Por que Cinema com Antropologia? Breve relato de uma experiência etnográfica de recepção cinematográfica

Maria Catarina Chitolina Zanini – UFSM é Pós-Doutora – Museu Nacional – UFRJ e Doutora em Ciência Social (Antropologia Social) – Universidade de São Paulo, USP.

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Este artigo apresenta algumas reflexões acerca do encontro entre Antropologia e Cinema baseado em caso empírico por mim vivenciado durante a elaboração e execução do projeto Antropologia e Cinema I, na UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), nos anos de 2006/2007. Projeto este que foi premiado pela ABA (Associação Brasileira de Antropologia), juntamente com a Fundação Ford, como um projeto inovador no ensino da Antropologia.[1] Meu objetivo era, por meio da utilização da linguagem fílmica, introduzir, via debate, a apresentação e discussão de alguns conceitos e temas caros à Antropologia, em especial, naquela edição do projeto, acerca das questões étnicas e raciais.

Mediante esta experiência etnográfica pude melhor compreender alguns dos pressupostos que haviam me inspirado teoricamente, abandonar outros e, também, elaborar meus próprios pontos de vista acerca deste encontro entre campos de conhecimento e de criação tão ricos e complexos. Não se trata de um artigo que explorará conceituações ou teorias acerca do Cinema, mas visa salientar o quanto ele, no momento contemporâneo, está “na vida” das pessoas (Geertz, 1997), na História, nos espaços públicos e privados e negocia significados. Significados esses e representações que são matéria-prima para a Antropologia interpretar. Enfim, trata-se de um artigo que tem por objetivo salientar o quanto este encontro é “bom para pensar” e para tornar mais lúdico, por vezes, o espaço acadêmico de ensino científico.

No cruzamento das historicidades, culturalidades e criações cinematográficas, há muito em comum. São todas formas de diálogo entre as partes e o todo, entre indivíduos e suas sociedades, entre hierarquias, entre eus e outros, entre mundos. Cruzá-las, interpretá-las, pensá-las para além de si mesmas era a pretensão do projeto que tinha, também, um objetivo pragmático: ouvir e dialogar (se possível). O ponto de chegada imediato era, de fato, as pessoas que se propunham a assistir aos filmes, já previamente selecionados, e dialogar com o público ali presente, formado pela equipe do projeto e por outros espectadores.

Antropologia e Cinema I: do empírico ao campo científico.

O projeto Antropologia e Cinema I estava dividido em dois grandes módulos, cada um a ser desenvolvido durante um semestre letivo. Tais módulos se denominavam: IA questão racial no cinema, em que foram exibidos os seguintes filmes: O Massacre de Rosewood (Rosewood, EUA, 1997), de John Singleton; Uma história americana (The long walk home, EUA, 1990), de Richard Pearce; Sarafina! – O Som da Liberdade (Sarafina!, EUA, 1993), de Darrel Roodt; Mississipi em chamas (Mississippi burning, EUA, 1988) de Alan Parker e Duro aprendizado (Higher learning, EUA, 1995), de John Singleton e o Módulo II, denominado de Etnicidade e Cinema, no qual foram exibidos os filmes: Brincando nos campos no Senhor (At play in the Fields of the Lord, EUA, 1991), de Hector Babenco; A Cozinha de Toto (The kitchen Toto, EUA/Quênia, 1990), de Harry Hook; Skinheads – A Força branca (Romper stomper, Austrália, 1992), de Geoffrey Wright; Rei dos ciganos (King of the gypsies, EUA, 1978), de Frank Pierso; Bem-vindos ao paraíso (Come see the paradise, EUA, 1990), de Alan Parker e Casamento grego (My big fat greek wedding, EUA, 2002), de Joel Zwick.

Nosso[2] objetivo era atrair para as sessões de exibição e para o debate um público variado de espectadores. Como se tratava de um projeto de extensão universitária, almejávamos fazer com que pessoas da comunidade santa-mariense em geral se sentissem atraídas pelo tema e pelas discussões. O local escolhido para as exibições foi a sala de Vídeo da Biblioteca Central, localizada num ponto estratégico do Campus universitário, o que facilitaria a vinda de um público mais diversificado. Os horários escolhidos foram às quintas-feiras pela tarde, a cada 15 dias, com encontros de, em média, 3 a 4 horas, entre filme e debate. Havia uma equipe de alunos (um bolsista[3] e voluntários) que me auxiliavam na divulgação, organização e manutenção do cronograma do projeto.[4]

A intenção era, ao final de cada sessão, tendo um debatedor convidado, iniciar a reflexão acerca das questões apresentadas nos filmes. Os debates não foram uniformes, dependendo do filme, da platéia e dos próprios debatedores, houve mais ou menos interação e maior ou menor polêmica em torno de alguns temas. Ao final de cada sessão, igualmente, fazíamos um fechamento procurando encadear as várias sessões de cinema dos módulos. Alguns filmes, igualmente, produziam um certo silêncio pós-recepção, o que nos conduziu à elaboração de um roteiro de questões a serem respondidas em silêncio, após as sessões, por aqueles que desejassem contribuir com a pesquisa. Tal instrumento era anônimo, solicitando apenas algumas informações, tais como gênero e idade para que pudéssemos analisá-los melhor posteriormente.[5] Neste questionário, a pessoa poderia se expressar mais detalhadamente acerca de sentimentos, provocações ou reflexões que o filme havia lhe suscitado. Havia aqueles que levavam os questionários para casa e os entregavam nas sessões seguintes, o que para nós, da equipe, era visto como algo muito positivo, pois observávamos que alguns filmes impactavam os espectadores e que necessitavam de um tempo maior para serem melhor compreendidos ou “enquadrados” em suas possíveis interpretações. Em todos os questionários havia uma solicitação de consentimento para que as informações ali contidas pudessem ser utilizadas para fins de pesquisa.

Para o debate convidávamos, de acordo com o filme, antropólogos, literatos, cientistas políticos, sociólogos, historiadores, militantes, entre outros. Procuramos, por meio da sugestão de leitura de textos que ficavam disponíveis numa pasta (para elaboração de cópias), que aqueles que quisessem, pudessem entrar em contato com a literatura acadêmica acerca das relações entre mídias e Antropologia e também de textos introdutórios de Antropologia que permitissem a compreensão de alguns conceitos básicos, tais como cultura, sociedade, raça, entre outros. Esta estrutura organizativa se desdobrou no Antropologia e Cinema II, no ano seguinte. Nesta nova edição, trabalhamos mais especificamente com questões de Identidades, Etnicidades e Classes, na mesma proposta do Antropologia e Cinema I, nos mesmos dias e horários e no mesmo local.

Antropologia, Cinema e negociação de sentidos.

Não procurando analisar gêneros, estilos ou entrar em discussões acerca do cinema-arte (ou não), a riqueza do encontro entre estas duas formas de expressão e conhecimento é desvendar a possibilidade, sempre inacabada, de produção de sentidos e de encontros do indivíduo consigo mesmo e com os mundos ao seu entorno, sejam próximos ou distantes, “reais” ou imaginários. Para tal, compreende-se que as sociedades são complexos sistemas em que múltiplos referentes entram em conjunção e várias instâncias e esferas (econômica, política, cultural, biológicas, entre tantas outras) negociam entre si. Produzir arte, neste sentido seria, conforme Geertz, uma forma de falar sobre “a vida”. [6] Assim, entendo que, afora as questões estéticas, o cinema comercial que foi por mim utilizado como ferramenta antropológica no projeto pode ser considerado arte. Ele fala sobre “a vida” em múltiplas dimensões, da produção, à circulação e consumo das narrativas ali expostas. Nele, está explícita ou implícita “a vida” dos produtores, dos roteiristas, das equipes técnicas, dos atores possibilitando, igualmente, que o receptor possa, ao assistir, refletir e falar de sua vida também. Isto porque há um sistema de comunicação em comum que extrapola horizontes nacionais, locais ou regionais. E, mais especificamente, no que me tocava e interessava, em relação à recepção fílmica, quanto às questões raciais e étnicas que, no mundo Ocidental, possuem uma historicidade comum em determinados aspectos.

A arte (e o cinema enquanto tal), deve ser observada como produções culturais conjuntas e não autônomas, ambas dialogam entre si (e com tantas outras instâncias), com estruturas de significados particulares, com ressonâncias específicas e objetivos específicos que vão do devaneio à mercantilização e a necessidade da obtenção do lucro, tratando o filme como mercadoria. O que, em meu entendimento, em nada desmerece seu conteúdo ou a qualidade de sua exibição. Para se “ler” um filme, é importante compreender os contextos, as épocas e os sentidos que circulavam entre indivíduos e suas coletividades, como no mundo ocidental contemporâneo, por exemplo. Afinal, uns são feitos por e para os outros. Assim, como salienta Hijiki (1998, p.7), o cinema contemporâneo falaria para o homem e também deste homem. Fazer destas falas um encontro para análise é algo que desnuda muitas riquezas acerca das construções simbólicas para o antropólogo.

Neste jogo de sentidos, de eus e/com outros, mundos se encontram. Imagens são postas, dispostas e podem (ou não) provocar reflexões. Uma das questões que também considero importante é acerca da recepção fílmica como promotora e construtora de memórias. Memórias no sentido a estas atribuídas por Halbwachs (1990), ou seja, de leituras do passado elaboradas no presente, sendo individuais e coletivas ao mesmo tempo. Ou seja, os filmes, apesar de elementos e linguagens em comum, não tocam as pessoas da mesma forma, não vibram do mesmo modo. Alguns filmes, ao serem “lidos”, interpretados e negociados, permitem que o indivíduo “construa suas memórias”, ou seja, possa refazer, narrativamente, leituras sobre seu passado, sua trajetória de vida, seus gostos, opções e também acerca de seu estatuto no mundo. Este processo possível se torna extremamente marcante pela conjugação da linguagem fílmica: imagem, som, cenários e as possíveis emoções e sentidos neles presentes e deles fruto. Enfim, observo ser o Cinema um dos veículos mais marcantes de negociação de sentidos e de encontros dos indivíduos consigo mesmos, seus mundos (interiores e exteriores) e os mundos possíveis dos outros. Assistidos em silêncio, em família, no cinema, em casas, nos quartos, as narrativas fílmicas possibilitam um dialogar entre objetividades e subjetividades que, pensadas no personagem do outro, muitas vezes faz com que as próprias individualidades mais nitidamente se manifestem. Recorro a Geertz (1997, p.150) novamente, quando alerta que a conexão central entre a arte e a vida coletiva, no entanto, não se encontra no plano instrumental, mas sim no plano semiótico. Esta conjugação, além de outras, jamais deve ser perdida de vista no diálogo entre Antropologia e Cinema. Quanto às memórias, como salienta Gómez-Orozco, os media são catalisadores de identidades que afloram “detonadas por los referentes mediaticos” (2002/3, p.7). Ouvir e compreender este afloramento é o trabalho do antropólogo no, e com o cinema.

Quando se pensa em identidades étnicas, em sociedades nas quais os indivíduos vivenciam e negociam identidades hifenizadas, observa-se que este processo de rememoração provocado pela linguagem fílmica é ainda mais marcante, muitas vezes acompanhado de processos migratórios, colonizadores e tantas outras rupturas. Ou seja, o cinema, como um espaço de falar de, e sobre os indivíduos, cria cenários, representações, narrativas que conduzem ao enfrentamento, seja consigo mesmo, seja com os outros (presentes ou passados). Por isso, observar em determinados filmes os estereótipos ali apresentados, as falas com sotaques pejorativos, os encontros raciais, de gênero e etários é algo que merece ser estudado pela Antropologia também, pois num contexto de mercado, o cinema circula sentidos, mas também tem a capacidade de fortalecer ou reprimir identidades, habitus, tendências, entre outras possibilidades. Com histórias boas para se pensar o cinema pode, com certeza, ser um excelente espaço de discussão das hierarquias sociais, das estruturas de poder cristalizadas, entre tantas outras mazelas que incomodam o espaço coletivo e acabam por naturalizar determinadas desigualdades sociais. Outra questão importante que observo nas narrativas fílmicas é o quanto estas são boas para o antropólogo observar como são construídas as intersecções, os “deslizamentos” de sentido (Bhabha, 2001), as zonas de contatos discursivos. Pelas imagens, pelas palavras, pelos cenários, eus e outros em contraste, em processos de construção de identificações e de sobrevivências. Ali se encontram os outros “traduzidos”, o que, sem dúvida é importante também para melhor se compreender as sociedades que produzem, circulam e consomem tais representações e porque essas e não outras. Afinal, inspirada em Foucault (2007), acresceria que discursos (em suas diferentes formas) são motores históricos, ou seja, podem fazer ao dizer. Para além, disso, como ressaltam Shohat e Stam (2006), é preciso procurar as “presenças relacionais” que estão nos filmes, por vezes implícitas em discursos outros.

Não se pode deixar de lembrar que historicamente tanto o Cinema quanto a Literatura tiveram um papel importante na tentativa de construção das identidades nacionais[7] e na legitimação de determinadas instâncias de poder. Inseridos em indústrias, estas formas de arte foram e são, de certa forma, discursos de poder também. O Cinema, ao ser consumido, pode, igualmente, estar sendo utilizado como uma forma demarcadora de determinado “estilo de vida” (Featherstone, 1995)[8]. Assim, arte, mercado, cultura e consumo são elementos em trânsito, fazendo com que os encontros e as tensões sejam visíveis quando observamos tais arenas como “campos” (Bourdieu, 1998), em que há agentes em disputa por interesses diversos, “reais” ou imaginários. Além disso, não se pode perder de vista os contextos múltiplos de produção, circulação e consumo dos filmes.[9] Há filmes melhores ou piores do ponto de vista técnico ou estético, mas sem dúvida, tanto os bons como os maus filmes findam por serem “bons para pensar”.

Etnografia da recepção cinematográfica? Aprender fazendo?

A região na qual está situada a Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, no centro do Rio Grande do Sul, foi colonizada por grupos étnicos diversos (alemães, italianos, portugueses, sírio-libaneses, afro-descendentes, palestinos, poloneses, judeus, entre outros) e carecia, em minha compreensão, de espaços de debate e reflexão acerca das diversidades étnicas locais e também, mais especificamente, acerca da questão racial como um problema social que merecesse reflexão. Em muitos anos de magistério nesta instituição, eu observava que as salas de aula reproduziam um certo padrão social e étnico e vislumbrei ser o espaço proporcionado pela linguagem fílmica, um fórum privilegiado para o debate antropológico mais amplo acerca das diversidades locais. Selecionei filmes que considerei capazes de “gerar o debate” e provocar reflexões.

Era comum se ouvir, após a exibição dos filmes, comentários de que algumas questões ali postas não haviam sido, até então, objeto de reflexão por parte de alguns dos espectadores. Isso nos atestava que os filmes eram, acima de tudo, “bons para pensar” e o quanto estávamos certos em algumas de nossas intenções. Optamos, na primeira edição do projeto, por utilizar filmes mais conceituados e que tinham um padrão de qualidade de imagem, som e roteiro já consagrados em nível mundial. Eram bons filmes em muitos aspectos, o que permitiu que o público se mantivesse fiel às sessões quinzenais. Posso dizer, igualmente, que pude unir duas de minhas “paixões”, a Antropologia e o Cinema e que este Projeto foi um momento marcante de minha vida profissional. Ressalto, contudo, que minha relação com o Cinema é de consumo. As críticas que faço passam mais pelo que vejo ser possível de ser tratado enquanto “objeto antropológico” do que simplesmente se a cenas foram bem feitas, se a fotografia estava perfeita, se os cenários eram bem ou mal trabalhados, entre outras questões postas por especialistas na área. Os filmes selecionados no projeto Antropologia e Cinema I foram muito férteis para a inserção do debate antropológico. Sempre respeitamos e informamos, igualmente, a recomendação de idade para assistir aos filmes, pois em alguns deles havia cenas mais marcadamente tensas. Eram filmes do circuito comercial, alguns com elencos famosos e carismáticos, o que também provocava uma empatia com a platéia em geral.

A recepção, para nós, era compreendida como um espaço de criação, de elaboração de sentidos (Orozco-Gomes, 2003/2) existentes e outros em elaboração.[10] Os receptores que ali estavam não eram meros reprodutores nem seres a serem “influenciados”, mas sim pessoas que poderiam ter um espaço e um tempo para refletirem acerca de suas construções sociais e identitárias. Aliás, se não acreditássemos nesse espaço criativo da arte e da recepção, um projeto como o nosso não poderia se propor, por meio do debate, “tocar em feridas”, ou seja, nas representações sociais e nas hierarquias que os espectadores traziam para a sala de exibição e que poderiam acreditar serem “já dadas”, naturalizadas e não construções sociais e históricas. Entendíamos, também, que cada indivíduo possui elementos de mediação presentes em suas trajetórias (vide Martín-Barbero, 2003) e que almejávamos, acima de tudo, despertar inquietação, nada mais. Não questionando uma possível passividade pelo fascínio (França, 2003), procurávamos, por meio da etnografia da recepção, estarmos atentos ao encontro entre espectadores, imagens, sons e discursos. E, tínhamos que estar atentos também à historicidade e temporalidade das construções culturais ali manifestas.

Para a equipe do projeto, tentar fazer etnografia da recepção destes filmes foi algo muito gratificante. Observar os gestos da platéia, os desconfortos nas cadeiras quando de cenas mais tensas, os comentários aos pés dos ouvidos dos colegas ao lado. Enfim, o cinema, o assistir, o ver, o ouvir, o escrever sobre ou mesmo, pensar sobre se revelou para nós em um objeto extremamente rico, seja do ponto de vista das negociações de sentido que observávamos acontecer in loco, seja pela sociabilidade que cada nova sessão favorecia. Entendemos, desta forma, o Cinema, sua forma e conteúdo e também sua produção, circulação e consumo como fatos sociais totais (Mauss, 1974), no sentido de que envolvem os sujeitos em suas múltiplas dimensões (psicológicas, histórico-sociológicas, biológicas, entre outras). Para além das hierarquias e contrastes apresentados pelas sociedades contemporâneas, o que se observa é que a dialética entre interioridades e exterioridades, entre objetividades e subjetividades, proporcionada pela arte é algo ímpar. Se a arte teria por intenção manifestar sentido por meio de suas expressões, pode-se avaliar a importância de se trabalhar o espaço das recepções cinematográficas, seja em pequenas ou em escalas qualitativamente maiores. Uma das primeiras antropólogas a fazer tal estudo, Hijiki (1988) apresenta, de uma forma bastante instigante, alguns dos passos possíveis de serem teórica e metodologicamente trilhados neste campo aberto e ainda pouco explorado, das relações entre Cinema e Antropologia. Como aponta a autora, com quem compartilho da idéia, o Cinema deve ser tomado como um “campo” e os filmes ficcionais podem ser lidos como documentos culturais. O que adviria da recepção destes documentos culturais é um processo incessante de negociação de significados e, penso, nisto residiria sua riqueza.

Para Mascarello (2005,2006), os estudos de recepção de cinema ainda são tímidos (ou inexistentes) no Brasil e que, talvez, um diálogo profícuo possa nascer da interação de perspectivas e fusão de horizontes entre campos científicos diversos. O mais importante, penso eu, seja a visão ampliada de que arte e mercado não se excluem e que as análises, seja da produção, da circulação ou do consumo do Cinema requer uma leitura das individualidades contemporâneas, das sociedades e também de que os sentidos circulam, modificam-se e podem ser esquecidos. Essa dinâmica está vivamente presente no Cinema, pois ele, ao invocar reflexão, traz à tona memórias (do passado) e sentidos novos, carentes ainda de significação. O que Mascarello denomina de “espectatorialidade cinematográfica” (2006, s.p.) foi, de certa forma, o que ousamos fazer neste campo de encontros, ainda, pequeno.

Considerações Finais

Cinema e Antropologia não poderiam dialogar entre si sem pensarmos na historicidade de tais campos de conhecimento e expressão e a forma como estão conectadas com as sociedades (locais, regionais, nacionais, globais, transnacionais, transculturais) e culturas com as quais interagem. Cada campo, com seus agentes, códigos, interesses, linguagens e bens em particular potencializam determinadas visões acerca do mundo. Campo científico e campo artístico podem dialogar? Compreende-se que sim, uma vez que, como já dito, arte e ciência estão na cultura e as culturas são dinâmicas e históricas, frutos de relações sociais e de poder diversas. Portanto, temporárias, transitórias e em constante negociação. Por meio de filmes, objetivou-se conhecer, compreender e dialogar com significados presentes e circulantes entre espectadores. Seria possível fazer uma etnografia da recepção, perguntava-nos? Além disso, seria possível permitir e dar ouvidos aos espectadores para que refletissem ou dialogassem com suas próprias representações? Não seria isto demasiada pretensão nossa? Muitas eram as questões que tínhamos (e ainda temos) acerca do encontro entre estas duas formas distintas de linguagem, a antropológica (do mundo acadêmico) e a cinematográfica (comercial), mas que entendo são, ambas, produções sociais, fruto de conjugações de poderes e saberes históricos. Ambas estão “na vida”, pretendem falar sobre a vida, da vida e fazer crer que possuem algo a dizer e merecem ser conhecidas, debatidas e questionadas.

Compreendo que, por meio da edição do projeto Antropologia e Cinema I, foi possível observar o quanto o Cinema e a utilização da linguagem fílmica é profícua para se trabalhar com temas sociais polêmicos, como as questões étnicas e raciais, por exemplo. Por ser o Cinema uma linguagem lúdica também e que permite o encontro do indivíduo consigo mesmo e com os outros, presentes na tela ou na cadeira ao lado, ele estabelece interação, reflexão e, por vezes, silêncios significativos. Mesclar Cinema e Antropologia é algo que continuamos a fazer, nas edições seguintes do projeto, sempre alterando os temas dos módulos. Compreendo que fazer etnografia da recepção é algo que requer sensibilidade e preparo teórico-metodológico adequado. De minha parte, considero que o aprendizado continua e espero que este seja um espaço de pesquisa crescente no Brasil. Para 2009, pretendemos ter mais uma edição do Antropologia e Cinema (III), que trataria da temática das “guerras” provocadas por confrontos étnicos, religiosos ou raciais.

Enfim, o que tem Antropologia e Cinema em comum? Talvez a possibilidade de invocar, provocar reflexões ou mesmo, somente a intenção discursiva de tentar fazer crer que as ações humanas tenham significados (manifestos ou latentes). O que ambas almejam talvez seja, de certa forma, compreender (ou dar sentido) às experiências humanas, reais ou imaginárias, contextuais ou não. E neste caminho, há, ainda, muito a ser partilhado e pesquisado.

Bibliografia:

BARBOSA, Andréa e CUNHA, Edgar Teodoro da. Antropologia e Imagem. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

FRANÇA, Andréa. Terras e Fronteiras no cinema político contemporâneo. 7 letras: Rio de Janeiro, 2003.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1990.

HIJIKI, Rose Satiko. Imagem-violência. Mimesis e reflexividade em alguns filmes recentes. Dissertação apresentada ao PPGAS Antropologia Social. USP. São Paulo, 1998.

GEERTZ, Clifford. O saber local. Novos ensaios em Antropologia interpretativa. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.

MASCARELLO, Fernando. Mapeando o inexistente: os estudos de recepção cinematrográfica, por que não interessam à universidade brasileira? UNIRevista, vol1, n.3, p.1-12, jul 2006. Disponível em www.unisinos.br. Acesso em: mar. 2007.

MASCARELLO, Fernando. Mídia e recepção. Os estudos culturais e recepção cinematográfica: um breve mapeamento crítico. Trabalho apresentado no Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação- COMPÓS, XIV, Niterói, 2005.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU, 1974. 2 v.

OROZCO- GOMEZ, Guillermo. Los estúdios de recepcion: de um modo de investigar, a uma moda, y de ahí a muchos modos. Intexto, Edição 09, 2003/02. Disponível em: www.Intexto/PPGCOM/Ufrgs. Acesso em: ago. 2005.

SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

STAM, Robert. Multiculturalismo tropical. São Paulo: Edusp, 2008.

ZANINI, Maria Catarina Chitolina Zanini. Assistir, ouvir, ler e narrar: o papel da mídia nas construções identitárias étnicas. Revista de Antropologia (USP), São Paulo, v.48,n.2,p.699-736, 2005.


[1] O artigo com os resultados finais do projeto denominado “Tocando na ferida: um diálogo possível entre Antropologia e Cinema”, está disponível no site da ABA (www.abant.org.br).

[2] Quando falo em nós neste artigo, estou me referindo à equipe do Projeto, formada por mim, enquanto coordenadora e por bolsistas. Assumo, contudo, total responsabilidade pelos pontos de vista aqui colocados.

[3] No projeto Antropologia e Cinema I, contei com o importante auxílio de Francine Nunes da Silva e no Antropologia e Cinema II, do bolsista Cristiano Sobroza Monteiro.

[4] Aliás, a premiação do projeto em nível nacional pela Aba, fez com que adquiríssemos uma visibilidade muito grande na Universidade e fora dela também.

[5] Ao longo de todo o ano foram respondidos 49 questionários e alguns dos depoimentos destes se encontram presentes no artigo publicado no site da ABA.

[6] Ressalta o autor: “O sentimento que um indivíduo, ou, o que é mais crítico, já que nenhum homem é uma ilha e sim parte de um todo, o sentimento que um povo tem pela vida não é transmitido unicamente através da arte. Ele surge em vários outros segmentos da cultura deste povo: na religião, na moralidade, na ciência, no comércio, na tecnologia, na política, nas formas de lazer, no direito e até na forma em que organizam sua vida prática e cotidiana” (1997, p.145).

[7] Acerca desta historicidade do cinema, observar Stam na obra Multiculturalismo Tropical (2008).

[8] Para Featherstone, “Ou seja, para compreender a cultura pós-moderna, não é preciso apenas ler os signos, mas olhar como os signos são usados por configurações de pessoas em suas práticas cotidianas” (1995, p.94).

[9] Alertam Barbosa e Cunha (2006, p.55) quanto às imagens que, “Nesse sentido, o contexto em que as imagens são construídas e articuladas é fundamental para percebermos os possíveis significados criados. O contexto é crucial na análise dos filmes não por ser definitivo, mas por ser provocativo, sugestivo, por viabilizar a construção de um quadro de possibilidades. As imagens que compõem um filme são elementos que, considerados em conjunto, nos permitem pensar, articular significados que, de forma isolada, não aconteceriam”.

[10] Este aspecto “aberto” e criativo da recepção já havia sido por mim analisado quando da recepção da novela Terra Nostra entre descendentes de imigrantes italianos na região central do Rio Grande do Sul (Zanini, 2005).

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