Jonathan Rosenbaum alcunhou Béla Tarr de “Tarkovski desespiritualizado”. O epíteto, como era de se esperar de alguém como Rosenbaum, é uma precisa iluminação sobre uma maneira de filmar e de interpretar o mundo. De fato, esse diretor húngaro, que começou fazendo filmes sobre a condição proletária de seu país, passou, de forma evidente a partir da obra-prima Condenação (1988), a abordar o homem a partir de uma dimensão cósmica e religiosa, ainda que, muitas vezes, essa perspectiva seja problematizadora e não exatamente apologética, assim como ocorre também a Abel Ferrara. De qualquer forma, o cinema de Tarr, como o de Tarkovski, não reduz os problemas do homem à sua condição terreal, mais especificamente, à aventura (costumeiramente desastrosa) do homem enquanto animal político, o “zoon politikon” de que fala Aristóteles.
Mas apaguemos o fogo-fátuo da carolice: a assunção de uma perspectiva metafísica por parte de Tarr não deu magicamente à sua arte um estatuto de maioridade. Um filme de tom religioso não é a priori superior a outro de tom político. Sabemos que há muita película de segunda mão traduzindo a fé em emoção fácil e piegas, ou propondo as mais insossas “jornadas espirituais”. A questão é que, a partir dessa nova perspectiva, o cinema de Tarr se modificou estilisticamente também. O que era semente deu seu vigoroso broto, e vimos, então, o amadurecimento dos estilemas que o consagraram: o plano-seqüência, o preto-e-branco de rara fotogenia, a atmosfera densa e poética (onde a névoa constante e uma música alucinatória são componentes essenciais) e a representação da vida marginal, especialmente daqueles que, como as personagens de Dostóievski, encontram-se à beira de apocalipses.
As harmonias de Werckmeister (Werckmeister Harmóniák, Hungria, 2000), apesar das constantes negações de Tarr, é um drama metafísico de ressonâncias apocalípticas. Em várias entrevistas que li, Tarr tenta descartar, estranhamente, dois fatores: a religiosidade de seus últimos filmes e a influência de Tarkovski (a quem considera “otimista” e de quem rechaça especialmente os filmes feitos fora da Rússia – Nostalgia e O sacrifício). Penso ser útil e até aconselhável procurar saber o que pensa um artista sobre sua obra, apesar do descrédito e do ceticismo com que essa prática é recebida na academia desde o estruturalismo; mas no caso de Béla Tarr só posso supor duas coisas: ou ele é um mau intérprete de sua obra, a ponto de não reconhecer suas raízes profundas, ou gosta de blefar. Vou pela última possibilidade, já que este homem sisudo e lacônico por quase nada qualifica de “shit” o que lhe propõem como reflexão, nega igualmente a aproximação de suas obras com as de Sokúrov e Angelopoulos, diz que não assiste a filmes há 4 anos (isso em 2007) e se recusa com veemência a explicar de verdade o que quer que se refira a seu método de trabalho ou aos simbolismos de seus filmes.
São apenas 39 planos-seqüências em As harmonias de Werckmeister, que dura nada menos que duas horas e dezenove minutos. O que isso indica, fora uma extraordinária perícia técnica? Primeiramente, uma abertura maior de sentido à imagem (estou pensando aqui na contraposição que Tarkovski faz entre plano-seqüência e montagem, partindo da qual ele condena a montagem por esta coibir a polissemia da imagem, impondo sentidos evidentes); em segundo lugar, e aqui novamente me ancoro em Tarkovski, revela a busca de um verismo que recusa a peripécia e o abuso de artifícios, dando mais destaque à intensidade das vivências que se desdobram no tempo do que aos “sustos” produzidos pela narrativa bem encadeada. O resultado é um cinema lento, denso e um tanto difícil, mas poderosamente revelador daqueles sentimentos íntimos, difíceis de serem nomeados; um cinema que corrobora a exigência que Deleuze impunha ao grande filme – ser um pensar concreto por imagens – e que não faz feio frente às obras dos grandes cineastas europeus de linhagem metafísica – um Murnau, um Dreyer, um Bergman, um Bresson.
O entrecho de As harmonias de Werckmeister traz quatro figuras de expressão: um idiota santo que, num bar, faz um monte de bêbados girar imitando os astros do sistema solar; um pianista misógino e angustiado que acredita que a música ocidental, a partir das escalas harmônicas de Werckmeister, mudou a rota e se afastou da vontade divina; uma baleia gigantesca empalhada, trazida por um circo e deitada numa praça; e um ser caricatural (e visto apenas na penumbra) que oscila entre Hitler e Satã, intitulado o Príncipe, que defende que a ordem é o caos, conclamando, com sucesso, o povo de uma pequena cidade húngara a saquear, ferir e destruir. Tudo isso é urdido, sem muito rigor, a partir da figura de János, o idiota santo, que Tarr faz questão de não dar um destino dos mais felizes. É tentador procurar significados para os símbolos que são, na narrativa, a baleia e o Príncipe, e abertura para isso é o que não falta ao filme. Mas isso dificilmente passaria de um exercício um tanto arbitrário, pois o símbolo, quando bem elaborado, mantém sua força justamente na abertura que instaura e na resistência que impõe às práticas hermenêuticas reducionistas.
János lembra Kajdanovsky (do filme Stalker, de Tarkovski), mas, ao contrário deste, não se sente em crise pelo fato de as pessoas terem o “órgão da fé atrofiado”. Não se rebela. É pura mansidão e passividade: a todos chama de tio(a), submete-se à vontade do outro sem reclamar. Só a ele a baleia gigante parece tocar fundo, e nela experimenta o mistério da vontade criadora de Deus. O resto da cidade, ao contrário, verá no imenso mamífero o signo de uma desgraça eminente. Só János e, no final, o pianista – isto é, só o louco e o artista – “entenderão” a baleia, porque só eles são capazes de suportar a grandeza esmagadora desse portador do numinoso e de seu mysterium tremendum, que, conforme Rudolf Otto, constitui “o que há de mais íntimo e mais profundo em toda emoção religiosa intensa que nada tem a ver ainda com a fé na salvação, confiança ou amor, aquilo que, se abstrairmos destes sentimentos acessórios, pode, em certos momentos, preencher a alma e comovê-la com um poder desconcertante” (In: O sagrado, ed. port., 2005).
Wanderson Lima é escritor e professor de literatura (UESPI). Co-edita a revista dEsEnrEdoS e mantém o blog O fazedor.
Uma das melhores críticas que li a respeito de Béla Tarr.
Excelente análises, toca em elementos que várias pessoas deixam passar ou preferem não comentar – como eu – porém num ponto eu preciso discordar. Quando você toca no ponto de que há o elemento do sagrado e da fé em Werckmeister Harmóniák, me parece que ao tratar de seu povo, em toda sua obra, não existe nada sacrado e toda fé já está perdida, János talvez seja o único personagem que tenha essa crença/fé, mas ela definitivamente está morta no universo de Béla Tarr, e em seu último filme acho que isso fica ainda mais evidente. Quando a filha em O Cavalo de Turim ganha um livro dos ciganos é justamente uma história com tom profano, e nada nos indica a existência de um deus ou de algo que se possa creditar como sagrado. Claro, essa é minha opinião particular apenas.
análise profunda e muito inteligente de um filme espetacular.