Como Histoire(s) du Cinéma sintetiza as idéias de Godard?

1. Introdução

Philippe Dubois termina seu livro “Cinema, Vídeo, Godard” afirmando que considera Historia(s) do cinema o “único verdadeiro grande projeto de Godard”. Dubois acredita que os filmes eram apenas “momentos de produção”, enquanto que História(s) seria esse “projeto desmesurado e impossível, que o persegue há muito, um projeto sem limites, lugar de uma imersão insana”.

O autor ainda utiliza uma fala do próprio diretor para comprovar sua tese. Godard certa vez afirmou: “Existo mais enquanto imagem do que enquanto ser real, pois minha única vida consiste em fazê-las”. Antes dessa frase, Dubois aponta que “No fundo, os filmes que faz são seus ‘pequenos ensaios’, ao passo que o vídeo no qual ele se imerge totalmente com História(s) do Cinema não é apenas algo que ele faz, pois se tornou aquilo mesmo que ele é: um corpo de imagens, um pensamento de imagens, um mundo de imagens”. Através desses pensamentos vamos tentar responder, de modo simplificado, como Histoir(es) Du Cinema sintetiza as idéias de Godard?

Podemos então afirmar, considerando que iremos nos basear no trabalho de Philippe Dubois para desenvolver nosso pensamento, que Historir(es) Du Cinema é a síntese do pensamento exposto ao longo do trabalho de Godard tanto nos filmes da nouvelle vague como nos vídeo-roteiros e nos vídeos experimentais. Pensamento esse que explora e converge, por exemplo, escrita, montagem, pintura, fotografia, música e literatura em um só material: o vídeo.

Nosso trabalho consiste, então, em decifrar e apontar quais são esses recursos e como eles são utilizados em História(s) do Cinema.

2. Desenvolvimento

2.1. A Nouvelle Vague

Godard teve sua passagem de crítico a realizador de cinema marcada pela atuação num movimento muito importante na história do cinema, a Nouvelle Vague.

A participação no ideário deste movimento é fundamental para identificarmos crenças e características do cineasta que persistiram e são visíveis na sua produção seriada para televisão: Histoire(s) du Cinema

A Nouvelle Vague é o único movimento que tem em seu impulso o interesse pela memória do cinema. Tal interesse parece ter permanecido e é evidente no conteúdo da série aqui analisada, uma série que se propõe abordar as histórias do cinema, ou seja, uma obra que trabalha em favor da memória do cinema.

Além desse ponto de partida, é necessário entendermos o que o movimento abarcava, quais eram suas influências:

Com o cinema americano os integrantes tinham uma relação de paixão e crítica. Muitas vezes, buscava-se a estilização americana, sem deixar de mesclar influências de outros cinemas, sendo que a linguagem proposta era oposta ao ilusionismo clássico de Hollywood.

A ruptura com essa linguagem toma forma de uma estética do fragmento, da descontinuidade, explicitando muitas vezes o meio e o narrador com, por exemplo, o uso criativo da voz over e da metalinguagem, destoando então da “Fábrica de Sonhos” Hollywoodiana como diz Godard em série, visto que assim, não se prezava o convencimento, mas a reflexão. Tal forma acaba valorizando a montagem, a qual, em Godard, toma ainda maiores proporções pelas aberturas do vídeo, usado na série televisiva aqui analisada.

Na série de Godard, o cinema americano não poderia deixar de ser retratado. A representação carrega a relação de paixão e crítica que já é explícita no início da atuação do cineasta. A linguagem defendida pela Nouvelle Vague e a busca pela reflexão está de certa forma presente na realização – cortes abruptos, além das possibilidades infinitas do meio utilizado, o vídeo. Juntamente a isso, na série, tem-se também um narrador explícito, o próprio Godard – fato que se liga ao ideário da Nouvelle Vague e ao estilo de fazer televisão, por esta explorar a palavra, que também é cara ao cineasta.

A incorporação de estilizações americanas está presente dentro da “incorporação crítica da cultura material e imaterial”. O interesse pela literatura e pintura dentro dos conceitos de arte moderna é freqüentemente apontado nas análises dos filmes do movimento. Como conseqüência da importância dessas artes visuais, tem-se o uso de cartelas, referências a palavra, quadrinhos e pinturas tanto no cinema como no vídeo e, especificamente, em Histoire(s) du Cinema.

Além do cinema americano, temos como grande influência o neo-realismo italiano, que é visto como o único cinema de resistência no pós Guerra (mesmo na série, que dedica um capítulo à produção italiana). O neo-realismo tem sua importância não só pela influência estética – locações, atores não profissionais – mas também por simbolizar o ressurgimento do cinema, que estava em crise pelos efeitos da Guerra.

Vale acrescentar também, o uso recorrente de material documental, material de arquivo – que tanto se liga à proposta de reflexão como a de ter por base a memória do cinema. O próprio cinema é utilizado na série como um tipo de material de arquivo, como uma matéria prima a ser trabalhada.

Houve, pois, uma redefinição dos padrões, no modo de entender e fazer cinema com a Nouvelle Vague e todo esse novo olhar está intrinsecamente ligado à produção godardeana e, conseqüentemente, às Histórias do Cinema.

2.2. Vídeo

Em meados dos anos 70, cineastas como Nicholas Ray, Jacques Tati, Wim Wenders, Michelangelo Antonioni, Francis Ford Coppola e o próprio Jean-Luc Godard, começam uma busca pela experimentação do vídeo e do cinema fundidos, numa espécie de “mostrar as coisas através de telas de vídeo refilmadas, que são literalmente embutidas, incrustadas no quadro negro da imagem de cinema” [1].

Em seu filme-vídeo Numéro deux, Godard trabalha um antagonismo em sua forma plena. “É a idéia mesma de passagem, tanto a dos pensamentos quanto a das formas (…) o vídeo como passe (e não impasse, como pretenderam alguns).”

Citando a expressão de Philippe Dubois, “do sonho à decepção”, as proporções esperadas pelos cineastas a respeito do vídeo como uma identificação do cinema, ou até mesmo sua substituição chegaram ao fim. As experiências de fusão entre cinema e vídeo não obtiveram desdobramentos e não se desenvolveram como se havia anunciado.

É, portanto desta forma, que Jean-Luc Godard começa a pensar o vídeo “separadamente” do cinema. O vídeo agora começa a ser pensado como um meio de se refletir sobre sua própria obra: seja através dos vídeos-roteiros, dos ensaios independentes, das “encomendas” ou até mesmo das séries para televisão, como História(s) do Cinema.

“Todos esses trabalhos em vídeo se distinguem claramente dos filmes em termos de suporte, mas ao mesmo tempo tomam sempre o cinema como objeto ou horizonte. Hoje, é muito claro que alguém como Godard (e ele não é o único) fala, pensa, experimenta seu cinema em vídeo. É pelo vídeo que passam, conscientemente ou não, a pesquisa, os ensaios, os questionamentos que fundam a criação cinematográfica. O vídeo pensa o que o cinema cria.”

(Philippe Dubois, pgs 131 e 132)

Cinema, vídeo, Godard, de Phillipe Dubois

Esse horizonte cinematográfico traçado pelo vídeo é claramente visível na série para televisão em questão, História(s) do Cinema. Nessa série de oito episódios, Godard entrelaça seus pensamentos sobre o cinema mundial e seu próprio cinema através de uma “ferramenta” chamada vídeo. É através dessa ferramenta, ou desse meio, que a objetividade dos ideais propostos começa a traçar um novo rumo. Agora, como não estamos mais diante do “ilusionismo” do cinema, com a sala escura, a tela grande e todo o envolvimento provocado pela sétima arte, o autor trabalha em cima de códigos, metáforas e metonímias. A mensagem a ser passada tem de ser tratada diferentemente já que estamos diante de uma tela menor, com distrações ao nosso redor e conseqüentemente menor atenção ao tema proposto. O vídeo cria uma nova e própria linguagem, mesmo abarcando outras artes.

No vídeo têm-se diversas possibilidades de trabalho como, por exemplo, o uso de diferentes enxertos: foto, música, pintura, escultura e o próprio cinema (se podemos reduzi-lo a um enxerto).

Talvez, por essas diversas possibilidades, ele impulsione momentos de pesquisa expressiva, inventividade formal e experimentação. Vê-se a manipulação temporal recorrente como a câmera lenta e imagem congelada podendo ser, segundo Godard, gestos e corpos, o “desacelerar para ver”, desacelerar como uma operação de pensamento.

Além disso, têm-se efeitos como a sobre-impressão, a imagem dividida, multiplicada, incrustada, ou ainda, com deformações ópticas ou cromáticas juntamente com as inovações como o chroma key e máscaras.

Ainda no tratamento da imagem, tem-se a exploração de movimentos aéreos (desprendido por vezes de ponto de vista humano) lembrando a obsessão pela hipermobilidade do olho das vanguardas dos anos 20, lembrando uma espécie de desumanização da visão, que se equivale ao efeito de “desrealização” do vídeo resultante de suas propriedades.

Na série de Godard, vemos o uso do cinema como matéria-prima sujeita a essas aberturas do vídeo. Pode-se dizer que o seriado, assim como outras obras em vídeo, usa das imagens de cinema para triturá-las e fazê-las voar, como aponta Phillippe Dubois.

A apropriação do cinema por Godard talvez tente destruí-lo, ou ao menos atestar sua morte, não com o humor paródico, como muitas obras em vídeo, mas, entre outros fatores (como a narração, o próprio conteúdo) com a explicitação de seu funcionamento.

“As imagens já não estão mais no lado da verdade dialética do ver e mostrar; passaram integralmente a ser parte da promoção, da publicidade, quer dizer, do poder. É demasiado tarde para não começarmos a trabalhar com o que restou: a lenda póstuma e dourada do que foi o cinema”.[2]

2.3. A pintura e a escrita em História(s)

Cinema e pintura têm uma relação muito entrelaçada na obra de Godard. Phillippe Dubois lembra que “nos filmes dos anos 60, é a pintura que se mostrava no cinema, ao passo que nos anos 80 é o cinema que brinca de pintura” [3]. Ele afirma ainda que entre os dois, ocorre “um duplo movimento de passagem de imagens que estabelece a articulação: de um lado, a pintura rumo à colagem; de outro, o vídeo rumo ao cinema[4].” Nesse sentido, observamos que História(s) do Cinema apresenta essa relação com maestria. Em um dos episódios, por exemplo, Godard sobrepõe à imagem de uma mulher contemplativa sobre um cenário totalmente pictórico de um rio, onde um barco passa calmamente ao fundo enquanto coelhos repousam sobre a margem. Essa paisagem leva uma textura como um afresco, encarnando uma pintura, enquanto que o movimento nos faz lembrar o cinema. Essa sensação nos é facilitada pela existência do vídeo.

Além do importante relacionamento do cineasta com a pintura e com o cinema, Godard sempre teve um relacionamento de amor e ódio com a escrita. Gostava de afirmar que era preciso “ver e não ler” e que “a escrita é lei, portanto morte” [5], ao mesmo que “fez da citação textual e do empréstimo literário a fonte principal, quando não exclusiva, das vozes de seus filmes[6]“.

Dubois aponta que no primeiro momento de seus filmes, o escrito na obra de Godard se manifestava no nível do enunciado diegético, seja através de referências a literatura, ao ato da escrita, a capas de jornais, revistas, panfletos ou pichações. No último filme, o qual Dubois denomina com parte de um primeiro período do trabalho de Godard, A Chinesa, podemos observar a evolução da escrita no trabalho do cineasta que vai se perpetuar em História(s) do Cinema. Aqui, segundo afirma Dubois, “chegamos ao ponto culminante daquela contaminação absoluta pelo vírus da videoescrita, muito além de tudo o que víramos até então[7]“, “O vídeo pensa o que o cinema cria[8]“.

2.4. Tema de História(s) do Cinema

Histórias do Cinema é, como se pode ver, uma obra reflexiva do cinema como um todo e também auto-reflexiva, na medida em que Godard examina sua própria filmografia. É a concretização, a demonstração de um ideal baseado na frase “cinema qu’il arait“, o cinema que poderia ter existido, um conceito baseado numa espécie de hindsight – percepção tardia do que devia ter sido feito. Para Godard, o cinema tem uma função básica que não deveria ser ignorada, que é sua posição como o principal instrumento de propaganda do século XX, pois é a única forma de arte que devido a sua peculiaridade de poder registrar tanto as denominadas ficção e documentário, a arte e a história, teria condições de provocar um discurso. Segundo ele, o cinema falhou na abordagem do segundo, pois não tomou consciência de seu poder arqueológico e psicanalítico, e conseqüentemente, não lutou contra todas as formas de demagogia. Seria através deste, que dissuadiríamos, por exemplo, a tirania nacionalista e o genocídio. Cinema é poesia e “poesia é resistência”.

É possível, através do cinema, contar a história humana. No episódio do cinema italiano em Histórias do Cinema, Godard faz relações do cinema com seu país: “Os Estados Unidos fazem comerciais, os russos, o cinema de mártires e os ingleses não fazem nada”. Ele demonstra sua admiração diante o Cinema Italiano, que para ele, foi o único a resistir à ocupação americana, pois encontrara sua identidade, encontrara sua poesia.

Em Histórias do Cinema, sente-se em Godard certo tom melancólico em relação ao rumo que o cinema e a arte audiovisual tomaram: “A televisão se tornou espetáculo”. Há casos, como o do Cinema Italiano, que, aos olhos de Godard, obtiveram êxito no real propósito.

“Um pensamento que forme uma forma que pense”

3. Conclusão

Podemos vislumbrar na obra do final dos anos oitenta, obra reflexiva de Godard em relação ao cinema como um todo, toda a experiência do cineasta na Nouvelle Vague,  na experiência como crítico e, enfim, na sua integração no movimento do vídeo.

Ele explora as facilidades do vídeo para fazer o que poderia ser considerado sua principal obra e uma síntese de seus pensamentos: Histoire(s) du Cinema. Godard encontra nesta forma de mídia através de sobreimpressões, incrustações, enxertos, uma espécie de liberdade criativa, um tom experimental em que Godard põe todos seus esforços para se expressar, para mostrar ao mundo seus sentimentos, suas indignações, admirações – sua visão sobre o que é cinema , o que foi cinema.

Em História(s,) Godard imerge nas artes visuais como a pintura e , totalmente, no ato de escrever imagens. A escrita é o próprio programa, o próprio vídeo e não mais uma referência. Um livro em imagens, sensações, sons, contraposições que formam o cinema ideal para Godard, aquilo que poderia ter sido e não foi. Reconstrói histórias, junta elementos e mistura períodos.

Se cinema é a manipulação de movimento e tempo, Godard explora com maestria isso em seus vídeos de História(s) Du Cinema.

4. Bibliografia

-AUTRAN, Arthur. Uma história do cinema francês. Contracampo Revista de Cinema. N.37 (http://www.contracampo.com.br/37/frames.htm)

– DANEY, Serge  “Conversa: Jean-Luz Godard/Serge Daney ( a propósito da História(s) do Cinema )”  Cahier du Cinema,  edição 513 com tradução de  Ruy Gardnier  na Contracampo Revista de Cinema N37. Disponível na internet via lista (http://www.geocities.com/contracampo/conversajlgsd.html)

– DUBOIS, Philippe, 1952-. Cinema, vídeo Godard. Mateus Araújo Silva (Trad.). São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

–KELLER, Craig. Jean-Luc Godard. Senses of cinema. Paris, janeiro 2003. Disponível na Internet via lista (http://www.sensesofcinema.com/contents/directors/03/godard.html)

– MACHADO, Arlindo. Pre-cinemas & Pos-cinemas. Campinas: Papirus, 1997.

– MANEVY, Alfredo, Histórias do Cinema Mundial. Campinas : Papirus, 2006

– PRETO, Antônio. Jean-Luc Godard, “Voyage(s) en utopie, Jean-Luc Godard, 1946-2006”, à la recherche d`un théorème perdu. Artecapital, 2006. Disponível na Internet via lista (http://www.artecapital.net/criticas.php?critica=42)

Caio Otagaki, Felipe Carrelli, Joji Kussunoki Filho, Juliano Parreira e Suzana Altero Bispo são graduandos em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)


[1] DUBOIS, p. 175

[2] MANEVY apud  DANEY (NOUVELLE VAGUE)

[3] DUBOIS, p. 251

[4] DUBOIS, p. 251

[5] DUBOIS, p. 260

[6] DUBOIS, p. 260

[7] DUBOIS, p. 286

[8] DUBOIS, p. 289

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