Samuel Douglas Farias Costa*
Melhor do que muitosdocumentários sobre o assunto, Terra Vermelha (BirdWatchers – La terra degli uomini rossi) do diretor ítalo-chileno Marco Bechis, que dirigiu Garage Olimpo (1999), é um filme sobre o conflito ao redor da terra entre indígenas Guarani Kaiowá e latifundiários na região de Dourados, Mato Grosso do Sul. Para além desse tema central que é a questão da terra, o filme passa por muitos outros aspectos, como o suicídio e alcoolismo entre os indígenas, o estereótipo que é imputado à esses povos, a relação de poder entre índios e a sociedade nacional, entre outros assuntos delicados e que vários trabalhos acadêmicos brasileiros tentam dar conta ao abordar , refletir e propor idéias.
Dois aspectos que não podem ser desconsiderados para pensar o filme é o olhar “de fora” do diretor, levando em consideração que ele é um estrangeiro, combinado com o olhar “de dentro”, daqueles que vivenciam as situações apresentadas. Os personagens Guarani Kaiowá são interpretados pelos próprios indígenas dessa etnia. O longa também conta com bons atores brasileiros como Leonardo Medeiros e Matheus Nachtergaele. O filme é inspirado em fatos reais, extremamente político sem abandonar o lado artístico. Entre outras premiações, levou o “Prêmio Especial do Júri” no festival Globo de Ouro italiano e concorreu ao “Leão de Ouro” no Festival de Veneza 2008, onde a obra foi muito bem recebida.
A história se desenvolve ao redor de um grupo indígena da etnia Guarani Kaiowá que, liderados pelo cacique Nádio (Ambrósio Vilhalva), saem da reserva para habitarem o local onde seus ancestrais foram enterrados. Atentemos ao fato que o cemitério dos seus antepassados possui um valor simbólico de grande importância na cosmologia Guarani. No entanto, essas terras estavam na propriedade do latifundiário Moreira (Leonardo Medeiros). Os Guarani Kaiowá instalam acampamento do lado de fora da cerca, na beira da estrada, o que incomoda o proprietário das terras. Os indígenas atravessam a propriedade frequentemente para buscar água no rio que há do outro lado, e Moreira aplica diversas “medidas” para manter os Guarani afastados. Em uma cena, por exemplo, um avião derrama agrotóxico sobre os Guarani. Dessa forma, vemos quem detém mais poder nessa relação, e o diretor faz questão de deixar isso claro. Quem possui a arma de fogo? Quem contrata capangas? Quem tem maior poder de capital? A resposta é evidente.
Essa desigualdade de poder não quer dizer que os indígenas são passivos na relação com a sociedade ao redor, ou que estão perdendo a sua identidade e cultura. O diretor deixa claro também que esse grupo é Guarani Kaiowá, portanto temos a constante noção de sua identidade enquanto indígenas. Supera, assim, a idéia estereotipada da maioria das pessoas de que pelo fato de muitos desses povos estarem usando roupas como a dos brancos, andando e trabalhando nas cidades (entre outras características que estão se transformando), eles estejam perdendo cultura. É a antiga e superada idéia de aculturação que estigmatiza os indígenas. Esse pensamento é falso, superficial e ingênuo. A situação de contato é extrema e leva os grupos a estabelecerem relações de trocas interdependentes. A cultura é algo dinâmico e está em constante transformação, a mulher de hoje não é a mesma mulher de um século atrás, por que os indígenas deveriam ser? O que ocorre também não é apenas um processo de incorporar a cultura capitalista/ocidental, mas de ressignificá-la, coisa que a sociedade nacional também faz com as culturas indígenas.
Nos aspectos técnicos, o filme também não deixa a desejar. As imagens são fortes ao combinar o artístico com uma ficção muito próxima do real. A fotografia é forte e crua: trata de mostrar as cores, os lugares e as pessoas como são. A música, na mesma linha, é composta por sertanejo, que é predominante nessa região. Em outros momentos somos apresentados ao clássico e erudito, contrastando com os indígenas na floresta e o som da mata.
O diretor mostra que a principal arma dos Guarani nessa disputa é a sua cultura e identidade. O conflito está dado não apenas no plano material, mas também no político e simbólico. Um ótimo filme, corajoso e necessário.
*Samuel Douglas Farias Costa é graduando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e redator do blog “Avant, Cinema!”.
Realmente, é um ótimo filme. É um soco no estômago.