O Projeto de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a Tradição do Documentário

Verônica Ferreira Dias: Mestra em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, instituição onde também é professora desde 2003. Atualmente, é doutoranda no Programa de Ciências da Comunicação da ECA-USP.

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Neste artigo visamos a apresentar o espaço que Eduardo Coutinho ocupa dentro da “tradição” da não-ficção, visto que (cf. Vanoye, Goliot-Lété, 1994) os cineastas herdam, citam, parodiam, integram obras que precedem as suas e as renovam, pois pertencem a contextos diferentes tanto do ponto de vista da autoria (são indivíduos diferentes), quanto do histórico e do tecnológico. Assim,

analisar um filme é também situá-lo num contexto, numa história. E, se considerarmos o cinema como arte, é situar o filme em uma história das formas fílmicas. Assim como os romances, as obras pictóricas ou musicais, os filmes inscrevem-se em correntes, em tendências e até em “escolas” estéticas, ou nelas se inspiram a posteriori. (Vanoye, Goliot-Lété, 1994:23)

Num segundo momento, a apresentação de um breve histórico da produção de Coutinho servirá para identificar seu “projeto” (cf. terminologia de Salles, 2002), entendido como sendo aquilo que dá unidade ao conjunto de realizações do cineasta, que uni todas as produções de Coutinho ao seguir um único princípio ético. Para concluir, por existir um “projeto” em Coutinho, de modo metonímico, um único filme, Santo forte, servirá para demonstrar como se concretiza a ética do cineasta, mesmo que a metodologia de realização dos filmes possa variar de acordo com cada trabalho.

A Tradição

Ao longo da trajetória da realização cinematográfica, o conceito de documentário passou por várias definições – que apresentavam desde a ilusória idéia de “apresentação” do mundo até o reconhecimento da “representação” deste -, assim como a própria forma de se produzir os filmes foi se modificando – ou por romper com uma estilística específica ou por utilizá-la de um modo inovador ou, ainda, porque novos recursos tecnológicos possibilitaram o desenvolvimento de metodologias diferentes -, o modo de o espectador compreender as imagens apresentadas também não foi sempre igual – ora acreditando estar diante da própria realidade ora dainte de uma realidade mediada pela câmera e, portanto, fictícia.

O documentário pode falar do seu objeto, falar pelo objeto, falar com o objeto ou ele próprio ser o objeto. O que se pretende com o filme determinará o modo como ele será realizado.

Dentro da Tradição do documentário, é no “Cinema-verdade” que identificamos a produção de Eduardo Coutinho, na qual a entrevista expõe o espectador ao acontecimento fílmico valendo-se de equipamentos leves, com som direto e filmando situações que só existem em função do ato da filmagem.

O “Projeto”

Nascido em São Paulo, no ano de 1933, Eduardo Coutinho iniciou em 64 no Rio de Janeiro sua carreira no cinema como roteirista e diretor de filmes de ficção. Seu vínculo com o documentário surge, em 1975, quando passa a integrar a equipe do Globo repórter (TV Globo), tendo dirigido vários programas. Em 1981, Coutinho retoma as filmagens de Cabra marcado para morrer (1984), que haviam sido iniciadas em 1964 como uma ficção baseada em fatos reais que seriam encenados pelos próprios envolvidos, mas que foi interrompida pelo Golpe Militar. Esse filme, constituído por cenas do projeto original e por entrevistas realizadas anos depois, foi considerado por Bernardet, em seu livro “Cineastas e imagens do povo” (1985), um divisor de águas na produção do documentário no Brasil. Depois, o mesmo crítico, na segunda edição de seu livro, já em 2003, diz que hoje “não se pensa mais documentário sem entrevista, e o mais das vezes dirigir uma pergunta ao entrevistado é como ligar o piloto automático” (p.286), porém, mais adiante em seu texto, faz a ponderação: “Outrossim, a entrevista pode ser um estilo, como no cinema de Eduardo Coutinho” (p.296).

Os filmes de Coutinho estão baseados na entrevista ou, como Coutinho costuma dizer, na “conversa”, que está implicada na construção de um diálogo verdadeiro entre o cineasta e os participantes no qual, guardadas as relações de poder que envolvem uma conversa filmada, ambos podem dividir os papéis de perguntar e de responder e, assim, seguir numa interação que parte de pontos pré-determinados pelo cineasta, mas que segue a partir daquilo que vai se apresentando no momento.

A reflexividade também é regra para Coutinho. A metalinguagem para expor ao espectador os mecanismos de realização do filme é fundamental para a explicitação da representação e de sua construção, já Coutinho não visa a criar um discurso transparente.

Assim como o potencial significativo da entrevista foi banalizado pelos “seguidores” de Coutinho, a reflexividade também o foi. Segundo Lins (2004:13), “revelar a presença da equipe na imagem, prática inaugurada por Coutinho em Cabra marcado para morrer (1984), é exemplar de um tipo de procedimento que se banalizou na produção documental brasileira”.

O que parece ter se tornado uma fórmula para a realização de bons documentários passou a ser rompida pelo próprio Coutinho para, com isso, reafirmar a validade de seu Projeto.

Em Peões (2004), Coutinho abandonou o procedimento de realizar o filme em uma única locação – como ocorrera nos anteriores Santo forte (1999); Babilônia 2000 (2001) e Edifício Master (2002). Já em O fim e o princípio (2005), a etapa de pré-produção foi eliminada, pois essa é uma obra que foi se definindo na medida em que era produzida, visto que a equipe chegou ao sertão da Paraíba sem saber se encontrariam, de fato, pessoas dispostas a participar do filme e sobre o que elas falariam. Em seu documentário mais recente, Jogo de cena (2007), Coutinho não foi até seus personagens em suas casas. Os personagens foram selecionados a partir de um anúncio de jornal (que convidava mulheres para contar uma história marcante de suas vidas) e o documentário foi filmado num palco de teatro. Além dessas mulheres, que podem ser tratadas como “atrizes sociais” (cf. terminologia de Nichols, 2005), participaram ainda atrizes profissionais, tanto as mais quanto menos conhecidas, outra novidade em seu Projeto. Nesse filme, a metalinguagem, como sempre presente, e a revelação do processo de encenação são elevadas à máxima potência: não só as mulheres encenam suas histórias como também essas narrativas são interpretadas pelas atrizes num jogo que não permite que seja identificada a “dona da história” e, com isso, o que seria “verdadeiro” ou não, mostrando que diante de uma câmera sempre haverá representação, encenação.

Pode-se dizer que Eduardo Coutinho foi responsável por modificar a produção documental e por influenciar uma geração de novos documentaristas, mas, ao longo de seu Projeto, ainda em processo e, por isso mesmo, inacabado e em constante transformação, Coutinho modifica e adapta seus procedimentos metodológicos de acordo com cada obra para, justamente, continuar sendo o mesmo naquilo que é essencial: sua ética (que está implicada no interesse real pelas pessoas e pelos personagens que são construídos diante da câmera).

Acredito que o “Projeto” de Coutinho visa ao diálogo como a concretude de sua ética. Um diálogo que se dá “olhos nos olhos” em diferentes níveis, momentos e interlocutores. Um diálogo que sempre é ativo e constituído por aquilo que pode ser audível (fala) ou silencioso (o olhar, os gestos), visível (a imagem) e invisível (a imaginação, a “imagem mental”). Há o diálogo do cineasta com ele próprio; do cineasta com sua equipe; do cineasta e sua equipe com os personagens; dos personagens com eles próprios no momento da reconstituição de conversações ocorridas no passado, quando assumem o papel de todos os interlocutores; do cineasta, da equipe e dos personagens com os espectadores e, finalmente, dos espectadores com a obra. Sendo, assim, diálogos em “cascata”. Diálogos em “abismo” [1].

“Santo forte”

Em Santo forte, filme que apresenta o encontro do cineasta com moradores de uma favela localizada num morro carioca para tratar sobre a experiência religiosa dessas pessoas, inaugura tanto a retomada de Coutinho às salas de cinema quanto à crença do diretor no poder expressivo das narrativas que são criadas pelos participantes ao ponto de excluir do filme tudo aquilo que seria mera ilustração do discurso verbal e corporal. As narrativas elaboradas pelos personagens – que podem ser lidas pelos espectadores tanto pelo que dizem por meio de palavras quanto por meio de seus gestos, silêncios, entonações e hesitações – são acompanhadas de planos que apresentam os locais onde ocorreram os fatos relatados pelos personagens, de imagens de estátuas que representam entidades religiosas e de closes dos personagens que encaram fixamente a câmera e nada dizem. Assistindo ao material bruto do filme, podemos observar que para o registro desses closes, Coutinho dirige os personagens solicitando que olhem para a “máquina, como retrato”, e não para ele; que troquem de lugar para equilibrar a composição da imagem; que não pisquem (confirmando com o câmera se, de fato, ninguém pisca); que fiquem sérios e, depois, que sorriam. É evidente o incomodo causado em alguns dos personagens diante dessa situação. Muitos respiram fundo e se posicionam melhor onde estão sentados. Eventualmente, alguém da equipe diz que a imagem está bonita, que há brilho nos olhos.

Essas imagens, produzidas como se fossem para uma fotografia estática, coladas entre o fluxo dinâmico dos demais planos, causam certo estranhamento e uma ruptura no ritmo da montagem de imagens em movimento. Conforme Peixoto (2007:430),

A percepção do tempo, de outra durée, resgata gêneros tidos como anacrônicos e superados na arte atual, o retrato e o paisagismo. Nós nos acostumamos a só ver aquilo que é dinâmico, que se agita ante os nossos olhos, que acontece. (…)Rostos, gestos e paisagens exigem contemplação (…)É preciso ter tempo para ver os rostos e a paisagem. Para se evidenciarem a força e a atmosfera que deles emanam. O drama interior das pessoas, a serenidade dos lugares. Tudo aquilo que não se estampa de imediato.

O olhar fixo e duradouro em direção à câmera atinge diretamente o espectador – que se sente visto ao mesmo tempo em que vê, ainda que num tempo e espaço especiais, em que cada parte que vê o faz de um tempo e um espaço diferentes – cria um encontro entre a diegese (o personagem) e o real (o espectador) rompendo-se, assim, a “quarta parede”. Desse modo, o olhar do personagem para a câmera e o olhar do espectador para a tela se encontram sem a possibilidade de passarem despercebidos. O personagem atua para o espectador que está implícito pela presença da câmera.

Ainda, para Peixoto (2007:436-437),

Imagens que procurem olhar o mundo nos olhos, que tendem deixar as coisas nos olharem. Perceber aquilo que faz as coisas falarem, a sua luz, o seu rio subterrâneo. Essa atitude – esse respeito pelas coisas – é ética. Olhar o mundo como uma paixão, algo dotado de luz, de uma capacidade de nos responder ao olhar. Não se trata de procurar cenas naturais, mas de um modo de ver. Ver rostos e cidades como paisagens. Uma ética do olhar.

Segundo Coutinho[2], os closes são os retratos das pessoas e a explicitação de que a câmera não está escondida, de que é filme e que as pessoas podem olhar para ela em vez de fingir que nada está acontecendo. Para além de uma explicitação da representação, acredito que a inclusão dos closes no filme dá a versão não-verbal que atesta a singularidade (e não estereótipos, clichês) que Coutinho busca encontrar nos depoimentos apresentados pelos personagens, que sempre falam sobre o que vivenciam, sobre o que são ou sobre o que gostariam de ser. Dessa forma, nos depoimentos, os personagens criam (possibilitados e motivados pelo interlocutor interessado e ativo, que Coutinho é) a melhor representação sobre si mesmos. Simbolicamente, o close assume também uma condição de imagem como “documento”, aos moldes das fotografias para passaporte ou RG, que atesta uma identidade, uma individualidade, um sujeito, tão único quanto o “Projeto” de Coutinho.

Referências bibliográficas

BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras. 2003

LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho- televisão, cinema e video. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2004

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005

PEIXOTO, Nelson Brissac. “Ver o invisível: a ética das imagens”. In Ética. (org.) Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras. 2007

SALLES, Cecília Almeida. “Crítica genética e semiótica: uma interface possível.” In Criação em processo – ensaios de crítica genética.(org.) Roberto Zular. São Paulo: Iluminuras. 2002.

VANOYE, Francis e GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. São Paulo: Papirus. 1994


[1] Sobre o diálogo do artista com sua obra, Cecília Almeida Salles (2002:194) diz que há “Diálogos internos: o ato criador é resultado de uma mente em ação, que faz reflexões de toda espécie. São os diálogos do artista com ele mesmo; Diálogo do artista com a obra em processo: ao longo do percurso, o artista muitas vezes vê-se produzindo para a própria obra e respeitando as leis internas que já se consolidaram; Diálogo do artista com o receptor: a obra necessita de um receptor.(…) Está inserido em todo processo criativo o desejo de ser lido, escutado, visto ou assistido.”

[2] Conforme entrevista à autora em 2002.

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Este post tem 3 comentários

  1. Author Image
    Felipe Xavier

    Olá,
    meu nome é Felipe Xavier, sou cineasta e estou realizando um documentário chamado “Por Uma Outra Democratização” em parceria com outro cineasta chamado Arthur Moura. Estou a procura do contato por e-mail do Eduardo Coutinho, pois, desejo entrevista-lo em meu filme, gostaria de saber se vocês podem encaminha-me um e-mail para eu estabelecer esse contato com Ele.

    Obrigado e atenciosamente,
    Felipe Xavier.

  2. Author Image
    Mauricio Hermann

    Olá

    Boa Noite. Me chamo Mauricio Hermann e estou fazendo um trabalho no qual gostaria de entrevistar o cineasta Eduardo Coutinho. Vocês poderiam  me passar o contato por favor? Obrigado

  3. Author Image
    Lilianferrar

    Oi! Meu nome é Lilian Ferrari, sou jornalista, editora de conteúdo audiovisual e especialista em Televisão. Procuro o e-mail do Eduardo Coutinho. Vocês tem como me ajudar?! Agradeço. Abs. 

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