias ao cinema filmado ao vivo atendiam também às necessidades da animação, a qual já trazia preocupações estéticas (composição do quadro, por exemplo) desde Emile Reynaud com o seu teatro ótico em 1892, portanto, antes da projeção dos Lumière.

Como já mencionamos, é Georges Méliès quem vai explorar com maestria todas as possibilidades expressivas, conectando, por exemplo, a literaura fantástica de Júlio Verne com a novidade do cinema e levando às platéias o fascínio da ficção científica nas imagens em movimento. Temos em Méliès, cuja descoberta acidental fez do corte cinematográfico a essência do cinema de animação, o gérmen da ligação entre arte da animação e o cinema propriamente dito.

A partir de Méliès, a técnica da substituição por parada de ação passou por vários aperfeiçoamentos; em 1906, Stuart Blackton faz as primeiras sequências de desenho animado quadro-a-quadro em Humorous Phasesof Funny Faces. Antes de entrar para o cinema, uma das atividades de Blackton eram as performances em que ele desenhava ao vivo para a platéia, chamadas lightening sketches. Em 1900, fruto de seu encontro com Thomas Edison, Blackton fez a transposição desse espetáculo para o cinema, em seu Enchainted Drawing, em que, com a câmera frontalmente disposta em relação ao palco, na posição do primeiro espectador, ele desenha e atua com o desenho, operando os cortes para substituição aos moldes de Méliès, mas já introduzindo sequências mínimas de animação quadro-a-quadro aos desenhos.

Em Enchainted Drawing, a edição é o que proporciona o efeito da animação. Não existe o corte cinematográfico convencional, pelo contrário: a função da edição é justamente fazer a platéia acreditar que a cena foi tomada de uma só vez (já que o cinema é compreendido como a captura do real), numa dialética opacidade-transparência, pois, ao mesmo tempo em que a identificação e o envolvimento (a crença) se dão por completo, indicando transparência, a enunciação frontal caracteriza a opacidade.

[2] Em Humorous Phases of Funny Faces, Blackton dá um enorme salto rumo à animação propriamente dita; com alguns traços dos lightening sketches, sua mão desenha rostos num quadro negro, os quais seguem animados quando da saída de  quadro da mão do desenhista. A montagem aqui tem função semelhante àquela realizada em Enchainted Drawing, mas agora as sequências animadas são mais longas e a intervenção das mãos cumpre o papel do corte cinematográfico: entra em quadro, apaga um desenho e faz outro, que segue sendo animado.

A Animação inaugura a Montagem

Muitas das historietas dos filmes de animação eram adaptadas dos quadrinhos, que faziam muito sucesso na mídia impressa e que já traziam, curiosamente, a decupagem na diagramação narrativa. Entretanto a decupagem custou a se estabelecer como elemento de linguagem, e nas animações pioneiras, assim como nos filmes teatrais (quadros), ou nas vistas (documentais), o que se tinha eram predominantemente os planos fixos (que nas animações são produto da montagem em sequência das imagens estáticas), com a ação se desenrolando sempre em direção ao centro do quadro, de forma centrípeta.

Até meados de 1908, centenas filmes de efeitos ainda lotavam as salas. Com o refinamento das técnicas de animação, sobretudo de objetos, filmes do filão “hospedaria” como The Hounted Hotel (Blackton), Hounted House e Electric Hotel (Segundo de Chomón) são feitos aos montes; sequências redundantes de movimento autônomo de objetos às vezes não cumpriam função narrativa alguma, o que para  Donald Crafton, em seu livro Before Mickey: The Animated Film2, resulta num crescente desinteresse do público, que, além do mais, por conta das informações que circulavam na mídia, adquiria conscientização a respeito do processo desse tipo de produção. Era preciso ir além da trucagem e da magia – além da ciência, criar novas histórias e aprofundar a técnica para fidelizar o público, o que passou a acontecer quando a literatura entrou em cena.

A falta de uma padronização técnica e na linguagem fez com que todo tipo de experiência tivesse espaço. É notório que, até que Grifith lançasse O Nascimento de uma Nação, ele fez cerca de 800 filmes de temas e metragens variados, em que incontáveis experiências de montagem levaram-no a compor uma “gramática visual” (FRANCO: 1984, p. 119). De maneira análoga, a exemplo da experiência de Grifith (e do cinema mundial), o período de1898 a 1928 representou para a animação um período de organização da sintaxe, de consolidação de uma série de procedimentos que vieram a se integrar no que chamamos “linguagem de animação”.

Neste ponto faço a seguinte ressalva: mesmo com a reinvenção constante das técnicas envolvendo duas ou três dimensões, seja o desenho animado (2D) ou a animação de objetos e bonecos (3D), a quase unanimidade dos filmes de animação se iniciam estabelecendo um “universo alienígena” no qual o espectador se projeta (CRAFTON: 1993, p. 348). Ou ainda, como menciona Ismail Xavier em Sétima Arte: Um culto Moderno:

A representação “objetiva” das aparências naturais alia-se ao truque da montagem e o realismo da figuração inscreve-se num espaço e num tempo for a das leis naturais. (XAVIER: 1978, p.27)

É neste âmbito, pois, que vamos falar da montagem na animação. E na análise de alguns filmes que consideramos marcantes, vamos adotar as mesmas nomenclaturas usadas no cinema live action.

Para exemplificar, iniciamos com How a Mosquito Operates, de 1912, em que Winsor McCay inaugura o antropomorfismo animal. Trata-se da história de um mosquito com características humanas que vai chupar o sangue de um homem alcoolizado dormindo, e, de tanto sugar, seu abdômem incha até a explosão. O filme começa com um mosquito estilizado, usando um chapéu e uma valise; ele se apresenta, em plano de conjunto. Sem que haja corte cinematográfico, entra em cena, em primeiríssimo plano, a figura de um homem, que atravessa o quadro da direita para a esquerda, ou seja, ele encobre a visão que temos do mosquito, sem se dar conta da sua presença. O que McCay percebeu e aplicou em seu filme foi a mudança de plano (o corte), um frame após a saída de quadro das personagens, e o início do plano seguinte com a personagem já em quadro, em continuidade de movimento. O raccord é algo caro para McCay: é importante que seu público não perca noção do espaço. Assim sendo, o movimento que o mosquito faz ao entrar no quarto do homem – visto de fora da janela – é seguido pelo movimento da cabeça do homem repousando no travesseiro, na mesma velocidade do mosquito. O filme segue até o final neste mesmo plano, em que o homem dormindo é atacado pelo mosquito até que o inseto explode de tão cheia que está sua barriga.

Não há, naturalmente, o uso dos diversos enquadramentos, mas já observamos neste filme três aspectos importantes: 1- a aproximação da câmera das personagens; 2- a metonímia, ou seja, a presença de parte do corpo do homem; 3- o olhar frontal para a câmera. Tais recursos, aliados à prestigiosa animação de McCay, levaram o público a um extremo desconforto apesar de se tratar claramente de uma ficção em desenho, longe de imagens reais. (CRAFTON, 1993. Pp. 109)

É importante lembrar que McCay é uma exceção entre os produtores de animação da época, que eram na sua maioria cartunistas autodidatas sem maiores ambições, e cujos filmes eram “ficções sem qualidade” (BENDAZZI, 1994. pp. 16).

No mesmo ano de How a Mosquito…, na Rússia, Wladislaw Starewicz produziu A Vingança do Cameraman em stop-motion. Starewicz era diretor do Museu de História Natural da Lituânia e lá produziu vários filmes institucionais antes de ir para Moscow, em 1911, para trabalhar definitivamente com cinema. Para Vingança…, Starevicz utilizou seu conhecimento em zoologia e inseriu nos insetos mortos, pernas e braços de arame. Nesta sátira sobre a infidelidade, um besouro trai sua esposa com uma libélula dançarina de um cabaré, que já estava de namoro com um gafanhoto. Este, para se vingar do besouro, segue o casal de amantes e os filma. Enquanto isso, a esposa do besouro o trai também, com um outro besouro. Quando seu marido volta para casa, vê os vestígios do amante e briga com a esposa. Ao fazerem as pazes, vão ao cinema e, adivinhem quem é o projecionista? O gafanhoto! O filme exibido mostra o caso do besouro com a libélula, o que vai iniciar novamente uma confusão entre o casal.

Este pastiche da vida burguesa mostra um domínio pleno da linguagem da época. Faz uso de intertítulos irônicos que antecedem o que vai acontecer no quadro seguinte, sendo que a maior parte das ações se desenvolve por completo nesses quadros fixos.  Entretanto opera com precisão as elipses, ou seja, ele suprime o supérfluo (BURCH: 1992, p. 26); um bom exemplo é a sequência em que o gafanhoto persegue o casal de amantes:

chegada do casal ao Hotel d’Amour/ gafanhoto entra logo após o casal no hotel (vista de fora)/ gafanhoto sobe dois degraus (vista de dentro)/ gafanhoto no topo da escada arma a câmera no tripé/ curva-se para olhar pela fechadura/ subjetiva do gafanhoto com a tela vinhetada em forma de fechadura.

Essa articulação narrativa eficiente curiosamente contrasta com um momento logo anterior em que, à saída da boate, gafanhoto espera o carro do besouro sair de quadro para montar sua bicicleta e persegui-los. Segue-se um grande plano geral do carro cruzando a tela, seguido da bicicleta; apesar de termos quase que o espaço de “uma tela” separando o gafanhoto do casal de amantes (com estes bem à frente), quem chega primeiro ao hotel é o gafanhoto. Duas questões surgem: como ele sabia para onde iam os amantes? Como ele os ultrapassou? São questões que Starewicz parece ter ignorado em prol de uma boa comédia, uma espécie de “licensa poética”.

No mesmo continente, um curioso desenho animado dirigido por Dziga Vertov em 1924 é Soviet Toys, um insert em animação no Kino-Pravda, com um conteúdo pró-comunismo e que em nada se assemelha com seus outros filmes, talvez por culpa da ideologia exposta de modo escancarado e de uma relativa pobreza estética em relação ao que já era possível fazer na época. É um período em que o cinema de animação russo não goza do mesmo prestígio que seu cinema live action. (BENDAZZI: 1994, p. 46s).

Usando de sátira e panfletismo, o filme mostra um capitalista retratado na figura de um homem gordo o qual possui todos os vícios, além de ser religioso, tudo de mais condenável no novo regime. Misturando desenhos animados à mão com animação de recortes (cut out), apresenta um traço clean, nos planos de conjunto, realizados em animação tradicional, e nos closes-ups, emprega a técnica dos recortes, com desenhos muito mais detalhados. Obviamente essa escolha estilística representa também uma otimização no trabalhoso processo de se desenhar todas as imagens, pois seria custoso empregar na animação tradicional o excesso de detalhes verificado nos recortes. Esse expediente nos leva a crer que Vertov não se preocupa com a representação de elementos do plano geral e sua respectiva identificação no plano de detalhe, em geral muito diferente e sempre com vinheta circular. Praticamente não existe articulação espaço temporal, pois tudo se dá frontalmente, com sequências/sketches que ilustram tudo o que é condenado pelo regime. Tais sketches são repetitivos, mesmo para esta época, em que várias conquistas da montagem (por exemplo as elipses) já estavam consolidadas. Uma metáfora bastante desgastada ocorre da associação (fusão) dos planos que mostram, primeiro o “gordo capitalista”, depois, no lugar dele, um porco com as mesmas dimensões. Vertov apela para um estranho senso de humor na cena final, em que as figuras dos soldados formam uma árvore de natal de cujos galhos desprendem-se cordas que vão enforcar os símbolos do capitalismo. Por se tratar de uma propaganda, a necessidade de compreensão leva Vertov a completar a mensagem com redundantes letreiros explicativos.

Produção Industrial no Ocidente

Se até o final da década de 20 a maioria das convenções da linguagem de animação clássica já estava determinada, a combinação de elementos visuais seguiu praticamente ilimitada pelas décadas seguintes. Foi um período que correspondeu à industrialização da produção de desenhos animados, sobretudo nos EUA, onde, a formalização de conceitos (produção de manuais) correu paralelamente a inovações técnicas (acetato, pinos de registro, rotoscópio, entre outros), o que propiciou saltos no processo produtivo, sofisticação na linguagem, criação de gêneros e produção em série. É importante lembrar que, diferentemente do público do início do século que acompanhava toda e qualquer projeção, temos agora uma platéia “alfabetizada” cinematograficamente.

Em meio aos investimentos para a conquista do cinema sonoro sincronizado, os desenhos animados (2D) trazem uma série de recursos visuais/gráficos que dão conta da representação do som. Destacam-se as mímicas, os balões de diálogos, os traços de expressão, as estrelinhas. (BARBOSA: 2009, p. 41). Já nas animações quadro-a-quadro, as indicações são semelhantes àquelas do cinema live action: batidas na porta, motor de alguma máquina, direção do olhar, algo que se quebra. Na época do cinema silencioso, não há muitas diferenças ao tratamento sonoro/musical dado ao cinema de animação especificamente. A invenção do acetato torna possível uso de ciclos nas caminhadas, com o background rotativo, indicando deslocamento da personagem pelo cenário, com simulação de movimento de câmera. São frequentes as de repetições nas ações como forma de reiteração para a compreensão ou para a antecipação de uma gag.

O fenômeno Disney quase pode ser considerado um caso a parte, dada a convergência de fatores que resultou na hegemonia do que passou a ser chamado o “padrão disney de animação”.

Eis que surge o sincronismo sonoro (e amplificado) abalando as estruturas e forçando a adoção de novas soluções de montagem ao cinema. Para o cinema de animação esse acontecimento só veio a acrescentar dinamismo e verossimilhança, uma vez que, as conquistas mais significativas em termos de articulação espaço-tempo já possiblitavam um narrar pleno e bem estruturado.

Sendo a obtenção das imagens um processo independente do tempo real, sua produção passa a ser feita em função de um som previamente gravado – no caso das músicas e das vozes. Os estúdios Disney desenvolvem seu próprio método de sincronização sonora; destacam-se as Silly Simphonies, série de filmes em que a trilha sonora dita o ritmo das imagens. Em Skeleton Dance, de 1929, o início do filme sugere uma atmosfera tenebrosa, com uma coruja, um cão e gatos negros a anunciarem (sempre com pequenas gags) a hora da dança das caveiras. O espaço fílmico é um cemitério no campo; as caveiras bailam ao ritmo da música de maneira totalmente sincrônica provendo ao montador toda uma série de raccords em movimento, sinalizando para o que será, décadas mais tarde, a edição estilo vídeo-clipe. A cada lançamento os estúdios Disney incrementavam a produção com alguma inovação tecnológica, a qual sempre figurou nas mídias de divulgação. As Silly Simphonies, assim como toda série com Mickey Mouse, sua turma e os longas de contos de fadas estabeleceram Disney como o estúdio mais poderoso e influente no mundo.

Dos incontáveis prodígios da empresa Disney, como Fantasia e Pinochio, destacamos um cuja edição merece respeito pela capacidade de harmonizar todos os recursos narrativos e de sintetizar de modo eficiente elementos da composição de quadro, com o ritmo da movimentação das personagens e com a trilha sonora. O resultado é o que há de mais eficaz em termos de identificação no sentido clássico: Cinderella, de 1950, uma das últimas produções que conta com o time dos nove animadores que desenvolveram os princípios básicos da animação[3]. A sequência comentada a seguir inicia-se com a aula de música das irmãs de Cinderella. Num plano geral da sala de música, as irmãs cantam e tocam a canção Oh, Sing Sweet Nightingale (a cena encontra-se com este nome no Youtube); para reforçar o desafino, câmera corrige para o malvado gato de estimação, que olha para a direita do quadro, para moças (agora, fora de quadro) e se esconde debaixo da almofada. Corta para plano americano das irmãs, cuja desarmonia musical representa também a desarmonia entre elas. Vemos então o gato sair, já do ponto de vista de fora da sala de música, momento em que percebemos sutilmente uma mudança de timbre e de harmonia na mesma música. Somente quando o gato fecha a porta da sala de música é que a edição musical deixa nítida a entrada da voz de Cinderela, ao mesmo tempo em que a câmera corrige para o ponto de vista do topo da escada – lá no térreo, no hall de entrada da casa, Cinderela limpa o chão cantando. Neste momento, a compreensão da geografia do palácio fica completa e esse é o dado realista da cena. O contraste entre o bem e o mal é parte da estrutura narativa, portanto, após mostrar Cinderela absorvida pelo canto na atividade de lavar o chão, vê-se no contra-campo o gato observando-a maldoso e tendo uma idéia: mergulha a pata no monte de poeira. A partir daí, o corte introduz o elemento de encanto e Cinderela se vê refletida numa bolha de sabão; o expectador tem um momento de fruição completo, quando visão e audição se entrelaçam: ela mergulha no balde o seu pano fazendo subir inúmeras bolhas com cinderelas coloridas refletidas, ao mesmo tempo em que a trilha sonora traz a canção entoada por um coro feminino. Alguns segundos mais tarde, o corte que se segue tem a função de interromper o devaneio da heroína, quando ela se dá conta de que o gato sujou tudo o que já estava limpo. Este corte também inicia outra sequência, com as batidas na porta e o olhar de Cinderela na direção do som. Esta sequência, responsável por definir o tom encantatório filme, é também seu ponto de inflexão. Cinderella permaneceu um clássico insuperável da animação (comercial) por décadas, definindo os elementos chave das animações do filão princesas.

O cinema de animação experimental pratica regras clássicas

Num salto vertiginoso em estilo e técnica, um filme clássico da animação experimental do National Film Board do Canadá trás o resultado de anos de experimentos em som e imagem destilados em sequências memoráveis.  Neighbours, de Norman McLaren trata de um tema caro a este realizador, a busca pela paz, através da história de dois vizinhos que lutam pela posse de uma flor. Lembrano Noel Burch em Práxis do Cinema,

apenas através da exploração sistemática das possibillidades estruturais inerentes aos parâmetros cinematográficos, poderá o cinema libertar-se das formas antigas de narrativas e desenvolver novas. (BURCH: 1992. p. 52)

A obra McLaren encaixa-se perfeitamente neste conceito, pois ele se apropria dos dispositivos fílmicos e os reorganiza das formas mais inéditas, combinando imagem estática (foto) com filmagens, grafismos e som criado/desenhado diretamente na película. Diferente da maioria de seus filmes abstratos, Neighbours trás elementos da realidade retrabalhados à partir da mistura de técnicas para se concretizar um ideal narrativo, sendo este um dos poucos filmes dedicados a um modo de narrar que se aproxime das formas tradicionais, ou seja, uma história com início, desenvolvimento e fim. Não se trata de um filme totalmente animado, pois há cenas filmadas a 10, 16 e 18 quadros por segundo.

Apesar da preocupação com a narrativa, assim como em seus outros trabalhos, o estudo do movimento é essencial, como ele mesmo evidencia:

Todo filme é uma forma de dança, pois o mais importante é o movimento; não importa se são pessoas, objetos ou desenhos, ou a maneira como é feito, ele é uma forma de dança. (MCWILLIAMS: 1993, p. 67)

Isto posto, ao assistir Neighbours, percebemos que nele o ritmo dado ao movimento das personagens através do espaço, bem como o modo como os movimentos se dão (as poses, micagens) compõem uma coreografia que se encarrega de transmitir toda gama de expressões.

Neighbours, inicia com uma proposição inicial, a revelação do espaço onde a história vai se desenrolar; num plano frontal, entram pela direita e pela esquerda do quadro, respectivamente as casinhas estilizadas dos dois homens. Pode-se quase imaginar um narrador onipresente apresentando a história ao tradicional “era uma vez”.

Temos neste início uma montagem que alterna cenas filmadas “ao vivo” com cenas das personagens animadas quadro-a-quadro. Este esquema obedece à uma necessidade narrativa segundo à qual o estranhamento seguirá num crescendo, ou seja, durante as premissas iniciais, McLaren posiciona seus atores e nos informa que são bons vizinhos, usando os códigos familiares ao espectador; do plano geral vamos para um plano mais próximo de um vizinho que acende o cachimbo e em seguida, a câmera corrige para o outro vizinho, que também acende seu cachimbo. A proposição de simetria é parcialmente rompida (pois o filme segue em campos e contra-campos que obedecem um esquema de simetria até o final) quando nasce, numa linha imaginária no meio do quadro, uma flor. Este é o acontecimento que dispara uma série de reações nas personagens, desde um encantamento com o seu odor até a transformação da amizade em rivalidade.

Voltando à flor, temos aqui um bom exemplo de raccord no movimento: no plano geral a planta irrompe do solo; o direcionamento do olhar dos vizinhos pede o corte para o próximo plano, plano próximo da flor terminando de crescer. Com toda a estilização da situação, dos cenários, dos gestos, enfim, das animações, McLaren usa não apenas a montagem clássica para situar o expectador, mas também se orienta por alguns dos princípios básicos da animação (aceleração, desaceleração, movimento em arcos).

A flor pode ser entendida como uma alegoria do poder, que é inebriante, que tira a razão dos homens. O espaço onde está plantada a flor vem a ser um ponto na linha que coincide, aliás, com a linha do eixo do filme, este que é respeitado até o final, mais uma marca das regras da decupagem clássica no cinema experimental.  Utilizando de cenas de animação, McLaren cria um diálogo bélico entre os vizinhos e, ao longo da luta é interessante o modo como McLaren mostra a regressão do homem civilizado ao barbarismo através de um recurso de edição em que um personagem (plano próximo) dá um soco no outro (fora de quadro). A cada soco, surge em seu rosto traços de uma maquiagem característica de homens primitivos, ou seja, cortes no mesmo eixo, os modernos jump cuts.

A trilha sonora, desenhada diretamente na película, é precisa e acompanha não apenas as “coreografias” dos atores, como expressa também, de maneira a não deixar dúvida, os diálogos ente os personages. A ausência de linguagem verbal é característica de grande parte das animações do National Film Board do Canadá e neste filme, a trilha composta pelos timbres McLaren se encarrega de reiterar a ação, seja na proposta de um clima, seja na reiteração da própria estilização.

Para finalizar, vale lembrar que Neighbours retomou a substituição por parada de ação e deu-lhe outra dimensão; no lugar de usá-la para emular uma realidade mágica, como nos filmes de hospedaria, em que o chapéu sai sozinho da cabeça do hóspede, aqui ela cria movimentos absurdos, como na célebre sequência do vôo das personagens sobre a grama, com joelhos flexionados.

As pesquisas de McLaren e de um grande grupo de cineastas/ animadores renderam filmes de senso estético inigualável, mas a vocação experimental do National Film Board esbarrava no compromisso que a instituição tinha (e tem) com o serviço público, e os burocratas passaram a regular cada vez mais as verbas destinadas a financiar novos artistas a partir dos anos 1950/60.

Conclusão

Um tema abrangente como o cinema de animação apresenta muitos desafios ao pesquisador, dentre os quais, o recorte a se fazer e a escolha de qual ângulo privilegiar na observação deste recorte. Trata-se de um assunto relativamente bem documentado do ponto de vista cronológico; entretanto, há lacunas nos relatos e, em se tratando dos processos de produção, que delimitam as possibilidades narrativas, poucos autores trazem histórias completas.

Falar de montagem nos filmes de animação é, portanto, algo que envolve a tecelagem de tudo que estrutura um audiovisual, desde a composição dos elementos em quadro, o ritmo de sua movimentação interna, o tamanho do enquadramento, a combinação com o que está fora de quadro e o uso do som, tudo isso refletido nas possibilidades de representação e de expressão.

Assim sendo, verificamos que a montagem é inerente ao desenvolvimento do cinema de animação em inúmeras instâncias: a montagem propriamente dita, o ato de se cortar, colar, combinar, pode ser entendido como uma segunda instância da montagem, pois a primeira é a captura de cada imagem que compõe uma cena – uma edição na própria câmera, de quais imagens entrarão num determinado plano. A terceira instância, a edição sonora, é o que vai viabilizar a comunicação por completo, adicionando espacialização, verossimilhança, reiteração e complementação de informações não visíveis.

Referências Bibliográficas

ARNHEIM, Rudolf. Arte e Percepção Visual: uma psicologia da visão criadora. Pioneira Thomson Learning, 2005.

BARBOSA, Ana Luiza Pereira. Dissertação de Mestrado: A relação som-imagem nos filmes de animação norte-americanos no final da década de 1920: do silencioso ao sonoro. São Paulo, ECA/USP, 2009.

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BURCH, Noel. Práxis do Cinema. Perspectiva. São Paulo, 1992.

BURCH, Noel. El Tragaluz del Infinito. Ediciones Cátedra, S.A. Madrid, 1995.

CRAFTON, Donald. Before Mickey: The Animated Film 1898-1928. Chicago: University of Chicago Press, 1996.

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MCWILLIAMS, Donald. McLaren, Le Génie Créateur. Ofice National du Film, Montréal, 1993.

XAVIER, Ismail. Sétima Arte: Um Culto Moderno. Perspectiva: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo. São Paulo, 1978.


[1] – prefácio, p. XX

[2] – p. 29

[3] * Não cabe aqui comentar o contraponto estético ao estilo Disney, em andamento pelas mãos dos artistas da United Productions of America (UPA), que, vindos em sua maioria dos estúdios Disney, passaram a explorar formas gráficas inspiradas nos artistas modernos para expressar com seu traço uma certa consciência social e política (LUCENA, 2005).

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