Fotografia, Interatividade, Interações: a Construção das Realidades

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Fernando L. Fogliano é fotógrafo e artista multimídia, doutor e mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), especialista em Engenharia da Computação (Escola Politécnica-USP) e graduado em Física (Universidade Mackenzie). É líder do Grupo de Pesquisa da Imagem Contemporânea (GPIC), cujo objetivo é pesquisar a imagem contemporânea em suas inserções na cultura humana enquanto estratégia tecnológica ligada à produção de conhecimento, comunicação, artes e design. Realiza experimentos artísticos, estudando a produção contemporânea da imagem no campo dos paradigmas científicos. É artista do grupo SCIArts.

Denise C. F. de Camargo é fotógrafa, doutoranda em Artes (Unicamp), mestre em Ciências da Comunicação (ECA-USP), pós-graduada na Faculdade de Ciências da Informação (Universidade de Navarra, Espanha), e graduada em Jornalismo (ECA-USP). Tem experiência profissional em fotojornalismo. Foi editora de veículos especializados na difusão cultural da fotografia brasileira. Seus estudos e pesquisas se concentram em teoria e crítica fotográfica e imagem na tradição afro-brasileira. Recebeu o Prêmio JT de Jornalismo (1991).  É pesquisadora do Grupo de Pesquisa da Imagem Contemporânea (GPIC) e membro do Núcleo de Pesquisa Fotografia: Comunicação e Cultura, da Intercom. Desenvolve projetos curatoriais, editoriais e culturais.

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Resumo de trabalho apresentado no NP Fotografia: Comunicação e Cultura – Encontro dos Núcleos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

O surgimento das tecnologias digitais introduz um interessante paradoxo, que não passou despercebido por Lev Manovich no texto The paradoxes of digital photography, no que diz respeito à produção contemporânea de imagens. A mudança da matriz tecnológica do registro não impõe alterações na forma de captura e organização da informação luminosa sobre o suporte. Sob esse aspecto as câmeras continuam, como aponta Arlindo Machado em A ilusão especular, a utilizar a perspectiva de ponto central, perpetuando o projeto renascentista de representação da realidade.

Simultaneamente, as tecnologias digitais promovem importantes mudanças na lógica da produção de imagens. A mais importante delas refere-se à ênfase dada anteriormente aos processos de produção da imagem se comparada com o que ocorre agora. Sob a égide das tecnologias, deslocam-se para os processos de pós-produção. Com essa nova operação, perdem relevância a questão da veracidade e a ambição convencional de captar uma composição perfeita num único quadro – ideal bressoniano que, em essência, é um corolário do realismo inerente ao registro fotográfico.

A fotografia digital aplica o golpe de misericórdia às limitações realistas existentes no âmbito da fotografia fotoquímica, embora, cabe considerar, já tenham sido suficientemente resolvidas antes do surgimento das tecnologias digitais. O trabalho do fotógrafo mexicano Pedro Meyer, disponível no livro Realidades e Ficcções, é emblemático, nesse sentido. A fotomontagem é, portanto, o caminho natural para a fotografia eletrônica, livre para explorar, sem quaisquer empecilhos, todas as novas e crescentes potencialidades que as tecnologias da fotografia digital, num ritmo sempre crescente, proporcionam.

Nos seus primórdios a fotografia desenvolveu-se em duas direções. Uma, para a qual Nièpce e Daguerre estabeleceram as bases iniciais, tem por princípio a reprodução das aparências: trata-se da “foto-grafia” ou a “escrita da luz”.  A outra direção foi aquela inaugurada por Fox Talbot em seus photogenic drawings, desenvolvidos durante os anos 1830, que propunham impressão de folhas, flores, desenhos por contato sobre uma superfície fotossensível.

Até certo ponto trata-se da mesma invenção – mas apenas até certo ponto, pois o uso social desses dois tipos de fotografia não é de forma alguma o mesmo: o primeiro tipo serviu de imediato para fazer retratos, paisagens, reforçou e depois substituiu a pintura em sua função representativa; o segundo tipo, aliás bem menos desenvolvido, deu origem a práticas mais originais como a do fotograma, do rayograma de Man Ray (Aumont, 1993:165).

Sob a primeira influência desenvolveu-se um tipo de fotografia que se tornou padrão para importantes segmentos da produção fotográfica contemporânea. A fotografia documental e a straight photograpy, por exemplo, podem atestar o alto nível de desenvolvimento e sofisticação que estas vias já atingiram. Já os fotogramas, que captam apenas algumas das características dos objetos, tais como silhuetas, transparências e texturas, muitas vezes insuspeitadas, ampliam e fertilizam nossa subjetividade e experiência sensória. Para Moholy-Nagy, esse tipo de fotografia era de um valor inestimável na educação daquilo que ele chamava “uma nova visão” (Ades,1993: 148).

Hoje, sob a luz das novas tecnologias digitais da imagem, essa tendência encontra o ambiente adequado para sua aplicação e desenvolvimento. A partir desta constatação, despertam interesse a obra de fotógrafos e artistas que buscaram inspiração na fotomontagem, no fotograma, na pintura. Fotógrafos e artistas encontram na imagem digital uma flexibilidade para sua manipulação que, segundo Pedro Meyer, a aproxima dessa prática artística, em virtude da exploração da liberdade criativa. A relação entre fotografia e a pintura não se inicia nesta era digital. Entretanto, essa nova matriz tecnológica a potencializa, alterando seu estatuto. Mesmo quando documental, a fotografia não representa automaticamente o real; ao contrário, “totalmente construída, ela fabrica e faz advir mundos”. A partir dessa idéia, Rouillé (1988) considera necessário investigar como a imagem produz um real. Para ele, o confronto entre ícone e índice faz parte de um conjunto de oposições binárias: artista versus operador; artes liberais versus artes mecânicas; originalidade e unicidade versus similaridade e multiplicidade. A principal crítica do autor ao modelo do índice reside no fato de que ele reduz a fotografia ao funcionamento elementar de seu dispositivo, freqüentemente associado a um simples automatismo. O que implica a análise da autonomia relativa das imagens e de suas formas em relação ao referente.

Considerando as possibilidades de sua aplicação, a natureza digital da imagem fotográfica passa a permitir que processos expressivos híbridos se dêem com maior facilidade o que, de fato, já vem ocorrendo com grande freqüência. Imagens, sons, textos, como códigos numéricos, despidos das características que nos fazem percebê-los como tais no mundo real. Em seu estado virtual, qualquer informação pode ser considerada como música, imagem, texto, ou escultura. A informação só assumirá caráter formal quando se decidir para qual dispositivo de interface e com qual formato estes dados serão apresentados. Desta forma imagem e som interagem em sistemas multimidiáticos permitindo o surgimento de novas formas expressivas. Com as tecnologias digitais é possível ver uma peça musical na tela, ouvir imagens numa caixa de som ou experimentar um poema literário em forma holográfica. O canadense David Rokeby criou uma câmera capaz de interpretar como música as imagens de um bailarino em ação. Estamos testemunhando o surgimento de sistemas onde imagens e informações assumem múltiplas formas, transfiguram-se infinita e instantaneamente, se refletindo na simultaneidade e na intensa imbricação dos processos culturais. Sobre isso, Annateresa Fabris (1998) nos diz:

Com o avanço das tecnologias, a interatividade inclui agora a possibilidade de diálogos que vão para além da imagem, estendendo-os aos objetos virtuais simulados no computador. A imagem passa a ser uma interface entre a simulação computacional e o indivíduo.

A construção das realidades mediada pela interatividade

Leontiev (Kaptelinin, 2006: 51) considerava que a mente humana é intrinsecamente relacionada à interação com o mundo, desenvolvendo-se de forma a torná-la bem sucedida. Damásio (2000: 44-45) vai tratar o conceito de consciência também observando que ela emerge da relação do indivíduo com o ambiente circundante, isto é, o real. A consciência traz ao indivíduo a possibilidade de conectar os processos regulatórios da vida, que ocorrem em regiões profundas do cérebro, ao processamento das imagens mentais que representam as coisas que ocorrem dentro e fora do organismo.

Couchot (Domingues, 2003: p.27-38), ao refletir sobre a evolução dos processos de modelagem utilizados para a realização de imagens numéricas desde os anos 70, faz referência aos algoritmos cada vez mais complexos e inspirados em modelos científicos recentes, como o das ciências cognitivas e da genética. Nesse processo evolutivo o autor reflete sobre o nascimento de um tipo novo de relação entre o espectador e a imagem, levando-o a definir o que ele chamou de segunda interatividade. Nesse contexto emergente, as imagens modificáveis em tempo real adquiriram uma propriedade nova: permitir o estabelecimento de diálogos, processos interativos entre a imagem e os objetos virtuais modelados no software do computador. Couchot classifica os processos interativos definindo interatividade endógena e exógena. No primeiro caso, a interatividade observada na imagem ocorre entre objetos virtuais, sem a possibilidade de intervenção externa. Nesse tipo de situação a interação entre espectador e obra é muito pequena. Na situação de interatividade exógena são disponibilizados ao espectador recursos que possibilitam a interação com o modelo computacional internalizado no software, sensores e atuadores, permitindo-o interagir alterando a imagem em tempo real. Neste caso a interação é tão marcante a ponto de termos de substituir a designação “espectador” por “interator”.

No contexto da produção das imagens, cabe considerar que os italianos do quatroccento sistematizaram um processo de representar que, ainda hoje, passados quase seiscentos anos, é paradigma para a figuração “realista”, considerada a cultura ocidental.  Este processo lançou as bases para a visualidade da imagem técnica que viria a se constituir a partir do século XIX. Pode-se dizer que as pesquisas de Brunelleschi são o passo inaugural da longa marcha que resultará nas atuais mídias. Fotografia, cinema, vídeo, processos digitais de visualização. Este processo alia de forma insólita a arte e a ciência em uma concepção de imagem. O progresso da ciência e da técnica requer um novo tipo de informação.

Nesse contexto, a imagem pode ser estudada segundo os processos cognitivos. Perceber visualmente um ambiente tridimensional com base na informação das retinas – bidimensionais  é uma enorme façanha de nosso sistema perceptivo (???). Assim, o debate imagético pode ampliar ainda mais seu campo para a construção da visualidade voltada para todos os sentidos – um olhar que toca em todas as superfícies, ambientes, suportes, informações: nem percepção tátil em que mão e olho estabelecem uma subordinação, nem percepção óptica subordinada apenas à visão. Esse modo de olhar é o dos ambientes virtuais. O tato combina-se com os outros sentidos, e pode até mesmo tocar o intocável – um novo modelo perceptivo (Camargo, 2002).

Os suportes para composições e narrativas visuais podem operar também como ferramentas das artes visuais, da imagem, do design, tanto em virtude da noção de montagem desenvolvida pelo cinema (e que pode ser compreendido aqui como um processo de organização das imagens, onde o tempo e o espaço assumem um lugar estrutural na constituição de narrativas – uma natureza seqüencial),  quanto em virtude da experiência visual determinada por um espaço-temporal e suas relações internas.

Se a natureza da imagem digital se constitui de elementos como o número (maneira como é produzida), a interface (como é manipulada e qual o suporte possível para ela), a virtualidade (condição em que se encontra a sociedade ao receber as imagens digitais) e a interatividade (o modo como se manifesta) e se a fotografia de base química sofre seus impactos, é natural que fotografias nunca mais sejam olhadas como eram antes. A síntese entre o fotográfico e o digital faz surgir um novo histórico de imagens, cujo desenvolvimento condiz com os avanços tecnológicos e das tecnologias da informação, e cuja principal conseqüência é a formação de novos padrões visuais e de um novo olhar sobre a fotografia, embora os vestígios e a migração de códigos sejam bastante aceitáveis. O paradoxal é que os códigos para a representação das realidades tendem a permanecer já que, ao que parece, são autônomos e não são exclusividade apenas aos sistemas mecânicos de representação do mundo.

A soma da informação fotográfica com a numérica oferece novas possibilidades estéticas de recriação de poéticas visuais. Abre-se um campo exploratório bastante vasto para, por exemplo, os foto-artistas ou fotógrafos que não mais fotografam, mas se apropriam de imagens já realizadas ou por si mesmos ou por outros autores, criando novas noções de autoria, original e autenticidade.

A hibridização do óptico e do numérico fornece imagens melhores que as que produzem o analógico, pois podem convocar as realidades imaginárias, conceituais ou simuladas. As novas condições de produção oferecem ao autor numérico uma liberdade vertiginosa para construir a representação e o sentido. Fundem-se todas as possibilidades da figuração da pintura, da propaganda, da ficção, da imagem. A fotografia é, desde o seu início, um meio perceptivo, ela está se transformando em um meio conceitual […] (Morice, 1997: 20)

Referências Bibliográficas

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