Angústias e natureza humana

Terça-feira, 24/09 /1968

Em “As amorosas”, Khouri continua seu caminho, dentro das coordenadas que sempre orientaram seus filmes. Novamente suas preocupações com respeito à vida, ao homem e a natureza estão presentes de modo determinante, tudo funcionando como pretexto para suas reflexões de ordem abstrata. Os personagens, as situações, sua maneira de filmar procurando sempre o que está por detrás das coisas revelam suas angústias e inquietações diante do “mistério da vida e da natureza”. Neste aspecto, sua obra revela uma unidade impressionante que coordena todos os elementos em função e como expressão de sua visão de mundo ( a escolha de um plano, o ritmo da seqüência, a música, tudo contribui para a criação de uma particular atmosfera). Vejamos aonde chega essa visão cuidadosamente transformada em imagem e som.

O personagem principal desta vez é um estudante universitário totalmente desligado do mundo que o cerca: é um estudante, mas não freqüenta a faculdade nem se importa com ela,  não participa de nada: ao mesmo tempo não trabalha, sendo sustentado pela irmã,  com quem guarda relações que revelam uma tendência incestuosa reprimida. Não consegue trabalho porque não se adapta a nada, não aceitando as regras da sociedade, ao seu ver muito quadrada e controlada por homens vulgares e burros; enfim vive ensimesmado num mundo que criou para si, sofisticado e ao mesmo tempo habitado por um vazio que provoca frustração. Busca então na satisfação sexual a compensação, mas a efemeridade dos instintos e sua própria perspectiva estreita diante do sexo impossibilitam uma saída. Resultado: não se liga a ninguém, nenhuma mulher o satisfaz, o realiza. Sua explicação para isso é simples: tudo é passageiro, um dia acaba, morre de vez; portanto, qual o sentido de qualquer tentativa de compromissos com quem quer que seja?

 De que vale a tentativa da construção de qualquer relação sólida com os outros se está tudo errado na própria base? E Khouri constrói um mundo que  confirma a visão de seu personagem que não passa de uma visão sua talvez sem o panteísmo delirante que emerge das imagens. Sim, porque a fita começa com um longo plano de uma árvore (símbolo de natureza -vida -sexo) que acaba no enquadramento de Paulo José a ela encostado completamente derrotado e expressando a perdição humana e sua corrupção da natureza. No final, a longa seqüência do bosque fecha o ciclo, pois reúne ali, como que corrompendo a paz e a perfeição da natureza, um bando de marginais, uma atriz vulgar e “perdida” e o nosso angustiado personagem. E que espetáculo estes seres humanos diante de tão inocentes árvores (tão inocentes que servem para cobrir o corpo nu de Jacqueline)? Um espetáculo de baixeza,  de corrupção gratuita e sádica, de patologia sexual ( que representa grande sacrilégio contra  as leis naturais). Quanto ao resto da fita (o núcleo que ajuda a fechar o ciclo) se desenvolve em  função da demonstração dessa tese nenhum personagem consegue escapar da condenação. No máximo temos uma estudante muito mal elaborada como personagem, porque Khouri criou um tipo, na realidade não existe esta estudante que milita politicamente, participa do movimento estudantil. Acontece que além de caricaturar falsamente este movimentos ( a cena da reunião que planeja a passeata é o fim da picada), o confunde com os hippies, jovens de boite que ficam cantando em ambientes escuros canções de protesto. A sua estudante assume uma postura de normalista, de adolescente, que não conhece nada da vida. Sai de uma reunião importante para se apaixonar e se entregar totalmente ao nosso angustiado, mostra admiração por ele, quando discutem, nada diz, resumindo-se a negações inseguras enquanto ele se mostra o dono da situação. Será que Khouri não conhece nenhuma universitária a ponto de fazer tais confusões? Resta o mundo vulgar da televisão, ponto de reunião de personagens corrompidos. Resultado: não há salvação, é ingênuo (como a universitária) a tentar qualquer transformação ou  aperfeiçoamento das relações entre os homens porque o mal está na natureza humana corrompida. Resta-nos o consumo da angústia.

Arquivo Público do Estado de São Paulo. Foto Isabella Bellinger.

 Ismail Xavier

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