2001: uma libertação

Domingo, 25/08/1968

A ficção científica

A ficção científica, como gênero de criação literária surgiu somente no século XIX, desde que entendida no sentido estrito do termo. Tendo como elemento básico a antecipação, a previsão e a especulação sobre o futuro se coloca como ficção, na medida em que é produto de uma imaginação que cria, com maior ou menor apoio na realidade; é denominada científica porque esse futuro aparece sempre relacionado com um estágio de evolução técnica e cientifica e, em grande parte dos casos, é esse estágio evolutivo, a própria preocupação central do autor. A imaginação de outras formas de existência humana é algo bem anterior à ficção científica propriamente dita. Desde muitos séculos se fizeram presentes na literatura, autores que, inspirados em eventos de época e na sociedade a que pertenceram, construíram todo um novo mundo com características próprias e extremamente distintas daquilo que foi sua realidade. Neste aspecto, as obras assim concebidas sempre constituíram uma forma de revolta, de oposição à organização e aos valores sociais vigentes quando da sua criação. “As viagens de Gulliver”, do irlandês Jonathan Swift (séc. XVIII – 1726) apresenta-se como a precursora da science-fiction. Inspira-se nas navegações para a Ásia e ilhas do Pacífico e no contato com outras civilizações  que elas proporcionavam. A partir disto, imagina outras formas mais perfeitas de organização social, livres dos vícios da sua sociedade; num processo de condenação da espécie humana (Swift não possuía a idéia do desenvolvimento histórico) encarna a perfeição em comunidades de outras espécies, dos seres exóticos, como se fosse inacessível ao homem. Essa obra não possui, porém, uma relação explícita com o problema da ciência, pelo menos com as características hoje definidoras do gênero. Essa relação com o progresso tecnológico só poderia surgir depois de uma experiência concreta e intensa deste progresso. Isso se deu somente no século passado e foi grande tema e acontecimento mais saudado  e mais exaltado da época, tão eufórica com suas conquistas. A presença da técnica e da ciência na vida cotidiana em todos os processos de produção refletiu diretamente na criação literária e artística. Na literatura inspirou a obra de Julio Verne, intensamente veiculada para uma previsão e antecipação das conquistas e invenções da ciência, praticamente a grande obra clássica neste campo. A partir de então, a ficção científica se corporifica e parte para sua consagração como gênero extremamente atrativo para um grande público. As obras se multiplicam, se diversificam em todos os níveis e o gênero se afirma das mais diversas formas. No último quartel do século surgem as criações de H. G. Wells, que se põe ao lado de Verne como um autor clássico do século passado. Em 1895 nasce o cinema, dá-se a invenção do cinematógrafo, aparelho que se insere na interminável série de descobertas. Com ele, um novo terreno propício à criação tipicamente science fiction se desenvolve. Vejamos o panorama deste gênero na realização cinematográfica. Como nesta parte o cinema tem andado de mãos muito dadas com a literatura, as referências envolverão escritores como Ray Bradbury, Huxley e outros que inspiraram boa parte dos filmes, e cuja visão é bastante representativa do pensamento de amplos setores do Ocidente.

Uma coisa fundamental se revela rapidamente: a relação direta que a ficção científica guarda com o presente. Todo o esquema de valores que preside uma criação neste sentido, envolve uma interpretação do presente; o futuro constitui um desdobramento deste e, enquanto tal, qualquer especulação a seu respeito implica numa atitude frente ao que é atual, atitude esta intimamente ligada à posição ocupada por quem a formula, no quadro geral da sociedade. Essa atitude e sua relação com os processos sociais se desvendam com muita clareza numa análise ligeira. Verificaremos que o science fiction é um reflexo direto da evolução dos problemas humanos. O desenvolvimento da ciência coloca questões, os ficcionistas procuram responder e o fazem através de uma criação que se pretende profética.

Cinema e Science-fiction

A ficção científica penetrou no cinema logo no início de sua história, nos alvores do século XX. Seu introdutor, George Méliès. O filme em questão, “Viagem à Lua”, realizado em 1902. Aliás Méliès foi o introdutor da própria ficção no cinema. Dedicou toda sua obra à exploração das possibilidades que o novo invento trazia no plano da ilusão, da magia, do truque, do fantástico. Com este propósito, realizou seus filmes, libertando o cinema do documentário de atualidade, única atividade dos irmãos Lumière. Após uma série deles, surge “Viagem à Lua”, todo impregnado do gosto pela magia e pelo fantástico, que marcou o autor. Baseado em Julio Verne e H. G. Wells, a eles não se prende em suas imaginações, intensificando ao máximo a atmosfera de sonho e de aventura, explorando bem as possibilidades dos seus cenários suntuosos. Acima de tudo reflete uma visão do futuro própria ao euforismo das elites do início do século, preocupadas em exaltar o brilhantismo do progresso humano e científico dos anos precedentes, e empenhadas em especular sobre o paraíso que se avizinhava. Estávamos dentro de um horizonte liberal, em plena belle-époque, revivendo e alimentando as formulações elaboradas no decorrer do desenvolvimento industrial do século XIX. A antecipação do futuro se fazia nos moldes de Julio Verne. Um objetivo somente: prever como se processaria o surgimento de novas técnicas, como seriam as viagens interplanetárias, quais seriam os próximos inventos. Quanto ao futuro do homem, quanto ao destino das relações sociais, não havia problemas. O progresso industrial nos levaria a um paraíso. Isto tudo porque as conquistas da técnica até então não haviam alterado as relações e os valores humanos, pelo contrário, tinham favorecido a consolidação de um determinado tipo de sociedade (a Capitalista), tinham contribuído para a construção de uma organização social baseada nos novos processos de produção e marcada por formas de relações específicas. Os beneficiários desta organização nada temiam. Os seus valores estavam solidamente apoiados no progresso. Daí a ilusão de que a técnica é algo estanque que se processa independentemente do resto da sociedade. Daí o otimismo que não conseguia sequer imaginar os conflitos e os traumas que abalaram a humanidade no século XX, criando em contraposição, um pessimismo e um descrédito no homem, que caracteriza essas mesmas elites nos dias de hoje.

O primeiro Pós-guerra

Assim se deu no cinema e na literatura. A Primeira guerra mundial foi o grande choque. A ciência de angelical passa a demoníaca. Antes força construidora, revelou sua força destruidora. A grande vitrina ruiu, partiu-se em mil pedaços. Dentro do homem habitam também forças do mal que agem na calada da noite. Estas faces sombrias do homem e da ciência por ele construída, se fundem e ganham expressão na mitologia do science fiction americano e alemão  do entre guerras. Alguns filmes expressionistas alemães e obras do cinema negro americano, são um exemplo disto. Os monstros, os robôs, os cientistas loucos, as aberrações biológicas, invadem as telas. Uma atmosfera negra e de terror envolve a ciência. Os receios e inquietações frente a possíveis novos conflitos mundiais repercutem no plano da ficção científica e são substituídos por invasões de marcianos. Proliferam os discos voadores pilotados por seres estranhos. O Universo, os outros planetas, são também fonte de perigo. As viagens interplanetárias não são mais aventuras tão coloridas, estão cheias de episódios dramáticos e nelas passa a ter lugar a tragédia, ao lado do heroísmo onipotente.

O segundo pós-guerra

Depois do segundo grande trauma deste século, um novo quadro adveio, mas dentro de linhas básicas já presentes anteriormente. A energia nuclear e a guerra fria são dois elementos fundamentais no terreno da ficção científica. Nos EUA desenvolve-se um estilo destinado a fazer propaganda americana dentro do jogo da guerra fria. Os EUA e seus comandantes são os eleitos para a defesa da humanidade em caso de ataque de outro planeta. O cidadão americano é o defensor natural do mundo frente a todos os perigos. Isto nada mais é do que a extensão da ideologia dos “policiais do universo” frente aos problemas internacionais concretos.

Com relação à guerra fria surge também a advertência, como no caso de “O dia em que a Terra parou”, de Robert Wise que se utiliza da vinda de um disco voador, cujo tripulante aqui veio para obrigar os homens a viverem em paz, porque as explosões nucleares poderiam tornar-se uma ameaça para o equilíbrio do Universo.

Frente à radiatividade as preocupações também se desenvolvem e surgem filmes (inclusive no Japão, vítima da bomba A) de advertência. A Terceira guerra mundial é o errante fantasma que ronda a humanidade e as suas possíveis conseqüências são sempre lembradas em filmes de antecipação. Mas o mundo da guerra fria se afirma muito mais num gênero  de ficção que se pode dizer científica, dada a presença da tecnologia,  mas cujo traço maior não é antecipação, a especulação do futuro, mas a mistificação e falsa heroização do presente: trata-se do filme de espionagem.

Quase toda a realização no plano da ficção científica tem sido marcada por esta visão, senão trágica, pelo menos inquietante, revelando um desespero diante do progresso e um descrédito nas possibilidades do homem. A corrente mais significativa é, ao mesmo tempo, a que se propõe formulações mais profundas em nome de um humanismo que, na verdade,   serve de embalagem a valores caducos. No cinema, recentemente adquiriu maior relevo e alguns filmes baseados na literatura desenvolvida desde os anos vinte, ganharam importância e aplausos. Particularmente, temos os casos de “Alphaville” de Godard e “Fahrenheit 451” de François Truffaut. Ambos constroem um futuro admitindo os mesmos critérios de previsão que presidiram as obras literárias de Ray Bradbury (autor de “Fahrenheit 451”), George Orwell (“1984”) e Aldous Huxley (“Admirável mundo novo”), que representam o pensamento de parcela considerável de intelectuais comprometidos com o presente. Essas obras se colocam como uma advertência contra certos processos de dominação e controle presentes hoje nas relações sociais, processos estes que, uma vez alimentados e enriquecidos por um desenvolvimento científico, poderiam levar a uma desumanização e a uma automatização do homem, cada vez mais uma peça de engrenagem, crescentemente sujeito a mecanismos de dominação e padronização. Segundo a hipótese destes escritores e cineastas, o progresso da máquina acarreta forçosamente uma intensificação da contradição homem-máquina e temem eles que nessa luta a máquina seja vencedora, submetendo-se, assim, o homem à técnica. Acontece que esses senhores esquecem duas coisas fundamentais. Primeiro, que esses mecanismos de controle são fruto não do progresso técnico enquanto tal, mas dos conflitos decisivos que se travam na sociedade de hoje, dentro dos quais estão presentes forças cujos interesses, ameaçados pelo desenvolvimento, engendram e patrocinam a desumanização e padronização; o problema está na superação destas forças e não no progresso da máquina. Segundo, que a evolução tecnológica age sobre os modos de relacionamento social e sobre os valores que o  orientam; portanto, juntamente com a técnica o homem se desenvolve e a criação de um mundo futuro habitado pelo mesmo homem de hoje, não tem base científica. Isso se reflete com grande clareza nestas obras, em cuja estrutura não há lugar para a colocação dos interesses que regem os poderes constituídos, ficando toda a realidade exposta num plano abstrato, onde é impossível identificar causas racionais e concretas para os fenômenos descritos. Elas expressam apenas um compromisso com o que há de retrógrado no presente e que, por isso mesmo, se esvai no pessimismo e no irracionalismo.

Dentro deste quadro traçado, um elemento emerge para se destacar e ganhar importância, desde que lança uma nova e mais autenticamente humana perspectiva para a science fiction: “2001, uma odisséia no espaço”, de Kubrick. Para Kubrick o alto nível de evolução técnica não deve despertar temores, adquire o significado de uma autêntica alvorada (um novo salto que transformará o homem da mesma forma que a passagem do macaco para o ser humano), encarada com receio apenas por aqueles que estão condenados pelo progresso. A máquina é produto da criação humana e seu aperfeiçoamento e crescente poderio não assustam; o homem tem o poder de ligá-la e desligá-la segundo seu comando. Se o velho homem teme e se apavora diante dela, nada mais lhe resta do que dar lugar à ascensão do novo homem (o feto no final do filme), cujos valores e cuja cultura em processo, preenchem de forma superior as exigências que esta alvorada impõe para seu comando.

2001 é uma libertação. Rompe com as amarras do pessimismo decadente e anti-histórico, portanto anti-humano. Ao mesmo tempo liberta a ficção científica cinematográfica de suas grades literárias, desenvolvendo a verdadeira linguagem desta arte voltada para o futuro.

Arquivo Público do Estado de São Paulo. Foto Isabella Bellinger.

Ismail Xavier

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