Loucura: desarranjo mental; demência; psicose. Estado compatível aos protagonistas de Ilha do Medo e Vício Frenético, ainda que em abordagens completamente distintas.
Da neblina cerrada, desponta a balsa: trata-se do plano de abertura de Ilha do Medo, de Martin Scorsese. Nada se vê além, a balsa é o único resquício de um mundo exterior, e ao invés de vemo-la adentrar a névoa, afastando-se, portanto, do olhar da câmera, temos um ponto de vista interno a esse novo mundo, com a embarcação vindo em nossa direção. Estamos assim num universo à parte e pode-se dizer que, desde o princípio, inseridos na loucura. O corte nos leva a um plano fechado do protagonista Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) já com um semblante perturbado graças à fobia d’água. Ele sai do interior da balsa, e dá de cara com Chuck Aule (Mark Ruffalo), que se apresenta como o parceiro designado para o caso.
Encarregado de investigar o desaparecimento de uma paciente num hospital psiquiátrico de segurança máxima, localizado numa ilha isolada, Daniels logo se depara com seus próprios traumas e passa a ter visões da falecida esposa, que o aconselha a abandonar o caso. O fato de ele estar na ilha, porém, não é à toa: Daniels procura um interno incendiário, responsável pelo assassinato da mulher. As alucinações, no entanto, tornam-se mais e mais constantes, até o momento em que se esvai a noção do que é real ou imaginário, seja para o personagem ou para nós, público.
Já Vício Frenético, de Werner Herzog, se passa em Nova Orleans, no imediato período pós-Katrina. A foça natural, no entanto, parece ter desequilibrado não só o espaço físico, como também o próprio personagem vivido por Nicholas Cage. Ou seria o detetive Terence McDonagh mera consequencia/extensão da catástrofe? Pouco importa além do fato de que conceitos pré-estabelecidos implodem e dicotomias como bem e mal, moral e amoral, real e imaginário, simplesmente deixam de existir. Tudo vira um balaio de gato: o natural invade o urbano (jacarés a beira da estrada), realidade e alucinação coexistem, e não importa se apenas na mente do protagonista, já que é a partir dela que o filme nos é apresentado (as iguanas sobre a mesa), a cidade é filmada como uma área cercada, com seus becos, pontes e fios de postes, ou seja, dali não há escapatória.
É num beco, aliás, que se dá a cena síntese do filme, aquela que resume a trajetória do personagem: a espreita. O detetive aborda um casal saindo da boate, alegando desconfiar do porte de drogas – a cena inicia numa situação pré-estabelecida em que o protagonista impõe sua posição superior aos demais personagens. Porém, a ânsia de McDonagh por encontrar algum narcótico, que ele confisca para uso próprio, acaba lhe entregando. Ele inicia assim um mergulho na busca por algo que sustente o vício, a alucinação. A garota percebe e lhe oferece a droga e o sexo. O policial superior de outrora dá lugar ao homem enlouquecido, o viciado incapaz de medir consequências. Em meio à transa dos dois, o acompanhante da garota, humilhado, tenta sair de fininho. McDonagh então saca a arma e, com um tiro para o alto, exige que o rapaz fique e assista. A loucura, ao mesmo tempo em que atinge a crueldade, encontra uma forma de restabelecimento para a posição inicial de “predador” que o personagem ocupara, criando assim uma síntese do percurso que o protagonista faz durante o filme.
A loucura dos personagens de Herzog e de Scorsese tem algo em comum: é cíclica. Se Nicholas Cage percorre o caminho posição estabelecida – mergulho/entrega/loucura – reestabelecimento da posição, descobrimos que DiCaprio tem resets, em determinado momento da trama. No entanto, o restante da abordagem é completamente oposta: se McDonagh adentra a insanidade inconsequente, flertando até mesmo com o cômico, a loucura de Teddy Daniels é trágica, inclusive por não propor um total restablishing das coisas (como faz o filme de Herzog, ainda que essa volta ao início ponha abaixo questões éticas e morais).
Voltemos então ao filme de Scorsese. Assim que Daniels adentra o hospital-presídio, uma sinistra senhora o encara fazendo-lhe um gesto que sugere silêncio. Oras, temos aparentemente só o exemplar inaugural das figuras assustadoras presentes naquele universo. Trata-se, no entanto, apenas do primeiro de uma série de pequenos indícios espalhados pelo roteiro de Laeta Kalogridis, e que justificam o turn-point presente no clímax. A pergunta que pode surgir ao término do filme é: se o espectador não é “enganado” (mas, e daí se o fosse?) e há a reviravolta “obrigatória” em filmes do gênero, por que a experiência do suspense em Ilha do Medo pode parecer frustrante? Simplesmente, porque Scorsese não ambiciona o rápido momento do susto, e sim a construção do suspense em seu significado mais primordial de suspensão de um acontecimento, de dilatação de uma certa situação. Assim, quando vemos o protagonista num momento de perseguição na ala mais perigosa do presídio, pouco importa o encontro dele com seu oponente (que aliás, é boicotado pelo próprio diretor, já que é possível anteciparmos o local desse encontro), mas sim a construção das imagens, do tempo de cada uma delas e o posicionamento dos planos, ou seja, o que importa a Scorsese é o caminho, e não o ponto final, que aliás, ele faz questão de frustrar. O suspense de Scorsese é frustrante justamente por não ter pontos onde extravasar, ele simplesmente existe e se potencializa de uma cena à outra.
Paralela à essa construção, está o desenrolar da insanidade do personagem, afinal, tão crescente quanto a suspensão, só a loucura do detetive Daniels, que aumenta a cada corredor vazio, a cada ruído de fósforos riscados. Na fabricação desse estado intrinsecamente ligado ao espaço e clima, Scorsese utiliza-se de algums elementos típicos do gênero como closes repentinos e planos detalhes, sons abstratos ligados à audição reduzida (sons não diegéticos) e flashbacks, cuja natureza não se sabe fazer parte de um passado real ou imaginário. No entanto, o antagonismo entre sanidade e loucura insere-se de forma muito contundente num dos encontros entre marido e mulher. Estão no apartamento em Boston e da janela vê-se a rua. Mas, da janela ao lado vê-se um lago. Num instante, a esposa começa a esvair-se em sangue e água, ao mesmo tempo em que seu corpo arde em brasa. Do corpo volátil nos braços de Teddy Daniels, jorram elementos que pertencem à farsa criada pela mente, enquanto outros fazem parte da realidade, que só vamos encontrar de forma pura ao final do filme.
Se no filme de Herzog, sanidade e loucura coexistem de forma muito clara e bem marcada, muitas vezes uma forma quase física, para Scorsese ela está aliada ao estado de tensão-suspensão constante e à existência de um trauma, que responsável por criar esse estado cíclico do personagem, é também a única coisa capaz de rompê-lo. Ambos acreditam na insanidade como um mergulho, uma entrega, ainda que em Vício Frenético, o protagonista volte algumas vezes à superfície para uma tomada de ar, um respiro de realidade. Em Ilha do Medo isso não ocorre: trata-se de um salto certeiro em meio a sentimentos primários como culpa, medo e dor. Até pode haver volta, mas ela é sofrida, como o próprio filme comprova. Tanto que no plano final, mesmo sem neblina, não enchergamos nada além do horizonte e os domínios da própria ilha. Permanecemos, portanto, no território da loucura.
Alvaro André Zeini Cruz é graduando em Cinema pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP)