Especial – Viajo porque preciso, volto porque te amo (Karim Aiñouz e Marcelo Gomes, 2009)

Nesta edição apresentamos os melhores trechos de textos de quatro redatores da RUA para formar uma publicação especial sobre o filme Viajo porque preciso, volto porque te amo.

Cena do filme "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo"

Viagem rumo à libertação

Em “Viajo porque preciso, volto porque te amo” de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, além da viagem a trabalho para revelar os feixes de rochas que compõem o solo nordestino, existe também uma viagem interior de descoberta, um exercício de olhar, não apenas do personagem principal, José Renato, que aparece somente com sua voz onipresente, mas do próprio espectador que compartilha aquelas experiências, quase em primeira pessoa, e dos diretores. A experiência cinematográfica se torna tão pessoal e íntima que sentimos a solidão e a aridez daqueles ambientes visitados. O sofrimento com o calor, as intempéries do clima e o isolamento do personagem, abandonado pela parceira, aliado ao próprio trabalho de pesquisa no sertão, se tornam um complexo e imbricado redemoinho de emoções em sua cabeça.

Os diretores conseguem um efeito único ao passarem as sensações do personagem através de diversos tipos de imagens e sons, quase de forma sinestésica. A degradação das imagens reflete a falta de esperança de José Renato enquanto a desolação dos ambientes amplifica a dor da separação. A fragmentação das imagens e a sua instabilidade, além do ritmo desarticulado da narrativa, só ratificam o seu estado de espírito conflituoso.  De certa forma, a montagem é artesanal e proposta pelo próprio personagem, ou seja, é direcionada pelos instintos e desejos mais autênticos do personagem.

Depois de certo tempo, o ambiente hostil e desolado da paisagem nordestina faz José Renato querer novamente o contato com o mundo. Nas feiras, nas casas, nas romarias e até nas prostitutas, o protagonista encontra uma forma de libertação fugaz das memórias de sua esposa. Ele viaja porque precisa, precisa se desconectar daquele sentimento, mas a efemeridade dos encontros não consegue suplantar as suas lembranças, sofre então por não saber pra onde vai e nem mais se quer voltar, porém se encontra livre para escolher o seu próprio caminho. Ele sonha com uma alternativa: os saltos de cima de penhascos em direção ao mar. Um referencial da mítica transformação do sertão em mar, assim como da superação daquele sofrimento rumo a sua libertação.

Marcelo Félix Moraes é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e graduando em Imagem e Som pela Universidade de São Carlos (UFSCar).

Cena do filme "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo".

Uma câmera que viaja

Uma câmera que viaja. Viaja com o olhar do personagem principal, sem rosto, mas com voz e muitas questões. Assim é José Renato, geólogo, recém-separado de sua amada botânica, que viaja pelo sertão a trabalho e em busca de um refúgio para sua decepção amorosa. O filme traz em si os anseios e devaneios do personagem transmitidos através da visão de seus olhos-câmera. Os planos assim como a duração e nuance de sua voz variam de acordo com seus sentimentos.

A voz-over e o não aparecimento do personagem falante, orienta a passagem e a duração das imagens e dos planos. Isto acontece, pois a voz do personagem retrata seus pensamentos e sensações frente aos acontecimentos e reflexões, enquanto as imagens captadas por seus olhos-câmera retratam o que e como ele vê objetiva e subjetivamente. Com isso, tem-se ao longo do filme uma variação na duração dos planos de acordo com os sentimentos e a recepção de José Renato frente ao que lhe acontece interna e externamente.

Um aspecto importante de se ressaltar sobre o filme, é que seu custo foi muito baixo comparado a outros longas-metragem nacionais, afinal a não utilização de atores, a falta de efeitos especiais, além do argumento para se usar câmeras de menor qualidade e materiais digitais, baratearam o custo da produção. As imagens do filme foram captadas anos antes de sua utilização, com a intenção de se fazer um documentário. Entretanto, ao ver o material gravado os diretores partiram para a ficção sobre o que já havia sido produzido. Desta forma, o capital que normalmente se utiliza durante a captação das imagens teve outro destino, que foi a divulgação e distribuição do filme, feita pelos seus próprios autores.

Débora Tãno e Wesley Soalheiro são graduandos de Imagem e Som na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Cena do filme "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo"

Poesia Narrativa

Poderíamos resumir o novo filme de Karim Aiñouz e Marcelo Gomes como uma poesia narrativa, com uma “quase” estrutura clássica (começo, meio e fim) permeada por momentos profundamente subjetivos e emotivos. A história do filme se resume a uma viagem pelo nordeste brasileiro, feita pelo geólogo José Renato (Irandhir Santos, da série Pedra do Reino) onde ele faz uma pesquisa sobre um possível canal que será construído a partir do desvio das águas. José Renato, personagem o qual nunca vemos o rosto, nos conta dados técnicos sobre a sua viagem, sobre o seu trabalho, informações que ele vai coletando para algum fim, que aos poucos vai ficando em segundo plano.

Já no pano de fundo da história, outra narrativa começa a se expandir e tomar conta da situação: é uma leitura sobre a memória, o passado e a nostalgia. Percebemos que José deixou um grande amor para trás e que isso ainda o afeta e o perturba, mas ele sabe que deve continuar, esquecer e iniciar uma nova jornada: “Eta, saudade da porra”, clama o personagem, durante suas andanças. Mas quando descobrimos que o seu “amor” na verdade o deixou antes dele partir, nos identificamos e nos solidarizamos ainda mais com José, que ainda remoe aquele sentimento e que encontra na fuga a melhor saída para o esquecimento.

Por fim, relato a passagem que mais me agradou no filme: no momento em que vemos um casal de senhores, José aponta: “eles moram juntos há 50 anos e nunca dormiram uma noite separados, eles serão uns dos primeiros a serem despejados para a construção do canal. Pedi ao senhor que desligasse o rádio…mas pedi que voltasse, não queria filmá-los separados”. Um típico road movie brasileiro, uma belíssima obra, “Viajo porque preciso…Não volto porque ainda te amo” – José Renato.

Renan Lima é graduando em Audiovisual pelo Centro Universitário Senac.

Cena do filme "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo".

Viagem através do íntimo

“Viajo porque preciso, volto porque te amo” (2009) segue por caminhos descontínuos e não ambiciona alcançar lugares essencialmente concretos. O argumento baseado na imersão sentimental no íntimo de um cidadão comum, o geógrafo José Renato, 35 anos, é desenvolvido sem causalidade aparente, conflitos óbvios ou mesmo narrador visível. O próprio José nos convida, em primeira pessoa, a embarcar em uma jornada pelo sertão nordestino, sob o pretexto de realizar pesquisas sobre um novo canal feito a partir do desvio de águas de um rio caudaloso da região. Através da convergência de fotografias, diversos sons e linguagens cinematográficas – DVCam, Super 8, High 8 e snap shots – coletadas de 1999 até 2009, a obra conjunta do pernambucano Marcelo Gomes e do cearense Karim Aïnouz é um verdadeiro espaço de experimentação sensorial e audiovisual.

José coleciona sensações como quem deseja preencher um álbum de páginas vazias: ruídos, músicas, depoimentos e fotografias polaroids e digitais costurando, artesanalmente, o campo de sensações o qual persegue. Esta pode ser uma metáfora de como o desvio de águas do rio que estuda, levará, eventualmente, outra dinâmica de vida a populações que sofrem com a seca. Ao longo do filme, o geólogo parece querer trazer esse rio para dentro de si, e por mais que manifeste vontade de retornar a sua terra natal, algo o prende naquele cenário, do qual acaba fazendo parte.

A alternância de imagens, várias delas embaladas pelo som que vai de Noel Rosa a ‘Morango do Nordeste’, dá ao filme um caráter intimista e experimental, que amarra em sua teia audiovisual o reflexo do que é visto, e consequentemente, do que é sentido pelo narradorÉ também uma maneira contemporânea e multimidiática de perceber e registrar o cotidiano através de meios plurais: um olhar através de várias linguagens. Esta composição, livre e improvisada, faz referências à estética da vídeo-arte e não se compromete em apresentar uma narrativa linear, pois a maneira como organizamos nossos sentimentos também não o é. “Viajo porque preciso, volto porque te amo” nos transporta para um lugar que nem José Renato sabe onde fica, e o que interessa é, de fato, a imersão nas suas emoções que não se configuram um lugar materializado. Este é exatamente o ponto forte do filme: o descompromisso em, ao se arriscar por estradas tortas, não ter a obrigação de chegar lá.

Luís Lima é graduando em Comunicação Social – Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR e em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Parnaná – UFPR.

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