Gravidade (Alfonso Cuarón, 2013)

Por Arthur Souza Lobo Guzzo*

Em 2006, o diretor mexicano Alfonso Cuarón dirigiu Filhos da Esperança, ficção científica sobre uma Terra onde a infertilidade humana havia dilacerado praticamente todos os governos do mundo, jogando a civilização no caos e ameaçando o futuro na nossa espécie. O filme contava com algumas sequências sem corte que eram muito impressionantes, exibindo um esplendor técnico que há muito não era visto. Ali foi possível constatar que Cuarón tinha grandes ambições no que diz respeito ao cinema. Não apenas temáticas – Filhos da Esperança permanece como uma das coisas mais pesadas e profundas que Hollywood já produziu – mas também técnicas. Enquanto o personagem de Clive Owen lutava desesperadamente pela própria vida (e por outras vidas também), seguido por uma câmera frenética que mais parece um legítimo documentário de guerra, era como se Cuarón quisesse usar a mídia “cinema” em toda a sua totalidade. Pois é isto que ele atinge com Gravidade (2013), que tem Sandra Bullock e George Clooney como protagonistas: os recursos visuais são tão bem empregados e servem tão bem à história que talvez possa se estar diante do verdadeiro cinema como arte e meio narrativo: ao mesmo tempo em que ficamos perplexos com tamanho cuidado na composição das imagens, planos e sequências, a produção nos apresenta interessantes metáforas visuais sobre a condição humana, estar vivo, a origem da vida no planeta Terra e a relação do homem com o espaço.

A primeira coisa que chama a atenção ao acompanhamos a trajetória dos astronautas Ryan Stone (Bullock) e Matt Kowalski (Clooney) – escalados para efetuar reparos em um telescópio e pegos de surpresa por detritos espaciais de um satélite russo, que foi destruído e causou uma reação em cadeia mortífera na órbita terrestre – é, indubitavelmente, a qualidade técnica das imagens. Qualidade não, supremacia. Como em muitas produções hoje em dia, muitas cenas são filmadas sobre a “tela verde”, com cenários adicionados posteriormente. Mas, como em poucos filmes atuais, o resultado é assustador. É de se imaginar o trabalho cuidadoso que os realizadores tiveram em todos os aspectos, inclusive nos científicos. O importante detalhe da ausência de som no espaço é cuidadosamente observado, algo que pode até mesmo deixar alguns espectadores inquietos e desconfortáveis, pois a trilha sonora substitui os efeitos sonoros de forma implacável. As impressionantes tomadas do planeta Terra visto do espaço ressaltam a proeza em utilizar a técnica à disposição para contar uma história da melhor maneira possível, e aí se inclui o uso da tecnologia 3D, a tal ponto que simplesmente não faz sentido acompanhar Gravidade em um televisor comum, ou, pior ainda, em uma tela de computador. Ao mesmo tempo, a eficiente troca de perspectiva (ora objetiva, com os citados planos abertos do espaço, ora subjetiva, com tomadas absolutamente claustrofóbicas de dentro dos capacetes dos astronautas) confere ao longa uma autenticidade ímpar. A vastidão opressora do ambiente em que os astronautas trabalham é um elemento crucial do roteiro, e é simplesmente impossível emular a sensação de se estar em um ambiente de microgravidade orbital como esse em qualquer outra coisa que não seja uma sala com uma tela grande. Bem grande.

 A “Lei de Murphy”, aqui, é a ordem do dia. Tudo o que pode dar errado com Stone e Kowalski dá errado, de forma majestosa, a começar pela própria “bola de neve” causada pela destruição do satélite russo. Isto pode até ser um demérito para o filme – alguns dirão que a sucessão de infortúnios torna a história inverossímil. Mas esses eventos estão lá para lembrar-nos de que nós, seres humanos, somos meras crianças indefesas no que se refere ao espaço, com todas as suas possibilidades ainda não exploradas, bem como seus perigos inimagináveis. Em um ambiente como esse qualquer falha pode representar a diferença entre viver e morrer, e, nesse sentido, os perigos constantes – ser atingido por destroços de um satélite em velocidades altíssimas, ficar sem oxigênio, sofrer descompressão, hipotermia, ou morrer carbonizado por um incêndio dentro de uma estação espacial abandonada – fazem o grande favor de nos lembrar disso.

E, por falar em criança indefesa, é interessante notar como a vida – e a vida humana, em particular – é abordada pelo filme. Em uma cena que provavelmente foi uma das mais comentadas, a Dra. Stone consegue adentrar uma estação espacial abandonada, depois de escapar de diversos perigos. De certa forma protegida, ainda que momentaneamente, e aproveitando a quase ausência de gravidade, assume posição fetal, como se estivéssemos testemunhando a personagem nascer de novo. Em outro momento, certa de que irá morrer diante de chances mínimas de sucesso, Ryan se deixa acalentar pela voz ininteligível de um homem com quem consegue estabelecer contato via rádio. A voz, apesar de falar em língua estranha, aquieta a astronauta. Um cachorro late ao fundo da transmissão, e Ryan imita os latidos – do mesmo modo que uma criança (no caso, um bebê) faria. É como se Ryan estivesse “crescendo” com a experiência; atingindo limites de sua existência que antes eram desconhecidos e foram devidamente transpostos pela experiência vivida. O final de Gravidade reserva aos espectadores uma metáfora ainda mais poderosa, esta bem mais ampla do que as discutidas aqui, mas ainda em sintonia com este mesmo tema, o desenvolvimento de Ryan como ser humano.

São apenas alguns dos temas apresentados por esta produção com diversas camadas de interpretação. Não surpreende, se pensarmos que o próprio espaço apresenta inúmeras possibilidades de interpretação. O que esperar, então, de um filme que lida com o espaço, e é feito com tanto cuidado? Nada menos do que o que nos é apresentado. Por isso, é possível dizer que Gravidade é cinema em estado bruto; ao mesmo tempo em que nos distrai com uma história de sobrevivência diante das mais terríveis e adversas condições, é uma reflexão sobre a condição humana que permite análises tão diversas quanto as estrelas que brilham do espaço interestelar para os personagens. Estrelas digitais, concebidas em algum computador de uma empresa de pós-produção, mas isso nem passa pela nossa cabeça quando os 90 minutos de projeção passam de forma tão rápida que mal é possível olhar no relógio durante a exibição.

*Arthur Souza Lobo Guzzo é graduado em Comunicação Social pela PUC-Campinas e em Ciências Sociais pela Unicamp

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