Millennium Mambo (Hou Hsiao-hsien, 2001)

Todos os signos do prólogo desse filme buscam criar uma atmosfera de leveza, fixar um instante de delicadeza, fazer atravessar em nossos sentidos uma espécie de alegria nostálgica: o techno suavemente melancólico de Lim Giong, o ambiente de um túnel banhado numa luz de tom azulado e uma bela, belíssima jovem a caminhar em câmera lenta, o cabelo esvoaçante, o cigarro vaporoso. Vez por outra ela olha para trás: olha para seu passado sem deixar de marchar, leve, decidida e aliviada neste túnel que é sua vida. Ouvimos a voz em off da jovem e ficamos sabendo que aquele momento epifânico fora vivido há dez anos, em 2001, quando ela rompera com um namoro conturbado. Ou seja: ela olha para si mesma com a mesma ternura distanciada que, segundo se depreende das operações formais do diretor, devemos também nós, espectadores, olharmos.  Mas, é preciso acrescentar, essas miradas para trás não denotam apenas um flerte com o passado: ao tomar esta ação, ela olha também para nós, interpela nossos desejos recônditos. E – ouso aqui falar no plural – de fato desejamos reconditamente “habitar” não talvez aquele túnel, mas a sensação de fugaz leveza, a atmosfera talvez triste, mas sumamente acolhedora, que a representação propicia. Estamos, pois, diante de um cinema que, entrelaçando os signos segundo uma “lógica da sensação” (Deleuze), nos arrebata de súbito – sem, contudo, vetar nossa faculdade de apreciação crítica.

Cena do filme Millenium Mambo
Cena do filme "Millennium Mambo"

Quem acha crucial, nas obras artísticas, a antiguíssima exigência de harmonia entre forma e fundo, considerará este Millennium mambo (2001), de Hou Hsiao-hsien, já a partir do prólogo acima comentado, uma obra-prima. De fato, Hou se aproxima de sua matéria de uma maneira quase fenomenológica: amorosa e desinteressadamente sonda-a, sente sua pulsação, sem recomendá-la ou condená-la. O que resulta dessa espécie de simbiose entre sujeito e matéria é uma mímesis depurada tanto de um naturalismo tosco quanto de um artificialismo rebarbativo. Poucas vezes, no cinema, tivemos uma sensação tão intensa de realidade viva quanto nos filmes deste chinês.

Não é esse o espaço mais adequado para se discutir o intrincado problema do realismo no cinema. Contentemo-nos em trazer à luz apenas o caso específico de Hou Hsiao-hsien. O realismo de Hou, tal como o entendo, não parte de nenhuma crença na vocação intrínseca do cinema para o realismo (como queria Bazin) e, assim, está longe de certas formas de neo-realismo mal digerido tão comuns, por exemplo, em filmes brasileiros; ao contrário, como em Kiarostami, o realismo do diretor de Millennium mambo emerge de operações conscientes e artificiais, que rompem com convencionalismos bastante assentados. Uma dessas operações, como bem observou o crítico Ruy Gardnier, consiste em dar a entender de que o quadro é sempre maior e mais sugestivo do que o enquadramento. Como sabemos, uma das marcas da representação clássica no cinema era fazer do enquadramento um absoluto, uma moldura fora da qual ou o mundo não existia ou não teria nenhum valor para a economia do filme. O espectador atento, nesta forma clássica de representação, deveria saber que cada elemento da mise-en-scène tem que possuir um valor funcional. Ora, a harmonia entre forma e fundo em Millennium mambo é de outra natureza; assim como a representação de Hou não é clássica porque o sentido transborda do enquadramento, sua mise-en-scène é atípica porque é “suja”, híbrida, caótica talvez; em Millenium mambo nossa visão tateia a mise-en-scène em busca de âncoras funcionais, mas ou tudo ali é funcional ou tudo ali é puro acaso. Ou seja: estamos ali num limbo de excesso, de embriaguez, de delírio sensorial.

Cena do filme Millenium Mambo
Cena do filme "Millennium Mambo"

O cinema de Hou, portanto, supõe que nos desarmemos de juízos pré-concebidos e participemos da festa. E no caso de Millennium mambo, “festa” não é uma simples metáfora, pois a maior parte do filme se passa dentro de danceterias de Taipei, onde seguimos os passos noturnos de Vicky (Shu Qi), dividida entre o descompromissado e agressivo DJ Hao-hao (Chun-hao Tuan) e o taciturno e paternalista Jack (Jack Kao). Temos ali não um triângulo amoroso eivado de conflitos, mas uma história deliberadamente pobre de peripécias, de argumento magro, porém rica daquela intensidade que Walter Benjamin chama, referindo-se à experiência surrealista, de “iluminações profanas”. Só que enquanto os surrealistas de Benjamin, com suas iluminações profanas, mobilizavam as energias da embriaguez para a revolução, os personagens de Millenium mambo, pós-modernos pós-utópicos, querem é gozar, descartando o padrão de vida longeva pelo de vida intensa. A câmera de Hou entra nesse jogo, se perde nesse jogo, mas nunca chega a chancelar esta postura hedônica perante a vida. Seu lugar é o “entre”, o “in-between” de que fala o teórico Homi Bhabha.

Cena do filme Millenium Mambo
Cena do filme "Millennium Mambo"

Essa força embriagante de Millennium mambo, que muita gente inteligente confundiu com esteticismo, exige no mínimo que assistamos ao filme duas vezes: uma mais para embarcar na proposta, outra mais para pensá-la. O que certa crítica sentiu falta no filme, para tomá-lo por frívolo, foi de um desenvolvimento psicológico que desse um delineamento psíquico e moral nítido à protagonista, conforme reza a cartilha de Hollywood. Em geral, filmes padrões sobre jovens transviados usam a análise psicológica em vista de um epílogo admonitório. Entre os poucos que fogem a essa lógica, podemos citar, além Hou Hsiao-hsien, Gus van Sant e Tsai Ming Liang. Segundo Walter Benjamin, em seu célebre texto sobre o narrador, “quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência”. Isto é também o que ocorre em filmes como este de Hou, em que a profundidade é substituída pela intensidade, e o fluxo causal por ilhas de delírio (diga-se de passagem: delírio da cena, captado em geral por planos demorados, e não delírio forjado, produzido pela facilidade de uma montagem frenética, de takes breves, à maneira consagrada pela MTV). Essa operação, ao contrário de fazer da protagonista um títere insosso, aproxima-a do centro do nosso interesse. Mas não se entenda este interesse como torcida: o realismo peculiar de Hou propõe uma curiosidade pelos destinos alheios, mesmo uma vivência dentro do destino alheio, mas tudo isto com certo distanciamento, uma vez que não há heróis para se amar nem vilões para se odiar.

Wanderson Lima é poeta e ensaísta. Professor de literatura da Universidade Estadual do Piauí – UESPI e doutorando em Literatura Comparada pela UFRN. É co-editor da revista dEsenrEdoS (http://www.desenredos.com.br/) e mantém o blog O Fazedor (http://blogdowandersonlima.blogspot.com/)

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