Isabella Bellinger*
Entre julho de 1968 a junho de 1969, a coluna de cinema do jornal O Diário de S.Paulo foi realizada por um grupo de alunos da recém-fundada faculdade de cinema da Universidade de São Paulo – USP. Este grupo era formado por Djalma Batista, Marília Franco (assinando como Marília Aires), Valéria Silveira, Eduardo Leone, José Possi Neto (estudante de teatro, mas sempre em contato com o cinema), Maurice Politi, Álvaro Ferreira, Sérvulo Peres Siqueira, Ismail Xavier, dentre outros, incluindo Jean-Claude Bernardet através do pseudônimo Cláudio de Andrade.
Nos anos de 2007 e 2009, durante minha Iniciação Científica, orientada pela Profa. Dra. Luciana Araújo e financiada pelo PIBIC/CNPq, procurei, através das resenhas críticas escritas por Ismail Xavier, compreender os dois momentos de sua produção crítica: do estudante de cinema da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo no fim da década de 60, para um dos maiores teóricos e críticos cinematográficos do Brasil.
Dessa forma, levantei as resenhas críticas escritas por Ismail Xavier durante o fim dos anos de 1960 e publicadas em O Diário de S. Paulo, material que, até aonde tenho conhecimento, nunca havia sido levantado. A pesquisa se iniciou na Biblioteca Mário de Andrade no ano de 2007 aonde foi levantado cerca de metade dos textos que compõem a participação de Ismail Xavier como colunista do Diário de São Paulo. O levantamento teve de ser encerrado devido a obras na biblioteca e a indisponibilidade do material para consulta em outras fontes, como na Biblioteca Nacional e no Arquivo Público do Estado de São Paulo. No início de 2009, o levantamento das resenhas continuou agora no Arquivo Público do Estado de São Paulo e foram levantadas as resenhas faltantes.
Ao todo foram levantados sessenta e cinco textos, sendo que destes, três são os artigos, que tratam de tendências e/ou enfocam aspectos que Ismail considera serem importantes pontos de reflexão acerca da produção cinematográfica. Geralmente esses artigos abordam questões políticas que envolvem o cinema. Desses artigos, dois tratam de cinema brasileiro: “Cinema brasileiro: indústria ameaçada” e “O INC e os festivais”. E o último sobre as produções checas: “Aceitação do cinema tcheco”. O restante dos textos são resenhas críticas que tratam de um filme, em cartaz nas salas de cinema paulistanas, seja reapresentação ou não, como objeto de uma análise crítica.
Para compreender as opiniões de Ismail Xavier estudante é necessário inseri-lo dentro da conjuntura política e social e dos questionamentos levantados pelo cinema brasileiro ao longo dos anos 1960. No Brasil, antes do golpe de 1964, os intelectuais acreditavam que deveriam conduzir o povo rumo a uma revolução social, tira-lo da alienação política e mostrar a importância que possuíam dentro do país. Culturalmente, diversas áreas estavam produzindo alicerçadas nesta dinâmica. Naquele momento, em escala mundial, havia um clima crente na transformação de todos os aspectos da sociedade. Ocorreram diversos fatos, como a Primavera de Praga, o maio de 1968 na França, a Revolução Cultural chinesa, dentre outros, que ecoaram por todas as partes do globo.
No cinema, inspirado no neo-realismo italiano, na nouvelle vague francesa e no cinema independente brasileiro dos anos 1950 surge o Cinema Novo. Empenhavam-se em uma produção inovadora, no conteúdo e na forma do fazer cinematográfico. Necessitavam discutir a realidade brasileira em todos os seus aspectos. Em 1965 Glauber Rocha escreve “Uma estética da fome”, símbolo máximo da concepção do Cinema Novo. Neste manifesto é abordada a condição de subdesenvolvimento do país, dominado pela fome. Para ele, a realidade brasileira naquele momento era a pobreza, a injustiça social e a alienação. Essa “fome” é generalizada, e o cinema deve afirmar a sua própria, fazendo de sua limitação sua maior aliada. A “fome” deve gerar consciência e criatividade; sua maior manifestação é pela violência, que funciona como impulso transformador do mundo. A “fome” está em tudo no cinema nacional dos anos de 1960: a precariedade dos equipamentos e de dinheiro deve servir de motivação para uma estética inovadora, que traduza e conscientize a existência desta “fome” para todos.
Em 1964, o projeto de discutir abertamente o Brasil foi inviabilizado e os cinemanovistas tiveram que redefinir as suas coordenadas. A crença na transformação do Brasil cai por terra com o início da ditadura e com isso se altera também a temática do Cinema Novo. Se antes valia discutir a sociedade brasileira, a alienação da população, agora, busca-se compreender o que deu errado, deve-se fazer uma revisão da frustrada revolução social, que não ocorreu. É neste contexto que é lançado Terra em transe, dirigido por Glauber Rocha em 1967.
É no mesmo ano do lançamento de Terra em Transe que se inicia o ensino de cinema na Universidade de São Paulo. A pioneira havia sido a Universidade de Brasília. A Universidade de São Paulo decidiu se adequar ao momento e
Criou-se, assim, a Escola de Comunicações Culturais- ECC, depois Escola de Comunicações e Artes- ECA, com Paulo Emílio integrando o primeiro grupo de professores contratados. A ECC tinha começado a dar seus primeiros passos depois da nomeação de uma comissão, em 19/3/1965, para a criação de um instituto de comunicações, com cursos de jornalismo, cinema, teatro, rádio, televisão e biblioteconomia.(…) O vestibular foi aberto para o ano letivo de 1967.[1]
Dessa forma, começa uma formação acadêmica dessa atividade. Anteriormente, os realizadores cinematográficos brasileiros obtinham seus conhecimentos através da prática. Inicia-se um momento de discussão e prática acadêmica do cinema. Os professores eram alguns desses realizadores e estudiosos da área como Paulo Emílio Salles Gomes, que obteve parte de seus conhecimentos na França. Ismail Xavier faz parte da primeira turma de cinema da Escola de Comunicações Culturais, posteriormente Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo.
Em julho de 1968, o então estudante Ismail Xavier assume com outros colegas a coluna de cinema do jornal Diário de São Paulo. Porém, em dezembro de 1968 é decretado o Ato Institucional número cinco, que suspendia uma série de direitos civis e constitucionais. Assim, com o endurecimento da ditadura e conseqüentemente da censura, a atividade de Ismail Xavier como colaborador do jornal vai diminuindo aos poucos o ritmo até cessar por completo em junho de 1969. Em relação ao cinema nacional, ocorreu uma transformação na temática do Cinema Novo: além da discussão política e social, os filmes passaram a fazer uma reflexão sobre o próprio fazer cinematográfico no Brasil, bem como a tratar da história recente e cultural do país.
É dentro dessa conjuntura ditatorial e da ebulição e mudanças das idéias do Cinema Novo que se encontra o primeiro momento da experiência crítica de Ismail Xavier, compreendido entre julho de 1968 e junho de 1969.
Após meu estudo neste vasto material levantado, senti a necessidade de estender a leitura desses textos para todos aqueles que se interessam pelo fazer e estudo da crítica cinematográfica. Talvez, acredito eu, seja possível pela leitura de tais resenhas, compreender melhor a trajetória crítica de Ismail Xavier, isto é, como um estudante de cinema se torna um teórico acadêmico. Logo, a leitura destes textos supera o interesse pela crítica cinematográfica e abarca todos aqueles que se interessam por pesquisa acadêmica em Cinema, mostrando o caminho trilhado por um pesquisador cinematográfico formado dentro de um ambiente acadêmico nacional.
Assim, pedi a Ismail que me auxiliasse a selecionar algumas dessas críticas para serem publicadas na RUA. Ao todo, selecionamos quinze textos, que acreditamos serem capazes de sintetizar essa sua primeira experiência crítica. Cada resenha será publicada em uma edição da revista.
Neste mês, além do texto introdutório, há uma entrevista cedida por Ismail a mim, especialmente feita para a seção na qual ele aborda a experiência crítica e a influência desta em sua formação crítica acadêmica, juntamente com a resenha de estreia de Ismail em O Diário de S. Paulo: “Cidadão Kane”.
* Isabella Bellinger é graduada em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Resenhas:
Janeiro/2011 – Cidadão Kane – 17/07/1968
Fevereiro/2011 – Barravento – 26/07/1968
Março/2011 – Arbitrariedades e Opressão – 02/08/1968
Abril/2011 – 2001: uma libertação – 25/08/1968
Maio/2011 – Angústias e natureza humana – 24/09 /1968
Junho/2011 – Paixão no encontro de duas gerações – 16/10/1968
Julho/2011 – A mitologia redentora – 29/10/1968
Agosto/2011 – A luta na areia – 05/11/1968
Setembro/2011 – Lixo sem limites – 10/12/1968
Outubro/2011 – O velho Tati diante de uma nova Paris – 07/01/1969
Novembro/2011 – Agente secreto fase três; Resultados fase três – 04/03/1969
Dezembro/2011 – Maiorlancemaiorlance – 11/03/1969
Janeiro/2012 – Ver e aprender: Elimination – 06/05/1969.
Fevereiro/2012 – A simetria do bravo guerreiro – 20/05/1969.
Março/2012 – Crônica em torno do Dragão – 17/06/1969.
[1] Souza, José Inácio de Melo. Paulo Emílio no Paraíso. “Paulo Emílio professor”. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 495.
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