Os movimentos da estética: o cinema de Dziga Vertov como reflexão à Hipermídia.

Sérgio Bairon é Livre-docente pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, doutor pela F.F.L.C.H.-USP e pós-doutor pela Freie Universität Berlin. Atualmente é professor da Escola de Comunicação e Artes da USP e do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUCSP.

Denis Arkadievitch Kaufman ou Dziga Vertov, pseudônimo escolhido pelo próprio cineasta logo no início de sua carreira, nasceu em Bialysto (Polônia) e inaugurou uma trajetória estética com a qual temos ainda muito o que aprender. Na década de 10 do século passado estudou Medicina em São Petesburgo. No mesmo período criou o Laboratório do Ouvido que visava a pesquisa e o registro sonoro dos mais variados fenômenos do cotidiano, como falas, ruídos etc. Nesta época, fez várias experiências com gravação da recitação de poemas, tendo ao fundo uma grande variedade de sons. Aproximou-se do futurismo em sua associação entre tecnologia, sociedade e estética e, a partir de 1918, passou a integrar o Kino-Komitet em Moscou. Foi redator do jornal Kino-Nedelia (Cine-Semanal) e neste mesmo período participou de eventos de projeções cinematográficas em trens e navios. Assim, Vertov aprimora sua metodologia de formação de bancos de áudio e passa a aplicá-la ao mundo das imagens.  Já durante os anos de 1919 e 1920 Vertov se transforma em cineasta, unindo registro, ação e montagem. Durante a década de 1920, já em meio ao seu envolvimento com o Kino-Pravda, Vertov produz mais de 20 filmes, dentre eles O homem com a câmera de filmar de 1929.

Talvez de todas as características do cinema de Vertov que podemos destacar, a montagem seja a mais conseqüente nas relações com a hipermídia. Em O homem com a câmera de filmar, por exemplo, a montagem não ocorre somente na interlocução de fotogramas, mas sobretudo no cruzamento e na multiplicação do encontro de olhares, sendo que o próprio argumento do filme impede um único olhar emissor. O mundo despertando, os olhares do diretor, da jovem mulher, da janela e da câmera, se mesclam para tentar expressar que sempre algo ou muito no dia a dia nos escapa.

Parto do princípio fenomenológico, de que é a essência da falta constitutiva do ser que nos dá condições de construirmos sentido para todas as coisas que nos cercam, o que faz da incompletude, sempre uma possibilidade de expressividade estética. O mecânico da objetiva da câmera, não representa o maniqueísta de um discurso maquínico, mas o giro como olhar em reconstrução. O giro do foco expressa a circularidade de sentidos que ocorre tanto na massa como no sujeito, o mostrar e esconder, do teatro para a câmera, do previsível para o improviso, da presença à ausência. O olho da câmera pode estar lá onde deveriam estar os nossos olhos ou os olhos da jovem mulher, ou de qualquer habitante da cidade que estivesse despertando. A máquina se humaniza e habita todos os olhares possíveis que somente existem como expressividade estética graças a ela própria. O ciné-olho é este movimento como techne.

Olhares, através de olhares, como montagem. O olhar pré-cinematográfico da jovem mulher, bem como os próprios olhares que, concomitantemente, esqueceram e não esqueceram o teatro e a literatura são, em parte, os mesmos olhares que apontam um caminho à navegação hipermidiática. Mas tal como Vertov já definira para o cinema, temos também na hipermídia mais uma expansão da incompletude do olhar humano. No filme de Vertov, janelas e portas abrem e fecham, expressando o quanto há de complexo no jogar de estruturas elementares das ações cotidianas. O olhar humano revela algo de sua essência a partir do olhar no trem, tudo se movimenta a nossa volta como que numa mistura entre imagem fotográfica e seqüência de fotogramas.  O trem permite a passagem da fotografia para o cinema. O olhar do homem com uma câmera não imita, simplesmente, o mundo, mas revela uma face até então não conhecida por nenhuma outra arte. Esta revelação não poderia ocorrer sem a inauguração do olhar do cine-folhetim, como chamava Vertov, espécie de sonho diurno cujo olhar ciclópico não condena a subjetividade ao limbo, ao contrário, a descreve como fruto inevitável da montagem do olhar cotidiano. A concomitância do elementar e do complexo: o pulsar. Essência significante do jogo do aberto/fechado, da luz e sombra que se completam de forma contraditória baseada nas próprias metáforas-montagens do ciné-olho como nas palavras de Vertov: “Viva o improviso. Por um lado, o olho humano mecanizado, desenfreado até a avaria; por outro, uma câmara humanizada no modo heróico-cômico, cabeça giratória, o corpo desconjuntado a dançar sobre a sapata de tripé alto. E tudo isto faz com que o homem da
câmera seja um dos filmes ‘menos realistas’ da história do cinema, menos ‘documentais’, menos filmado ‘de improviso’.”
(1)

Apesar de O homem com a câmera de filmar ser um dos filmes mais montados da história do cinema, os 1692 planos estão repletos de improvisos que só foram possíveis graças às qualidades vertovianas de formação do que poderíamos chamar de bancos de cenas. Vertov dava uma importância primordial para estas etapas anteriores a filmagem, preocupação que se prolongava até o momento da montagem. Bancos que também se transformam em protagonistas do filme. Como se o filme, assim como o próprio homem-câmera, também falasse de si mesmo e da sua relação com a montagem. Não há como negar que os cortes, as colagens tanto de imagens quanto de áudios, a rede de associações, bem como a exploração dos contrários, fazem da montagem a presença mais representativa do superlativo hipermidiático que nos traz este tipo de conceito cinematográfico. Sobreposição de montagens. Como lembra José Ribeiro: “Todo o processo é um processo de montagem: desde a análise das imagens recolhidas, à descoberta do tema central e dos assuntos periféricos, à reorganização final de todo o material.” (2). Mas se poderíamos recorrer a esta proposição para uma parte significativa das produções cinematográficas, o que faz com que no caso de Vertov, estas questões sejam tão sui generis?  Uma dentre tantas as respostas que interessariam na interlocução com a criação hipermidiática está no direcionamento imersivo que Vertov desenvolve a partir da montagem, nos oferecendo uma condição conceitual que procura unir os pontos de vista do observador com o do realizador e com o do receptor, como demonstra Vlada Petric. A união entre os conceitos de montagem, construção, produção, planejamento e estética parece seguir a trajetória do construtivismo russo que recusou a categoria “arte”, embora sempre buscasse os ambientes chamados de “exposição de arte” como fórum. Uma das questões desta posição que se desdobra como interessante para a hipermídia está no fato de que o próprio processo de construção deve ter o seu espaço como manifestação estética. Como compreensão, um processo que pode ser dividido em partes e analisado. Construção e desconstrução são equivalentes e sempre concomitantes à planificação e desplanificação. A ausência de um acaba sendo o complemento do outro. Uma espécie de dialética ao contrário, pois como lembra Deleuze (3), trata-se mais de uma composição de contrários do que de um enfrentamento.

A idéia, por exemplo, de que o olhar humano poderia ser mediado, ou até somado, ao olho da câmera, estava presente tanto em Vertov como em Eisenstein, bem como nos próprios cartazes produzidos para alguns de seus filmes por Aleksandr Rodchenko. Novamente a concepção de sobreposição de montagens: a imagem fotográfica era denegada pela sua utilização em cartazes, que eram utilizados em ambiente público, que eram filmados e se transformavam em cinema que, como fotogramas, voltavam a ser fotografias. Não havia nenhuma preocupação em manter qualquer noção de linguagem artística pura. Vertov parece ter entendido que o seu cinema, em revelando uma face de sua própria identidade, deveria expandir a partir de seus conceitos à definição mais apurada e multimidiática de linguagem. Diferente de quase tudo até então e é justamente neste quase que encontrou o seu espaço.

Outra questão está calcada no encontro entre planejamento e imprevisibilidade. O naco de imprevisibilidade no caso da metodologia de Vertov está no momento da montagem da montagem. Momento no qual, apesar do acaso poder até mesmo ser planejado, emerge uma reinauguração conceitual na própria ação de perda do controle das associações. Há uma unidade conceitual mantida pelos enormes cuidados metodológicos nos vários momentos do planejamento. Apesar de uma aparência contraditória, é a existência concomitante do todo planejado com o improviso na montagem, que define este método de criação. Ou seja, o aleatório depende da perda de controle no interior de um todo planejado. Textos, fotografias, pinturas, cenas improvisadas do cotidiano se transformam, individualmente, em mais uma das tantas expressividades estéticas que até então se apresentavam separadas em nível midiático.  Manovich identifica em Vertov uma série de modalidades precursoras das novas tecnologias, diz que a tecnologia das novas mídias digitais vai muito além do que poderíamos chamar de manifestações pós-fotográficas, pois revelam um novo modo gráfico-estético, no interior do qual os efeitos fotográficos e cinematográficos, são apenas algumas das suas manifestações.  As referências de Manovich a Vertov, acertadamente, apontam para o fato de que apesar das grandes possibilidades de composição e colagens digitais criarem associações entre os espaços virtuais, esta não precisa, necessariamente, ser sempre a meta. Reticularidades expressas por um grande número de colagens/associações já se apresentavam no filme de Vertov de 1929. Para tanto, o trabalho próximo das máquinas tinha que ser revelado. Por um lado, a máquina cinema revelando a máquina olhar no interior da complexidade cotidiana.  Por outro lado, uma outra dicotomia agindo a partir da revelação do cotidiano sobre a máquina, se revelando como fonte de conhecimento do mundo e vencendo qualquer noção de apologia da tecnologia, ao mesmo tempo em que apresenta uma resistência a tal apologia, expressa a dimensão fílmica que só se torna possível a partir daquele cinema. Como diz Robert Stam, os temas múltiplos tais como a vida de um homem do nascimento até a morte; um dia na vida de uma cidade e a própria realização e exibição de um filme, são temas que se orientam pelo que é central no filme de Vertov, o que Stam chamou de “o desnudamento dos mecanismos cinematográficos dentro do contexto social de um ‘continuum’ de forças produtivas”. (4) Este jogar da presença do cotidiano em forma fílmica, onde o ator é a própria negação do sentido clássico de atuação, faz Godard afirmar: “Em certos momentos, sinto que gostaria de poder me entusiasmar, pois gosto muito… No filme de Vertov, senti que havia momentos de entusiasmo. Gostaria muito de fazer algo semelhante, mas não sei, tenho medo, um segundo depois, de não saber continuar. Prefiro então, simplesmente, ser escutado; que me escutem ou me vejam. Portanto, que as coisas pareçam um pouco verdadeiras, como se diz. Então, todo o mundo é válido. E é preciso encontrar um ator e imaginar uma cena a partir dele.” (5)

Este jogo apresenta um deslocamento de olhares no qual vejo uma das essências a ser explorada pela hipermídia: o sujeito adquire sentido observando aquele que observa aquele que observa, e o homem ordinário, o homem todo mundo, é diretor da ação, tanto quanto o homem da câmera ou o homem-montagem. “Desejos contraditórios no espectador de cinema, ser dual, sujeito dividido e desdobrado. Quero a coisa, a sua imagem, e o contrário da sua imagem que não é propriamente regresso à coisa mas consciência dessa imagem como coisa por seu turno.” (6) Comolli afirma que o espectador de O homem com uma câmera, ontologicamente, renasce a cada sessão, pois está situado na busca paradoxal de uma idealidade social e imaginária tematizada pelas imagens e vive, plano a plano, uma realidade que o mundo esconde muito mais do que mostra. Efeito inevitável da linguagem-fragmento. Tudo isto torna a “transparência” da câmera uma presença mais forte ainda. Talvez proporcional com a forte presença-ausência do lugar da programação de autoria nos processos de planejamento e criação na hipermídia.

A sobreposição de montagens significa uma sobreposição especular de olhares. Intermediação de um diálogo intersubjetivo que na hipermídia pode ser superlativizado, já que tal sobreposição expande o seu espaço de atuação e cria uma instância de sentido coerente com o corte, com a ruptura e com a falta. “A tomada rápida, a microtomada, a tomada ao inverso, a tomada de animação, a tomada móvel, a tomada com os ângulos de visão mais inesperados etc., não podem ser consideradas trucagens, mas procedimentos normais que se devem aplicar com grande amplitude.” (7)

Este improvisar planejado, defendido por Vertov, explora a valorização do olhar pela ausência do mundo. Temos algo primordial para aprendermos com o cine-montagem para a hipermídia: a denegação da falta. A condição à toda criação de sentido está vinculada à renúncia de qualquer condição constituída de linearidade narrativa. A falta constitutiva que se manifesta neste conjunto de rupturas é o que faz daquele que está navegando co-editor da montagem. “A obsessão pela montagem, comum a Vertov faz do mundo um puzzle de imagens tão só para reconstruir num novo conjunto mais exaltante. Desmontar para remontar.” (8) No entanto, mais que um puzzle, o próprio Vertov descreve o seu cine-olho como “(…) o que associa um com outro, qualquer ponto do universo em qualquer ordem temporal” (9). Portanto, as relações que justificam uma análise que aborde o encontro desta concepção de cinema-montagem com a hipermídia, localiza-se, não na histérica comparação entre homem-máquina, entre olho mecânico e olho humano, sejam estas versões – máquina e humano – complementares ou contraditórias. Por um lado, a própria categorização que divide humano e máquina continuam tendo um grande valor na ficção científica, justamente para discutir compreensões éticas e escatológicas do lugar do humano no mundo ou no universo. Por outro lado, o encontro entre o cinema-montagem e a hipermídia está localizado de forma derradeira na multiplicação de olhares, com base no filme O homem com a câmera de filmar: o olhar da câmera, o olhar do olhar olhando o homem da câmera, o olhar da moça, o olhar pela janela do trem como olhar da câmera, o olhar da platéia (que está e não está presente) olhando a câmera que olha a platéia, o olhar da montadora olhando o fotograma, que detém uma personagem que olha a câmera que, por sua vez, olha a montadora olhando o fotograma.

Temos que conviver com o desafio de que mesmo este conjunto de olhares complexos, que se apresentam como fragmentos de imagens em referências conceituais, ou como a concomitância da construção com a desconstrução no interior de uma mesma proposta estética, tornam a existência do cine-olho um caminho excelente de interlocução com a hipermídia. No entanto, nos momentos de produção de hipermídia, os desafios são muito maiores do que a interlocução intracine, pois o filme inteiro no interior de um ambiente hipermidiático pode ser considerado um “fotograma”, parte de um conjunto onde a imagem fílmica deve ser pensada como mais um componente das expressividades estéticas. O desafio é duplo: conceituar uma interlocução entre cinema-montagem e hipermídia e produzir hipermídia como fruto desta interlocução.


Notas

01) Comolli, Jean-Louis. “O Futuro do Homem. O homem da câmera de filmar.” in: O Olhar de Ulisses. O Homem e a Câmara. Cinemateca Portuguesa. 2001. p.53

02) Ribeiro, José da Silva. Colá S. Jon, Oh que sabe! As imagens, as palavras ditas e a escrita de uma experiência ritual e social. Lisboa, Edições Afrontamento, 2000. p.62

03) Deleuze, Gilles. La imagen-movimento. Estudos sobre cine 1. Paidós, Barcelona, 1994.

04) Stam, Robert. O espetáculo interrompido. Literatura e cinema de desmistificação. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981. p.87

05) Godard, Jean-Luc. Introdução a uma verdadeira história do cinema. São Paulo, Martins Fontes, 1989.p. 84

06) Comolli, idem, p.62

07) Vertov, Dziga. Kino-eye. The writings of Dziga Vertov. Los Angeles, London, University of California Press. 1984. p.123

08) Comolli, idem, p.66

09) Vertov, idem, p. 111

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