O Cinema em Moçambique: Licínio Azevedo

por Andressa Barbosa, Alexandre Leopoldino, Luís Fernando Mendes, Nicole Santaella, Patrícia Castilho, Zoe Sá Dall’Igna*

1. METODOLOGIA

O objetivo do nosso trabalho era dissertar sobre filmes cujo continente de origem fosse a África e ficou decidido que falaríamos sobre o diretor brasileiro erradicado em Moçambique, no ano de 1975, Licínio Azevedo – como foi sugerido pelo professor, demonstrando certa curiosidade pela obra deste diretor renomado.
Iniciamos a nossa pesquisa procurando por alguma produção em sua completude do roteirista e diretor através de um fórum fechado (http://www.makingoff.org), ao qual um dos membros da equipe tem acesso, obtendo assim duas de suas obras: a ficção O Grande Bazar (2006) e o documentário Hóspedes da Noite (2007). Os seis membros da equipe reuniram-se para assistir aos dois longa-metragens e discutí-los. Em seguida, foi deferido a cada um dos integrantes um determinado tema.
Como o conhecimento sobre o país de origem dos filmes é bastante reduzido, optamos por iniciar o seminário com uma contextualização histórica de Moçambique a ser procedida por uma introdução da produção cinematográfica moçambicana. Para seguir nosso enfoque, foi determinado que alguém falasse sobre a biografia de Licínio Azevedo, um cineasta cuja história e obra são desconhecidas à maioria dos alunos da nossa sala. Contemplaremos, então, as duas obras às quais tivemos acesso: O Grande Bazar – seu filme de maior reconhecimento – e Hóspedes da Noite, acrescidas de comentários sobre algumas outras produções audiovisuais do diretor.

2. CONTEXTUALIZAÇÃO
2.1 Moçambique
Moçambique é um país localizado no sudeste africano e é uma das ex-colônias portuguesas do continente. A história de Moçambique começou a ser registrada a partir do século X, quando um viajante árabe, Al-Masudi, descreveu algumas atividades comerciais na região do Golfo Pérsico, o que incluía o que hoje conhecemos por Moçambique. Porém, muitos achados arqueológicos permitem uma caracterização da “pré-história” desse país, que teve seu início com os povos bantus. A dominação portuguesa em Moçambique foi iniciada no século XV, porém, apenas em 1885, com a partilha da África entre as potências européias, é que a ocupação se tornou uma ocupação militar, deixando todos os estados do país submetidos a Portugal.
Em meados do século XX, após dez anos de uma guerra de libertação, Moçambique tornou-se independente de Portugal no dia 25 de junho de 1975. Após sua independência, foi instituído um regime socialista de partido único, que iria se desgastar ao longo dos anos, culminando na abertura do país entre os anos de 1986-87, quando foram assinados acordos com o Banco Mundial e o FMI.
Moçambique viveu uma guerra civil, também conhecida como “Guerra dos 16 anos”, que durou de 1976 até 1992, e consistiu num conflito armado que opôs o exército de Moçambique à Renamo, a Resistência Nacional Moçambicana, só resolvido em outubro de 1992 com um Acordo Geral de Paz. Hoje, a Renamo é o segundo maior partido político de Moçambique.
Durante o período da guerra, uma das cidades que mais sofreu foi Beira, hoje detentora do terceiro maior porto de Moçambique. O Grand Hotel, símbolo da prosperidade da cidade, chegou a ser ocupado por cerca de mil beirenses desabrigados e, no final da guerra, a cidade estava devastada. Em um de seus filmes, o documentário Hospedes da Noite, Licínio registra esses acontecimentos.
Na sequência do Acordo Geral de Paz, o país assumiu o pluripartidarismo, tendo tido a primeira eleição com a participação de vários partidos no ano de 1994. O atual presidente, Armando Emilio Guebuza, assumiu o cargo em 2005, sendo reeleito em 2009 com 75% dos votos.
Hoje, Moçambique tem uma população de aproximadamente 20,5 milhões e apenas 37% dessa população se concentra nas cidades, sendo as principais: a capital Maputo, Beira e Nampula. Por causa disso o país é prioritariamente agrícola e a indústria é pouco desenvolvida, porém, autossuficiente em tabaco e bebidas.
A língua oficial de Moçambique é a língua portuguesa, no entanto, ela é a língua materna de apenas 6% da população. As demais línguas faladas derivam da grande família de línguas bantu, dos primeiros habitantes da região.

2.2 O Cinema em Moçambique
Até a independência de Moçambique o cinema no país era inteiramente importado. Por ser um país muito próximo à África do Sul, a Johanesburgo, os filmes vinham de lá e eram exibidos apenas filmes ingleses e americanos. Não havia produção cinematográfica em Moçambique. Após a queda do salazarismo, Samora Machel (primeiro presidente após a independência) criou o INC (Instituto Nacional de Cinema).
A luta pela independência e democratização do país fez um grupo de jovens realizadores e técnicos se mobilizarem para realizar documentários sobre o que estava a acontecer. Foi o nascimento do cinema num país que acabava de se ver independente. Os jovens tinham incentivo do governo para produzirem tais documentários, que eram exibidos nas salas recém nacionalizadas e receberam o nome de Kuxa Kanema, filmes cujo objetivo era “registrar a imagem do povo e devolvê-la ao povo”. Esses filmes foram divulgados em salas de cinema móveis visando atingir toda a população.
Em 1991 ocorreu um incêndio no INC, no qual foi destruído todo o equipamento de produção e os filmes em distribuição. O Estado então deixou de dar apoio ao setor cinematográfico e os cineastas se uniram para continuar as produções, agora com apoios financeiros não governamentais.
Em 2003 foi criada a Associação Moçambicana de Cineastas, a AMOCINE, cujo objetivo era revitalizar a produção cinematográfica no país, e que, com o financiamento da Cooperação Francesa, criou um fundo de apoio ao cinema moçambicano. Apesar dos seus esforços, continua a não haver nenhuma estrutura de distribuição de filmes e por isso os trabalhos cinematográficos estão arquivados, sendo expostos ao público através da televisão, sem contrapartida financeira.
A situação hoje no país continua complicada, segundo Gabriel Mondlane, secretário-geral da AMOCINE (Associação Moçambicana de Cineastas), o Estado moçambicano não dá nenhum apoio para o desenvolvimento do setor do cinema no país.

3. LICÍNIO AZEVEDO
Cineasta, produtor e escritor gaúcho radicado em Moçambique em 1975, trabalhou no Instituto Nacional de Cinema acompanhando realizações de Ruy Guerra e Godard. Além disso, orientou um programa de televisão seminal denominado Canal Zero, no Instituto de Comunicação Social de Moçambique, e fundou uma empresa de produção cinematográfica chamada Ebano Multimedia. Em 1999, Azevedo recebeu um prêmio da FUNDAC (Fundo para o Desenvolvimento da Arte e Comunicação) pelo conjunto de sua obra.

4. SUAS OBRAS
4.1 O Grande Bazar (2006)

O grande bazar é o filme de maior sucesso realizado por Licínio Azevedo. Com uma estética leve, traz os assuntos do cotidiano através de duas crianças – de aproximadamente 12 anos de idade – muito distintas que andam pelas ruas de Maputo.
Paíto, nosso personagem principal, logo no começo do filme, demonstra certa tendência ao comércio: está em frente à sua casa, vendendo quitutes que a mãe havia preparado e, quando estes acabam, a mãe lhe entrega uma quantia em dinheiro e manda que busque farinha para que possa cozinhar mais. Seu tino para o comércio faz com que ele compre um maço de cigarros para vender as unidades, de modo a multiplicar seu dinheiro. Conhecemos então outro núcleo de personagens, os “ninjas” (desordeiros ladrões), sendo que um lhe rouba o maço de cigarros.
Ao ver-se sem dinheiro e sem a farinha pedida pela mãe, Paíto pega uma condução – onde novamente vemos os ninjas, que agridem o cobrador para não pagar a passagem – rumo a um bazar pobre, em companhia de uma conhecida. Lá começa a tentar ganhar dinheiro ajudando pessoas a carregar as compras e realizando pequenas vendas, é lá que conhece diversas pessoas importantes no modo como passa a ver o mundo e a si próprio.
Entre tais pessoas, conhece Xano, outro menino – que aparenta ter a mesma idade de Paíto, mas de estatura um pouco mais baixa – que se torna seu amigo e, juntos, começam a tentar ganhar dinheiro, indo para um bazar maior, na cidade. A diferença entre os dois é gritante, pois, enquanto Paíto se esforça para ganhar dinheiro honestamente para poder voltar a sua casa levando para a mãe a farinha pedida, Xano não mede conseqüências para conseguir dinheiro e seu objetivo é não ter de viver com sua família. Os ninjas retomam sua força na trama ao aparecer nesse outro bazar, onde realizam pequenos furtos e maldades com as crianças de lá – a quem ordenam que entreguem o dinheiro que possuírem; Xano acaba sendo vítima de tais maldades devido à recusa de Paíto a entregar o dinheiro aos ninjas, e é castigado em seu lugar. Após uma pequena briga, ambos os meninos decidem punir os ninjas, apontando-os como ladrões em meio a um bazar, Paíto comenta com Xano como é estranho que eles tivessem roubado o salão de sua tia mais cedo naquele dia e agora perseguiam ladrões. Apontam em meio ao bazar os ninjas como ladrões, os comerciantes locais os perseguem, capturam e levam à Polícia.
Após esse episódio, Paíto decide ganhar dinheiro de forma honesta, eles fundam então um “salão de beleza” no bazar, passando a pintar as unhas das pessoas e cobrando por isso. Assim que junta a quantia necessária, Paíto compra a farinha e vai embora, na despedida, Xano lhe entrega um presente para que abra ao chegar em casa. Ainda no trem, Paíto abre e vê que são os esmaltes que usaram no bazar. Ao chegar em casa com o pacote de farinha, leva uma “surra de vara” de sua mãe por ter ficado tantos dias fora. Na última sequência do filme, Paíto está do lado de fora de sua casa, onde vende os quitutes de sua mãe, mas tem os esmaltes sobre a bancada improvisada e pinta as unhas das garotas do local.
A abordagem que o filme dá à pobreza do local é leve e divertida, notamos a pobreza, ela está explícita na tela e nas atitudes dos personagens, mas não é um fator que leva aquela comunidade à infelicidade; todos são alegres e levam suas vidas de maneira simples. Notadamente há uma crítica à má distribuição de renda em Moçambique, pois assim que Paíto vai ao primeiro bazar se oferecer para ajudar a carregar as compras, notamos a linha forte entre a pobreza na qual vive o personagem principal e sua comunidade em relação às pessoas do bazar, que estão razoavelmente bem vestidas e possuem automóveis. Ainda que uma crítica, ela é feita de forma muito leve.
O filme apresenta um colorido muito característico do continente africano, que nos chama muito a atenção e cria uma atmosfera alegre e descontraída ao filme; os personagens principais notadamente vestem roupas monocromáticas ou pendendo a isso, de modo a se destacar mais no caos pintado na tela. Licínio dá um choque de realidade em quem pensa que as pessoas de tal região são tristes por serem pobres, mostrando que a felicidade daquele povo vai realmente muito além do dinheiro.

4.2 Hóspedes da Noite (2007)

O documentário Hóspedes da Noite é a última produção do diretor até o momento. Ele foi feito em 2007, pela produtora Ebano Multimédia e distribuído em 2008, pela Marfilmes. O documentário de longa-metragem, de 52 minutos, foi vencedor da Fipa de Ouro na 21ª edição do “Festival Internacional de Programas Audiovisuais de Biarritz” (Biarritz, França), em 2008; do Prêmio Especial da 4ª edição do “Festival de Filmes Terra de Todos” (Bolonha, Itália), em 2010; e do Prêmio Africália para o Melhor Documentário, no Festival de Filmes Africanos (Bruxelas, Bélgica).
Hóspedes da Noite relata a ocupação do Grande Hotel, na cidade de Beira, Moçambique. O hotel de luxo foi construído em 1953, no entando, em 1962, ele já havia falido e foi paulatinamente ocupado até alcançar a quantidade de 3500 habitantes. O edifício está em ruínas, as condições de vida são insalubres, não há eletricidade ou água encanada. As residências encontram-se onde é possível, nos quartos, corredores, áreas de serviço, no porão – “onde é sempre noite” – e em qualquer local que se possa instalar-se. Apesar de retratar tamanha decadência, o documentário mantém uma abordagem leve – também presente na ficção O Grande Bazar -, não há a intenção de causar tristeza ou sentimento de pena no espectador.
O documentário inicia-se com a apresentação de dois personagens, senhor Pires e senhor Caíto, dois antigos trabalhadores do Grande Hotel, que vão apresentando as instalações do estabelecimento citando suas antigas funções – em tom nostálgico -, enquanto podemos ver no que elas se tornaram. É perceptível que de hotel do luxo, o prédio tornou-se uma espécie de ‘cortiço’; há pessoas morando onde já foram inclusive frigoríficos, caso de Rachida, Sofia e Francisca e seus respectivos maridos e filhos.
Licínio toma o cuidado de enfocar algumas pessoas, das quais teremos um acompanhamento maior. Como as três mães que habitam em câmaras de frigoríficos; o professor de geografia Camões, que mora com sua mulher e filho há 20 anos no antigo hotel, e ao final consegue uma chance de trabalhar em uma universidade de outra cidade, deixando sua habitação; Ananias e família, que também moram lá há 20 anos, e alugam baterias, necessárias para a utilização de equipamentos elétricos – como televisão, rádio, computador – e sobrevivem deste lucro; Rafate, a quem chamam de louco; os irmãos órfãos que dividem um cubículo de 4m²; entre outros.
O mais interessante de observar é a politização das pessoas como um todo; afinal, apesar do ambiente precário rodeado de desconfiança e pouco propício à ordem, uma das suítes foi transformada em um tribunal de moradores, no qual todas as desavenças da população que habita o ex-Grande Hotel são levadas a uma instância superior, que aparentemente prima por uma solução justa. Como no caso de uma mãe contra um homem, os quais compraram um mesmo quarto, cujo proprietário após receber os pagamentos desapareceu.
É perceptível como ambientes como este reúnem os tipos mais variados de pessoas, proporcionando uma riqueza cultural pouco costumeira; pessoas com diferentes empregos (segurança, vendedor ambulante, costureiras, cozinheiras, etc), crenças – é mostrado um quarto que se tornou uma igreja cristã, e um outro de religião muçulmana -, passados (apesar de ser muito citada a vinda ao hotel como consequência da fuga da guerra civil), e como isso influência no desencadear dos acontecimentos daquela micro-sociedade em inconstante formação.

*Andressa Barbosa Cantizani, Alexandre Leopoldino, Luís Fernando Mendes, Nicole Santaella, Patrícia Christina Marques Castilho, Zoe Yasmine Miranda Sá Dall’Igna são graduandos do curso de Imagem e Som da UFSCar.

5. BIBLIOGRAFIA
http://cinemaemmocambique.blogspot.com/search?updated-min=2010-01-01T00%3A00%3A00%2B02%3A00&updated-max=2011-01-01T00%3A00%3A00%2B02%3A00&max-results=9
http://sites.google.com/site/orlandomesquitalima/Home/cinema-mocambicano
http://www.iesb.br/moduloonline/napratica/?fuseaction=fbx.Materia&CodMateria=2178
http://www.proximofuturo.gulbenkian.pt/pdf/CIAC_FEV.pdf•http://www.imdb.com/title/tt1390945
http://temposinteressantes.blogspot.com/2010/02/filme-o-grande-bazar-2006-de-licinio-de.html
•http://opais.sapo.mz/index.php/cultura/82-cultura/10220-os-conquistadores-da-italia.html
http://www.imdb.com/title/tt1390949/

6. FILMOGRAFIA

O Grande Bazar (Licínio Azevedo, 2006)
Hóspedes da Noite (Licínio Azevedo, 2007)

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