Wanderson Lima*
A odisséia de Pedro Costa em Fontainhas – extinto bairro suburbano lisboeta, habitado por imigrantes africanos, portugueses desempregos e gente que vive a se drogar – ganhou notoriedade no cinema com Ossos, de 1997, e se prolongou a No quarto da Venda (1999) e Juventude em marcha (2006). Estes três filmes compõem um painel singular da vida lumpemproletária, que representam um avanço técnico e ético na forma de representar o outro no cinema. Estamos, com esta trilogia, longe do anedótico, do exótico, da estetização da miséria, da denúncia exaltada, do moralismo bem intencionado, da piedade piegas, enfim, de todas essas formas de mostrar o outro sem nenhum empenho pessoal profundo. Digamos, pois, desde já: o projeto de Pedro Costa é um projeto vital, que o levou inclusive a habitar naquele bairro.
Nesses três filmes, que rompem as fronteiras entre ficção e documentário, Fontainhas e o ethos de seus moradores impregnam todo o estilo e toda a concepção formal do filme. Ainda que seja um esteta rigoroso, preocupado sobretudo com o ângulo e o enquadramento perfeitos, e com uma iluminação de rico contraste barroco entre sombra e luz, Pedro Costa, especialmente em Juventude em marcha, dá-nos, à primeira vista, a impressão de um filmar espontâneo, de um simples deixar a câmera ligada, sem se preocupar com cortes etc. Segundo Cléber Eduardo, na revista Cinética,
“Costa coloca a câmera em um ângulo específico e imutável em cada ambiente, estabelecendo para si uma direção rígida e de mínimas variações, com um caráter monástico e obsessivamente depurado de ‘encenação’ (se a palavra ainda tem sentido aqui). Instala os atores diante dessa câmera fixa, que se mantém quase constantemente ‘olhando para cima’, com uma inclinação e uma angulação raríssimas, e, sem cortar, evitando a decupagem interna das seqüências […], filma os corpos estáticos ou as conversas recitadas de atores-personagens (atores com nomes de personagens, com biografias próximas)”.
Sabemos que este “estilo” Pedro Costa de fazer filmes tem sua genealogia – certamente a sobriedade e o anti-dramatismo de Bresson e sua radicalização em Jean Marie Straub; Ozu e sua visão dos choques de geração; talvez as “docuficções” de Jean Rouch, Manoel de Oliveira e de Abbas Kiarostami –, mas é tentador dizer que se trata de um cineasta único, singular, original.
O projeto de Pedro Costa repõe ao cinema – em plena época das reciclagens e citações divertidas e desengajadas do cinema pós-moderno – uma gama de preocupações de natureza ética, especialmente à ética do filmar o outro, mas também a questões relativas ao fim dos laços comunitários e aos efeitos da miséria social sobre a dignidade das pessoas. Apesar disso, é preciso rechaçar a idéia de que Pedro Costa seja um Costa-Gravas ou um Fernando Meireles. O sentido de rigor que Pedro Costa impõe ao seu trabalho exige uma liberação da imagem de calcificações ideológicas e de denuncismo explícito; há na imagem de Pedro Costa um clamor ético evidente, mas ela nos vem inacabada, pede nossa co-participação. Essa é uma das astúcias de Pedro Costa: produzir uma obra ao mesmo tempo depurada e empenhada.
Juventude em Marcha é uma nênia contida a Fontainhas, à beira da de demolição. O que se demole quando se demole Fontainhas? O discurso do governo fala de melhores condições de vida, maior higiene, etc. Pedro Costa nos mostra que o deslocamento da população de Fontainhas para os apertados apartamentos do bairro Casal Boba resulta também na demolição de um patrimônio imaterial, cuja pepita de maior valor é a memória coletiva, sintetizada neste homem de rara dignidade, imigrante cabo-verdiano há muito habitando em Portugal: Ventura. Em entrevista aos Cahiers du cinéma, Pedro Costa afirmou: “Todo dia, quando eu acordava, me perguntava como fazer para estar à altura daquele sujeito. Pode chamar isso de cuidado moral, ético, respeito, o que se quiser. Como filmar bem esse homem, para contar direito a sua história?”. Esta fala revela não só a preocupação ética do cineasta, a que referi antes, mas também a consciência da singularidade de Ventura, um homem deslocado no tempo e no espaço, sem condições de aceitar o presente mas sem meios de combatê-lo, nem português nem mais africano, sábio num mundo que, como demonstrou as análises de Walter Benjamin, inutilizou a sabedoria.
Ventura perdeu a mulher (separou-se, por decisão dela) e o espaço-afeto (Fontainhas) em que vivia. Deambula, conversa (principalmente com Vanda, protagonista do filme anterior de Pedro Costa), cisma melancólico, mas de cabeça erguida, altivo; declama uma carta de amor diversas vezes, como se isso lhe trouxesse algum consolo. Não suporta o apartamento, as paredes brancas desse espaço um tanto inumano, sem história. Um lugar mais salubre que Fontainhas, porém uma waste land feita com frieza humana, para frieza humana.
A câmera de Pedro Costa nos convence da dignidade e do calor humano presente em Fontainhas e ausente dos apartamentos, mas nunca confunde esta dignidade com heroísmo nem contrapõe de forma simplória uma suposta bondade espontânea dos pobres a outra também suposta maldade natural de todo governo. Não há mocinhos nem bandidos. O retrato que Pedro Costa constrói daquele cosmo é complexo e depurado de qualquer emotividade epitelial. Como diz seu criador, “Juventude em marcha é a crônica da instalação em um novo lugar. Um processo que pode significar o desaparecimento de uma porção de coisas. Na verdade, nesse filme não tenho nada a transmitir – quem tem a transmitir são as pessoas que estão no filme, que falam de coisas muito pessoais, de pai para filho, de mãe para filha, de avô para neto. Não é uma crítica geral, tampouco é um filme sobre Portugal. Não tem nenhum tipo de mensagem. Se há alguma mensagem, ela está no lado familiar”. E que mensagem seria esta vinda do lado familiar? A juventude está em marcha: o presente é dos jovens (que nem por isso estão instalados confortavelmente nele), enquanto Ventura, este desventurado cheio de memórias, não tem um tempo que é seu, não habita plenamente nem o ontem nem hoje. Ventura espera seu Godot; e a juventude, e os seus filhos, o que esperarão?
*Wanderson Lima é escritor e professor universitário (Uespi). Co-edita a revista dEsEnrEdoS e mantém o blog O fazedor, onde escreve sobre cinema e literatura