Leonera (Pablo Trapero, 2008)

Por Caroline dos Santos Rodrigues*

Atômicos créditos iniciais: um som de coro de crianças cantando aquela brincadeira de pertencimento que todo mundo conhece: “Onde está a casa? A casa está na rua. Onde está a rua? A rua está na cidade. Onde está a cidade?…” E assim por diante até chegar ao mundo, e desse ponto a canção se recomeça a partir da casa.

Na casa uma pessoa está morta, outra não morreu por pouco, e uma terceira, menos ferida, é rapidamente presa. Uma prisão kafkiana, a desta mulher; quem agrediu ou foi agredido encerra uma questão que não chega à diamantização de sentidos deste filme. Ao contrário, passa longe. E o que passam entre o diamante e esse longe são algumas enxurradas de afetos entre Júlia e o sobrevivente do acidente insólito. E no diamante, como em muito do recente cinema argentino, está a questão do corpo na expressão artística.

Todos os castigos e prazeres imediatamente trazidos ao corpo. Tortura, sexo livre, sensações imanentes – tudo muito presente em artes dos anos 60/70. Hoje o corpo não agüenta mais ser a teleologia de tantas forças; ou as forças de expressão contemporâneas se apresentam de antemão menos teleológicas. Em uma alquimia de tantos sentidos recorrentes, o que se sabe é que  o corpo não agüenta mais carregar em si a história dos sentimentos.

Essa transposição de sentidos do corpo na expressão artística dos anos 70 para cá é bastante discutida no Núcleo de Estudos da Subjetividade, na PUC-São Paulo, grupo de estudos do qual fazem parte Suely Rolnik, a maior pesquisadora da obra de Lygia Clark e Tunga, ligada à psicanálise, e Peter Pelbart, ligado à filosofia – fonte de algumas comparações tecidas nesse texto – sendo que o grupo promove uma busca incessante pela potência vida nos mais diversos campos do conhecimento, vida que, como diz o próprio Pelbart, nunca foi tão defendida como hoje. Muito defendida inclusive em filmes recentes como Santiago, Céu de Suely, e agora, com muita força, em Leonera, do argentino Pablo Trapero.

Presa kafkianamente. Tira toda a roupa na revista da cadeia e de repente está grávida. A moça do cabelão tingido vai pra jaula das leoas – leonera em espanhol – a jaula das mães.

Como o artista da fome, um tanto menos sublime nesse momento, Júlia parece aguardar a morte. O artista da fome, enjaulado no circo, não come porque nada lhe instiga a comer. Então espera a morte pela fome. Em paralelo nada instiga Júlia a viver. Chamaríamos ela de artista da vida? Não agora, não ainda.

O artista da fome é a suma da fragilidade do corpo, seco até o limite, preso em uma jaula que, após sua morte, será a jaula de uma pantera viva, forte, assustadora. A vontade de potência do animal caçador atrai muito mais curiosos para o circo do que a fragilidade do corpo humano. A vantagem de Júlia sobre o artista da fome, tomando os rumos de defesa da vida como norte, é um dispositivo mágico que garante a sobrevivência da vontade-engrenagem: devir leoa. A explosão do corpo cansado talvez seja a única janela aberta na jaula kafkiana. A maternidade como explosão. O filho vem, o cabelo é cortado, o rosto se apresenta, o corpo é mais forte, até deixar de ser suporte emocional das crises de todo um sistema judicial desumano.  Quando tomam seu filho pra fora das grades, Júlia simplesmente abandona a prisão e foge com o menino para o Chile, pelo rio. Devir animal pelo afeto. Devir loucura na inocência.

A grande vantagem que ter um filho dá a Júlia no jogo da vida não é a da consistência psicológica, ideológica ou mesmo social. O filho dá a ela o transbordamento. A mulher nunca tão extravasada, ao mesmo tempo em que perfeitamente cabendo nela mesma. A mulher enchente, torrente, chuva de um mês inteiro. A leoa que extravasa. Tão extravasada que sublima ao incontestável, espaço do céu onde voam os pássaros livres, libertação das mentes criadoras: Santiago, Suely, todos os povos de Glauber. Devir leão dentro da jaula. E devir pássaro abraçando o mundo enquanto voa solitário.

Como em Kafka, a crise é ainda a das estruturas maquínicas de poder.  Mas a esse desumano, Júlia responde com o inumano: o corpo que desaparece na imagem final não o faz em meio à multidão com a câmera parada, como na estética socialmente criada no neo-realismo italiano, e consolidada afetivamente em alguns cinemas humanistas. Aqui é a câmera quem se retira, deixando o corpo viver no seu não-pertencimento. A mulher desce do barco com seu filho, mas a câmera não, nunca pisará na margem que Júlia escolheu para si. O barco se movimenta na direção de outros passageiros que farão viagens como essa, trazendo a câmera de volta ao rio. Travelling out. Viajando pra fora.  Deixar viver foi a opção estética.

Em defesa da vida, o corpo de Júlia não mais recebe os sentidos do mundo. Ele simplesmente pára de pertencer ao mundo que gera esses sentidos agressores. Some pelo inumano, em busca de outro humano. Não tem casa, rua, cidade ou país em que Júlia caiba. Ela só cabe nela mesma.

*Caroline dos Santos Rodrigues é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).


Um dos contos síntese da obra de Kafka, analisado por Pelbart como sintoma artístico do definhamento do corpo.

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