Glauber Rocha e Pasolini: quando o primeiro e o terceiro mundo se confundem no cinema

1.      INTRODUÇÃO

Desejei começar a pesquisa de forma a me cercar de amplo material teórico que pudesse lançar bases para o meu pensamento, o qual consiste em aproximar a cinematografia de dois cineastas-poetas, contemporâneos entre si e de linguagens e estéticas semelhantes e influentes cada qual no cinema do outro: Glauber Rocha e Pier Paolo Pasolini.

Busquei em livros de variados assuntos, desde semiótica às análises fílmicas, sempre gerenciando meu olhar em busca do que interessava à minha pesquisa. Vi nos filmes “Deus e o Diabo na terra do sol” e “O Evangelho segundo São Mateus” pontos convergentes que podem ser analisáveis segundo várias perspectivas: políticas, histórico-sociais, estéticas, e assim, construir uma sólida argumentação em torno da aproximação dos cinemas de ambos.

Delimitar a persona de cada cineasta: suas ideologias políticas, ataques e defesas, e parâmetros artísticos, as teorizações do cinema, cada qual como teórico e realizador de suma importância, também foi essencial para a construção de uma idéia. Pensar um Pasolini dissociado de seu “cinema de poesia” e de suas concepções sobre a esquerda é pensar superficialmente sua obra, e não conseguir ver no seu Cristo um rebelde revolucionário. Assim como pensar Glauber é ter de pensar a defesa do cinema nacional explorada no “Estétyka da fome”, manifesto que permeia tanto seu cinema, quanto o do Cinema Novo em si. É estar atento aos entremeios de um cinema pautado no simbolismo da ideologia, do engajamento, da poesia, frame a frame. O que se pode ver na tela é o subjetivismo de pensadores do cinema, sobretudo, no âmbito político-social. São investigadores da imagem, profetas da linguagem, e sensíveis às mudanças econômico-sociais contemporâneas às suas produções.

2.      PASOLINI: A relação com o primitivo

Pier Paolo Pasolini nasceu em 5 de março de 1922, em Bolonha. Pensador, poeta, cineasta, pintor, esquerdista, filiado ao PCI (Partido Comunista Italiano), sendo expulso depois acusado de subversão. Uma obra firmada na pobreza, na miséria, no simbolismo, nos im-signos, de sua teoria, o que há nessa obra que se assemelha a cineastas do Terceiro Mundo especificamente a Glauber Rocha? Pasolini era um recusado, um poeta que a seu mundo, à sua contemporaneidade soube avaliar, criticar e dar soluções aos problemas do avanço do neo-capitalismo na Itália, que a tornava homogênea e destituída de características próprias, como por exemplo os dialetos. Pasolini soube, em seu cinema, denunciar os neo-problemas com o neo-capitalismo avançando na Itália. Em “Comizi di amore”, ele trata da sexualidade, os tabus e liberações dentre os jovens burgueses e pobres. O que se constata é:

“A mesma ignorância, conformismo, medos e preconceitos sexuais de vinte ou cinqüenta ou quinhentos anos antes, contrariando assim qualquer expectativa otimista de que os avanços econômicos do capitalismo na Itália viriam acompanhados de uma evolução paralela na ordem da cultura e dos costumes”. (LAHUD: 1993, 21-22)

Dos jovens, Pasolini sai em defesa dos “subproletários”, o primitivismo livre de qualquer culpa moral, ou ideológica, por serem puros e destituídos da escolha, como ele mesmo diz:

“Pode-se dizer que quase sempre são psicologicamente muito sadios, por estarem próximos da integridade natural: sua vitalidade é perfeitamente disponível. Dada sua extrema insegurança econômica e sua extrema insegurança intelectual (são freqüentemente analfabetos), eles podem seguir qualquer direção (…) são ideologicamente muito influenciáveis e instáveis. Entretanto, sendo menos reprimidos do que os outros pelo falso moralismo da educação burguesa, são, em geral e individualmente, mais transparentes do que os outros”. (PASOLINI apud LAHUD: 1993, 32)

É, pois, o desejo do homem civilizado pelo primitivismo dos subdesenvolvidos, que está expresso na afirmação acima, e por transpor às telas de seu cinema esse analfabetismo, a miserabilidade, a expressão da exploração burguesa, que Pier Paolo Pasolini se aproxima tanto do cinema terceiro-mundista de forma incisiva, lasciva, mas como homem consciente do uso dessas representações, forma de lutar intelectual e imagéticamente contra a opressão burguesa e capitalista que assolava a Itália à sua época. Todavia, Glauber Rocha o ataca, e vê nessa preferência pelo subdesenvolvido, forma de subversão, o prazer fascista do homem civilizado pelo homem primitivo.

“Pasolini procurava no Terceiro Mundo um álibi para a sua perversão (…) o problema da fascinação pela herança fascista, os grandes ballets contorcionistas de um homem vindo do campo, de uma Civilização arcaica, e que utiliza várias linguagens (a literatura, o cinema) para sublimar, disfarçar e enfim, com Salò, atingir (…) o prazer fascista” (ROCHA: 2006, 286)

Glauber ainda acusava e não excluía a opção sexual do cineasta italiano, como que ordenador dessa preferência, a sua homossexualidade tornando-o subversivo devido ao “fluxo amoroso” que se instaurava em sua linguagem (a exposição do homem arcaico na tela) e defesa (o homem primitivo como puro e transparente).

No entanto, a comunhão entre Glauber e Pasolini é muito maior que as ressalvas de uma aproximação hermética e confundível às vezes. Os im-signos de Pasolini, que representam o subjetivo expresso na tela, baseado em processos irracionais como o sonho, a comunicação e a memória, a partir de imagens intencionais, não-naturais, significantes e inventadas, podem ser encontradas na obra e no discurso do cineasta brasileiro:

“tudo o que o homem faz culturalmente ele está racionalizando a informação que a natureza dá; então de forma que você concretiza coisas que em si na natureza já são uma metáfora” (apud GERBER: 1982, 221)

É através dessas metáforas que se enveredam esses dois cineastas-poetas a transformarem as reações do inconsciente em imagens na tela, revertendo-as em bandeira na luta contra a opressão, a alienação, a exploração e contra o decadentismo de ideologias estáticas, imutáveis.

3.      GLAUBER: Metáforas da (r)evolução.

Nascido em 4 de março no ano de  1939, Glauber Rocha sempre polemizou questões, falou abertamente o que pensava, inovou, influenciou, metaforizou para não ser censurado, para não ser preso, para não ser morto, mas sobretudo, para universalizar.

É através dos símbolos, da utilização da linguagem metaforizada, que Glauber visa alcançar a universalidade, e trazer a seu cinema a carga de perenidade e funcionalidade histórica, embutindo-o de significados que possam agir inconscientemente para se chegar à revolução (o mar na cena final de “Deus e o Diabo”). A carga de abstração de sua obra é, portanto, forma de sacralizar o cinema, os temas regionais-universalizantes, que falam do homem enquanto indivíduo, mas vinculado à sua terra, o homem oprimido e injustiçado.

“O “fato fílmico” tem uma realidade própria, através da qual passam os símbolos que portam significações próprias a uma cultura ou a várias culturas” (GERBER: 1983, 85)

E para Glauber é preciso:

“ler bem as linguagem que o cinema fala: a arquitetura do ritmo e da plástica, as leis da imagem em movimento, o sentido de captação na imagem fictícia, dos fatos reais ou dos fatos reais transubstanciados em poesia” (apud GERBER: 1983, 86)

Como se pode ver no discurso de Pasolini tendendo mais à semiologia, em “Empirismo herege”:

“ele (o autor de cinema) tem que retirar do caos o im-signo, torná-lo possível e pressupô-lo como sistematizado num dicionário dos im-signos significativos (mímica, ambiente, (sonho, memória); tem que realizar depois a operação do escritor; isto é, acrescentar a tal ou tal im-signo puramente morfológico a qualidade expressiva individual.” (PASOLINI: 1982, 139)

Ambos como criadores de imagens embasadas nos signos dispostos pela natureza, signos primitivos intrínsecos ao humano: os sonhos, as memórias… Tudo disposto e ordenado de forma a ser lido e metaforizado pela imagem em movimento, pela universalização da linguagem cinematográfica sempre onipresente no cinema dos dois cineastas-poetas. São, sobretudo, meios de se chegar à aproximação do homem ao cinema, como que este a serviço sublime da representação do humano, a traduzir seu inconsciente, seus signos, seus símbolos, sua criação.

4.      O EVANGELHO SEGUNDO SÃO MATEUS E DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

O que há em “O Evangelho Segundo São Mateus” que transpõe à tela a opressão e a condenação do homem subdesenvolvido? Há, sobretudo, a partir do discurso do Cristo, a revelia do mundo pobre, contra a lei dos opressores, que instauram nos oprimidos a subserviência e a alienação. Quanto ao Cristo de Pasolini, Glauber declarou em seu livro “O século do cinema”:

“Seu Cristo – que prega a intolerância antes da piedade, que prega a violência antes da complacência, que se revolta contra o Pai quando, na Cruz, se vê desamparado – é o porta-voz de nova moral: a moral do homem subdesenvolvido consciente.

O Cristo de Pasolini é um estigma contra a alienação: alienação é a piedade, a complacência, a hipocrisia, o tabu sexual, o servilismo, todos comportamentos que caracterizam o homem subdesenvolvido, ou melhor, o homem colonizado” (ROCHA: 2006, 188)

Vê-se a consciência do homem pelo seu subdesenvolvimento através das pregações de punição de um Cristo inconformado, revolucionário, consciente e semelhante a Manuel e a Corisco de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, como homens-frutos da tragédia da colonização. A fome exposta nas duas obras é caminho à revolta, tanto na pregação do Cristo profético e incendiador, quanto no crime, no cangaço, de Corisco e Manuel, vingadores contra o sistema de opressão sobre Monte Santo, sobre o Terceiro Mundo em si.

“Como tinha filmado Deus e o diabo… quase ao mesmo tempo, o filme de Pasolini me revelava comuns identidades tribais, bárbaras…” (ROCHA: 2006, 256)

A barbaridade a qual Glauber se refere está relacionada ao fato de tanto o Cristo quanto Corisco serem personagens-temas do mundo diegético, capazes de incitar a mudança, cada qual da sua forma, através do enfrentamento aos poderosos e opressores. É no terceiro-mundo nas duas obras que Glauber vê a possibilidade de se aproximar dois filmes cujas linguagens revolucionárias traduzidas por in-signos a negação do homem explorado. No entanto, Glauber Rocha vê a barbaridade de Pasolini anulada por outros aspectos, tais como a limitação de um esquerdista filiado ao Partido Comunista numa época de crise ideológica:

“A selvageria, a barbárie, a anarquia pasoliniana eram dominadas pela disciplina marxista, pelo misticismo católico, tornando-se então uma barbárie maquilada”. (ROCHA: 2006, 283)

Apesar disso, Pasolini não censuraria seu Cristo, nem deixaria de pôr as mazelas da sociedade na boca dele, o Cristo-Che Guevara, embebido de ímpeto, falando das subversões de um modelo social e cultural instaurado pelo neo-capitalismo na Itália dos anos 60, só que transposto para Jerusalém. Seria a voz do próprio intelectual Pier Paolo, que através da Subjetiva Indireta Livre, impregna o personagem e o filme à sua visão e maneira: o in-signo da expressiva individual. No entanto é através da consciência da crise marxista, do decadentismo da ideologia, e do avanço da industrialização e do consumismo que o intelectual Pasolini insere um Cristo que não é piedade, mas divinização da contrariedade e da acusação. Assim como Glauber insere no cangaço a busca pela justiça e os meios de encontrá-la, conforme teoriza Ismail Xavier em “Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome”. Dessa obra, são levantadas características de “Deus e o Diabo” que podem ser transpostas ao filme de Pasolini tais como quando Ismail diz:

“O filme não procura a reprodução naturalista dos fatos, transformados em espetáculo (…) procura uma linguagem figurativa que atualiza, na própria textura da imagem e som, reflexão sobre tais fatos”. (XAVIER: 2007, 112)

A situação dos personagens em ambientes inóspitos, amplos, em ruínas (em “O Evangelho”), a fotografia estourada, em preto e branco, uma câmera ora tátil, ora icônica e contemplativa, frontal, a montagem intelectual de Einsenstein, a importância e o sobrecarrego dos diálogos (tanto na pregação de Cristo quanto no monólogo de Corisco sobre Virgulino), o uso de não-atores como representação do povo, a fratura do tempo dado pela montagem em Manuel-beato e Jesus-pregador, seguido de planos mais longos na fase Manuel-cangaceiro e Jesus-prisioneiro, personagens de duas cabeças: um Corisco matando, outro pensando, um Cristo punitivo e outro Cristo piedoso, a dicotomia: erudito e popular como trilha sonora, Villa Lobos e a voz do cantador, a tradição do cordel, em “Deus e o Diabo”, e bachianas e canto africano, em “O Evangelho”, o relato político inspirado no cordel em um, no evangelho, no outro filme, a subjetiva indireta livre, o cinema de poesia servindo de caracterização dos diretores como autores cinematográficos. Outras semelhanças pontuais podem ser identificáveis nos planos: um close na decomposição de um cavalo no filme de Glauber, e o crânio do animal já exposto, no filme de Pasolini, por que não dizer das características em comuns do cego Júlio e do anjo Gabriel? Ambos como condutores dos personagens, e de certa forma, da narrativa em ambos os filmes, o cego Júlio levando Rosa e Manuel até Corisco, forma de buscar a justiça através da violência, enquanto o anjo como anunciador da vinda de Jesus a José, e também, na parte final, o locutor da ressurreição do Cristo-Che.

Sobre o subdesenvolvimento exposto em tais filmes, a luta pela ideologia perdida, a busca pela justiça, a contemporaneidade da crise marxista, a força da palavra, da imagem, do símbolo de personagens oprimidos, enfim, tudo através da exposição do mundo de Glauber e Pasolini, anunciadores, proféticos e poetas, que viveram como cristos subversivos e como coriscos violentos.

IMAGENS EXEMPLIFICADORAS

Sobre as imagens comparativas (do lado esquerdo pertencentes ao filme de Pasolini; do lado direito, ao filme de Glauber Rocha): em 1, a semelhança de planos, o animal já em carcaça em “O Evangelho”, e o animal se decompondo, em “Deus e o Diabo”; em 2, o Cristo-Che de Pasolini, representado por Enrique Irazoqui, e, do lado direito, Corisco justiceiro (Othon Bastos); em 3, a comparação de personagens, o Anjo Gabriel, que anuncia o nascimento e a ressurreição de Cristo, conduzindo os personagens, e o cego Júlio, responsável por levar Rosa e Manuel até Corisco e Dadá; em 4, o universo inóspito, o ambiente desértico, a arena, o palco desses personagens simbólicos, em ambos os filmes.

5.      CONCLUSÃO

Pasolini e Glauber são o cinema vivo, de denúncia, de crítica, de representação e descontentamento. Estiveram, em seus tempos, condenados à cruz e ao paraíso, numa dicotomia com relação ao entendimento e à aceitação de suas obras, ora aclamados, ora odiados. Faziam-se entender através do subdesenvolvimento passado pela imagem, associado à forma, à linguagem cinematográfica que não podia ser mais a linguagem convencional, burguesa, clássica, e sim, através da linguagem opaca e simbólica.

Expunham em seus filmes, o homem face a face do seu inconsciente, a partir do primitivismo, da construção do Ocidente (filmes de Pasolini como “Édipo” e “Medéia”), e do microcosmo universalizante (o Eldorado de Glauber em “Terra em Transe” e o sertão de “Deus e o Diabo”).

Contestadores e inquietos, para eles, o cinema era a poesia, e a poesia, a realidade: a poesia estava na própria realidade, que ao ser traduzida por símbolos para o cinema, carregava-se de perenidade, enfim, no cinema de Pasolini e Glauber resta o confronto homem-linguagem, linguagem-realidade, metáfora-homem, de forma a pôr em xeque o cinema de fruição.

São em obras como “Deus e o Diabo” e “O Evangelho” que se clareia a influência de um cineasta na obra do outro, não só como feitores audiovisuais, mas como pensadores, esquerdistas, poetas, enfim, homens das artes, dos estudos do homem, o homem que muda e questiona o mundo.

6.      BIBLIOGRAFIA

AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini . São Paulo: Cosac Naify, 2002.

AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Campinas: Papirus, 2004.

GERBER, Raquel. O mito da civilização atlântica: Glauber Rocha, cinema, política e a estética do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1982.

LAHUD, Michel. A vida clara: linguagens e realidades segundo Pasolini. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

MONZANI, Josette Maria Alves de Souza. Gênese de Deus e o diabo na terra do sol. São Paulo: Annablume; Fapesp; Salvador: Fundação Gregório de Mattos; UFBA, 2005.

PASOLINI, Pier. Empirismo herético. Lisboa: Minerva, 1982.

ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na Terra do Sol. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 1965.

ROCHA, Glauber. O século do cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

XAVIER, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naify: 2007.

Matheus Chiaratti é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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