O Evangelho do Coiote: a metalinguagem nos quadrinhos
Por Gabriel Costa Correia*
Grant Morrison faz parte da geração de roteiristas britânicos que, a partir dos anos 80, revolucionou os quadrinhos comerciais, quebrando paradigmas há muito estabelecidos pela indústria ao reinventar personagens obscuros e transformá-los em sucessos de venda, sem, para isso, abdicarem de suas concepções artísticas em relação ao potencial que o formato quadrinhos possuía. Alan Moore deu início a essa onda de novos escritores trabalhando o personagem Monstro do Pântano para a editora norte-americana DC Comics e o transformando num enorme sucesso de vendas, o que animou a editora a apostar em outros novos talentos dos quadrinhos britânicos como Neil Gaiman, Grant Morrison e outros.
O Homem Animal é um personagem criado pelo roteirista Dave Wood e pelo desenhista Carmine Infantino na revista Strange Adventures #180 em Setembro de 1965. Nunca alcançou a mesma popularidade de outros personagens da editora DC, o que fez com que o mesmo ficasse em segundo plano, “engavetado” por algumas décadas antes que o escocês Grant Morrison fosse contratado pela editora e escolhesse o personagem para trabalhar numa nova revista. Essa revista se chamou Animal Man e em suas quatro primeiras edições Morrison revolucionou o personagem, explorando seus poderes ao extremo e abrindo caminho para a inserção na trama de elementos muito ricos em relação a outras obras da época. Tais elementos como discussões sobre problemas ambientais, utilização de animais como cobaias em experimentos científicos, vegetarianismo, a busca do personagem principal pelo reconhecimento ao status de herói (numa chave irônica sempre) e, principalmente, a metalinguagem nortearam as vinte e seis edições escritas por Morrison na revista. E é sobre o início da viagem metalingüística de Grant Morrison no Homem Animal que o Evangelho do Coiote trata.
Lançada em Dezembro de 1988, logo após o término do primeiro arco escrito por Morrison, que foi da edição 1 a 4 da publicação americana e funcionou como uma espécie de “ensaio” do roteirista escocês sobre as possibilidades criativas proporcionadas pelo personagem, o Evangelho do Coiote lançou a pedra fundamental que faria da passagem de Grant Morrison pela revista um marco na história dos quadrinhos. A história começa no Vale da Morte, ao norte do deserto de Mojave, na Califórnia, com um caminhão cruzando a estrada enquanto o leitor é introduzido no diálogo entre um caminhoneiro e uma caroneira que conversam na boléia. O clima é descontraído, os dois cantam animadamente quando repentinamente algo surge na estrada e é atropelado. Ambos ficam assustados, mas o caminhoneiro prefere não parar e segue em frente sem olhar para trás. Na seqüência seguinte uma narração em off descreve a dor e as sensações de um organismo que se auto-regenera após o atropelamento. Então, o tal organismo é mostrado já regenerado, em pé, olhando diretamente para o leitor. Esse personagem recém introduzido na história se assemelha muito a um famoso personagem dos desenhos animados, o Coiote (no original, Wile E. Coiote) do desenho do Papa-Léguas (no original, Road-Runner) dos estúdios Warner Bros. Entretanto, nessa realidade ele é retratado por Chas Truog com um traço mais realista, sujo.
No decorrer da trama, o leitor fica sabendo que o “Coiote” se chama Astuto e objetiva entregar para o Homem-Animal uma espécie de papiro contendo caracteres estranhos que narra sua jornada, mostrada na revista por meio de um flashback. Resumidamente, ele vivia numa realidade paralela em que personagens de desenhos matavam uns aos outros sem questionamentos ou razões maiores, visto que possuíam corpos que se regeneravam, isso até contestar aquela lógica que regia suas vidas e decidir ir reclamar diretamente com o deus daquele mundo, o qual se zanga com as queixas dele e resolve enviá-lo para a chamada “segunda realidade” onde ganha um novo corpo, conhece a dor e continua com a triste sina de sempre se regenerar após ter seu corpo danificado. Buddy Baker, alter ego do Homem-Animal, não compreende o que está escrito no papiro e em seguida Astuto é atingido no coração pelo caminhoneiro que o havia atropelado no início da história. Após ser baleado, espanta-se com o fato de finalmente não sentir dor e o sangue que sai do ferimento tem um claro aspecto de tinta. Na seqüência final da história, o “Coiote” padece nos braços do Homem-Animal enquanto as transições quadro a quadro da última página funcionam como uma decupagem cinematográfica, saindo de um close no rosto do personagem agonizante e abrindo gradativamente até um plano geral que enquadra o cruzamento no meio da estrada onde são vistos Astuto, o Homem-Animal e uma mão gigante que segura um pincel.
O caráter insólito dessa edição está estritamente ligado à metalinguagem, visto que Morrison opta por ir desvendando aos poucos, no decorrer de toda a saga, os mecanismos por trás da obra em questão. E nesse ponto, o marco inicial é o Evangelho do Coiote. Grant Morrison parte da inserção de um personagem oriundo de outra mídia, ou realidade como se refere o roteirista, que acaba interagindo com o novo meio no qual é inserido, para criar uma metáfora para discutir as particularidades dos quadrinhos, e principalmente algumas tendências de estilo que estavam engessando as histórias da época, como a violência exagerada e a busca por um realismo falso e cientificista. A inserção do personagem externo é fundamental para que Morrison alcance os fins previamente almejados, tanto que o roteirista chega a deixar o protagonista da revista em segundo plano, visando um aprofundamento maior na construção do personagem Astuto. Também marcam a edição a introdução do conceito de “segunda realidade” que mais tarde seria melhor desenvolvido, e do “Deus” que impõe sua vontade ao brincar com os personagens e fazer o que bem entende deles, óbvia referência aos artistas, no caso específico, roteiristas e desenhistas.
A história de Morrison fica ainda mais interessante graças à habilidade narrativa de Chas Truog e Doug Hazlewood, que utilizando predominantemente transições “tema a tema” (os conceitos de transições quadro a quadro utilizados são de Scott McCloud em Desvendando os Quadrinhos) mantém laços estreitos com a narrativa cinematográfica, “decupando” as cenas de maneira clara e ágil. Destaca-se também a seqüência do flashback da vida passada de Astuto em que Truog e Hazlewood utilizam um traço menos realista, de curvas e linhas abertas reproduzindo uma estética mais cartunesca e infantil, dada a necessidade de distinção entre os dois “mundos” por onde Astuto transitou. A capa desenhada por Brian Bolland é um atrativo à parte, mostrando o Homem-Animal aparentemente desmaiado sobre uma página ainda não arte-finalizada de alguma história em quadrinhos enquanto uma mão gigante termina de finalizar e colorir suas pernas.
A saga do Homem-Animal foi publicada integralmente somente uma vez no Brasil, pela editora Abril na revista DC 2000. No meio dos anos noventa, a editora Brainstorm tentou republicar todo o material numa série de encadernados, mas parou após o lançamento do segundo encadernado, não completando a saga. Atualmente os direitos de publicação desse material no Brasil estão com a editora Pixel que já prometeu para breve uma republicação da saga do Homem-Animal.
Após o Homem-Animal, Grant Morrison escreveu sua obra-prima autoral, “Os Invisíveis”, na qual utilizou uma gama enorme de referências a outras obras, culturas e ciências. A série foi um sucesso de crítica e vendas. Atualmente, é o principal roteirista da editora DC Comics e toma decisões, junto aos editores, sobre o futuro de personagens como Super-Homem, Mulher-Maravilha, Batman e tantos outros.
*Gabriel Costa Correia é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).