Henrique Dias Soares de Barros*
Neste ensaio pretendo falar sobre as escolhas do diretor e roteirista Daniel Ribeiro em termos de estrutura de roteiro para os filmes Café com leite [i] e Não quero voltar sozinho [ii]. Podem se identificar alguns traços comuns em ambos os filmes revelando um estilo de desenvolvimento narrativo diferencial tratando-se de curta-metragem.
No curta Café com leite conta-se a história de dois irmãos – Danilo e o garoto Lucas – que após a perda da mãe passam a viver juntos. As dificuldades apresentadas se baseiam na superação dessa perda familiar e na resolução da convivência conflituosa entre o caçula, o irmão mais velho e seu namorado.
Partes da história pregressa que envolvem o convívio de Danilo com os pais antes da morte destes, a relação entre os irmãos e o relacionamento com o namorado são pontos que ficam pouco claros, mas servem de base para as ações dos personagens.
O conflito principal se dá através do convívio de Danilo com Lucas, que nem sempre é fácil devido ao fato de uma grande carência afetiva surgir no caçula depois da morte dos pais. A aproximação entre eles é gradual e vai se dando através de um pequeno ato, que é esquentar o leite de maneira que ele não fique nem quente nem frio.
O irmão mais velho, não acostumado a lidar com crianças, passa a perceber a sensibilidade do caçula e entender um pouco as razões dos comportamentos. Este entendimento faz com que criem uma ligação mais próxima até o desfecho em que escolhe ficar com o irmão ao invés de deixá-lo com uma tia e viajar com o namorado.
Porém, parte dos conflitos criados permanece. O filme acaba, mas a história se mantém em andamento podendo ser completada de acordo com a forma de leitura dos espectadores.
Um outro curta de Daniel Ribeiro, Não quero voltar sozinho, estreou em Julho de 2010 no Festival Paulínia de Cinema, já ganhando alguns prêmios neste festival, inclusive o de Melhor Filme. Participou também de outros festivais e recebeu outras premiações, como o Coelho de Prata no 21º Festival Internacional de Curtas.
O filme narra a história de Leonardo, um menino cego de 15 anos, que após conhecer um aluno novo – Gabriel – começa uma amizade que se transforma em algo maior. Como amiga e confidente ele tem Giovana. As relações entre eles, desde a chegada de Gabriel até o desfecho, são exploradas no filme.
A escola aparece como cenário principal do curta e é o lugar onde se dão os inícios de conflito, sendo estes estendidos fisicamente até a casa de Leonardo. No seu quarto acontecem os ápices de tensão do filme: a aproximação entre os dois garotos, a descoberta desse afeto e o beijo final entre Leonardo e Gabriel. Os momentos mais leves de aproximação e as confidências com a amiga Giovana são expostos no colégio, embora o cenário funcione mais como um ambiente comum na adolescência do que como ponto determinante para a história.
A presença da família não é demonstrada, nem por meio de representação nem por meio de diálogo, uma vez que o foco está nas relações entre os estudantes, mais do que em todos os contatos da adolescência.
Giovana tem um afeto pelo amigo Leonardo que vai além da amizade, porém não é declarado. Há situações nas quais se abrem espaços para interpretações neste sentido, como o momento em que Leonardo pergunta se é bonito e ela responde que sim, ou quando ele fala que gosta de alguém e ela se enche de esperança, embora em nenhum dos casos haja correspondência direta. Quando Gabriel começa a se aproximar, a primeira reação de Giovana é favorável. No entanto, ao perceber que os dois estão ficando cada vez mais próximos a menina se afasta.
Leonardo percebe as coisas de outro jeito. Não nota a intenção de Giovana e aproxima-se de Gabriel motivado pela amizade que se transforma aos poucos. O momento em que cheira a blusa do novo amigo serve como ponto de conhecimento desse sentimento. O fato de Léo ser cego contribui para que ele não perceba algumas coisas que o espectador conhece, como o fato de Gabriel tê-lo visto cheirar sua blusa e os sorrisos e ciúmes de Giovana, tornando a construção entre história e personagem muito bem intrincada.
Gabriel permanece como uma incógnita, uma vez que ele é o personagem que menos se conhece. Suas ações não permitem conhecer sua personalidade, criando um personagem ambíguo. A cena em que ocorre o beijo com Leonardo gera uma confusão geral sobre suas intenções, tendo em vista que em nenhum outro momento fica claro um desejo maior em relação ao amigo.
O conflito menor do filme, que poderia ser esse auto-esclarecimento com relação a sexualidade de Léo é resolvido, porém várias brechas permanecem abertas. A relação com Giovana depois do beijo não é previsível, nem entre os dois garotos. Alguns resquícios da história pregressa também permeiam a história sem resolução. Isso gera uma impressão de que existem duas histórias, uma menor em extensão e complexidade que se resolve encaixada em uma maior e mais complexa que fica aberta.
Essa impressão criada por Daniel Ribeiro pode ser considerada um traço de estilo, que foge em parte das concepções mais ortodoxas de roteiro. Nestas, a história [iii] e o discurso [iv] se mantêm principalmente por meio de cenas [v] e se iniciam com a apresentação de um ou mais conflitos e terminam com a resolução destes, sob foco narrativo de um protagonista.
A escolha de vários protagonistas para um curta-metragem é considerada também como algo distinto, pois dificulta o desenvolvimento em pouco tempo de várias personalidades. Porém, nos casos vistos isto ocorre de maneira verossímil e não causa prejuízos ao entendimento e contar da história.
Dessa forma, as opções de roteiro, mesmo com leves fugas do modelo clássico de escrita narrativa, mantêm a diegese verossímil e conseguem desenvolver os personagens de forma satisfatória, podendo ser usadas como exemplo de estrutura opcional na confecção de roteiros de curta-metragem.
*Henrique Dias Soares de Barros é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
[i] Café com Leite. Dir. Daniel Ribeiro. Brasil: Lacuna Filmes, 2007.
[ii] Não quero voltar sozinho. Dir. Daniel Ribeiro. Brasil: Lacuna Filmes, 2010.
[iii] Sequência dos acontecimentos.
[iv] Meio (significante) pelo qual a história é contada.
[v] Forma de narração em que não há sem dilatação ou contração temporal durante o discurso.
