Cinema Sim – Narrativas e Projeções

Felipe Carrelli *

No início do cinema os produtores americanos decidiram tirar a máquina de projeção da mesma sala em que eram exibidos os filmes. Isso porque a aparelhagem causava mais interesse do que a própria película exibida, distraindo os espectadores.

Uma década depois esse paradigma começa a ser revisto. Cada vez mais artistas e cineastas começam a estudar novas formas de exibição e buscam espaços distintos ao da sala de cinema tradicional. O espaço de exibição vira o espaço da projeção e o espectador deixa de ser apenas um simples espectador da ação e se torna o próprio personagem ou até mesmo co-autor da obra, modificando-a. Ao mesmo tempo que a física quântica aponta que todo e qualquer espectador influencia nos resultados de experimentos e que os eventos só acontecem porque existe a figura do espectador, vemos que a importância do autor vem cada vez mais sendo compartilhada com aqueles que apreciam suas realizações.

O meio audiovisual parece ser a principal ferramenta para a coesão entre artista e público devido a sua dinamicidade e sua abrangência.

A exposição “Cinema sim – Narrativas e Projeções” montada no Itaú Cultural de 29 de Outubro a 21 de dezembro apresentou algumas experiências nesse sentido. Diferente de sua instalação anterior “Emergência!” que explorava a interatividade material do público com a obra, essa exposição buscou mais o lado observacional tradicional do cinema. O espectador que visitou a instalação deu trabalho a seu pescoço, a seus olhos e a sua imaginação.

Uma tela e varias imagens. Cada trabalho apresentava variadas oportunidades de escolha e de pontos de vista.

O primeiro trabalho que vi foi para mim o mais impressionante de toda instalação. A sala tinha um largo banco de madeira e duas telas, uma ao lado da outra e exibiam simultaneamente a mesma pessoa passeando pelos cômodos de um apartamento. Inesperadamente, um dos personagens começa a destruir o cenário. No começo os movimentos e a interação nos cômodos são praticamente sincronizados. Depois de um tempo essa temporalidade se desfaz, mas o efeito é ainda mais interessante, pois ao atravessar a parede de um dos cômodos, os personagens parecem atravessar a barreira material e tomar a outra tela.

O movimento destrutivo de um contrasta com o bom comportamento do outro até que em certo momento um pula no espelho do banheiro e desaparece do quarto. No outro vídeo vemos o personagem sair pela porta. A câmera continua seu movimento de travelling lateral ao cenário sem personagem, no entanto. Subitamente, o personagem destrutivo atravessa o espelho do outro banheiro e recomeça sua destruição em quanto no outro cenário o bem comportado começa arrumar o cenário destruído. A ação se repete, em um movimento cíclico perturbador. O vídeo de Julian Rosefeldt, Stunned Man (2004), foi filmado em super 16 mm e digitalizado para a exibição.

Stunned Man, de Julian Rosefeldt

A qualidade técnica é tão impressionante quanto o conceito construído pelo autor. Os cortes falseados nas paredes do cenário são inteligentemente utilizados para a construção da narrativa e a simultaneidade espanta. Sem falas, mas com diversas interpretações que instigam a imaginação do espectador que constrói, ou não, sua própria historia e respostas.

Não tão complexo, mas igualmente intrigante, Peter Fischer e suas duas máquinas de projeção Repellus e I Fly II, combinam criatividade com antiguidade e modernidade. A primeira é composta por duas pás com minúsculas bolas de vidro que giram em torno de uma roda de bicicleta como que em uma roda d’água. A cascata de vidro é atingida pelos raios do projetor acionado pelo visitante e imagens são formadas na cascata. O som da queda parece muito à areia caindo e a imagem projetada é justamente de um homem cavando na areia. A ação toda é muito rápida, mas impressionante. A imagem e preto e branco os intervalos causados provavelmente pela inconstância da cascata despertou em mim uma nostalgia nunca vivida. O trabalhador projetado no nas partículas, ao ar, rapidamente some e depois reaparece. Parece reviver de sua morte.

Na segunda máquina, uma bruma de vapor é expelida após o visitante acionar o interruptor. A imagem projetada é do artista voando e o vapor se desfaz conforme se afasta da máquina.

Outra projeção surrealista é o trabalho Bombillas de Rúben Ramos Balsa. O artista manipulou uma lâmpada elétrica usando cabos de fibra óptica e três projetores de vídeo. Ao passar por debaixo da pequena lâmpada escuta-se o som cativante de um sapateado e sobre nossas cabeças a inusitada imagem de sapatos dentro da lâmpada sapateando. Intrigante e bem humorada a tímida obra pode passar despercebida por algum visitante apressado.

Surreal também é o vídeo de Hiraki Sawa denominado Going Places Sitting Down. A projeção feita em três canais de aproximadamente 9 minutos mostra o interior de uma típica casa inglesa com cavalinhos de balanço sendo o principal personagem. Cômodos e objetos comuns ganham vida e são modificados pela imaginação do artista. Um tapete branco vira paisagem nevada, a banheira em um mar e o piano se dissolve em um rio. Os cavalinhos fazem o movimento de um pendulo que não sai do lugar. Outros cenários aparecem e se transformam como em uma brincadeira de criança, uma imaginação inocente e fantástica.

89 seconds at Alacazar, de Eve Sussman e Rufus Corporation

Eve Sussman e Rufus Corporation,com seu trabalho 89 seconds at Alcazar, reproduzem os momentos anteriores e seguintes à cena do quadro As Meninas de Diego Velásquez. Na obra de 1656, vemos um pintor pintando um gigantesco quadro, pessoas ao seu redor e ao fundo um espelho que revela a quem o pintor estaria imortalizando. A metalinguagem da pintura toma proporções ainda maiores no vídeo. Para mim, foram dez minutos perturbadores e claustrofóbicos. Os personagens do quadro tomam vida e a fiel semelhança à pintura impressiona. A atmosfera visual reproduz o espaço congelado no tempo e nos mostra o que a obra detalha sutilmente através do distante espelho atrás do pintor. A câmera em um movimento leve e contemplativo dá a volta de 360° no espaço e nos revela áreas ausentes na pintura plana. A câmera flutua pelo cenário e se aproxima dos personagens mortos no tempo, mas vivos e presos eternamente na moldura. Sem saber que já estão mortos, ou que serão para sempre observados, os personagens observam o trabalho do autor. A lente de Sussman  faz o papel que antes fez o olho de Velásquez e imortaliza em outra época outras pessoas (ou seriam as mesmas?).

No entanto, o vídeo não nos apresenta o próprio Diego Velásquez, que deveria estar na cena, pintando o quadro As Meninas que vemos. Nesse sentido, a reprodução do quadro no vídeo é uma ficção dentro da própria ficção e a câmera que registra o evento como em um documentário, omite a realidade.

O mais interessante de tudo isso foi que eu não conhecia a pintura e pensei durante a sessão que o pintor do quadro era o próprio Velásquez. No entanto após ver o quadro percebi o quanto minha imaginação havia me enganado. A experiência do olhar nesse caso foi ainda mais intensa pela ausência do ponto de vista obtido através de uma bagagem anterior (ou seja  o conhecimento da pintura propriamente dita).

Com diferente temática mas com conceito parecido, a obra Drama No. 3 de Yong-Seok Oh trouxe uma projeção de 6min40s que mostrava planos estáticos de diferentes tempos em um mesmo espaço. Diferentes pessoas trafegam nesses espaços em distintas épocas. Mistura ficção e documentário em um mesmo plano e constrói um mosaico de imagens que são delineadas pelos pixels e a leve diferenciação das cores das imagens. Coloca nuvens no céu azul, carros em estradas vazias e mistura estações do ano. Em um plano, vemos a tela dividida em dois: do lado esquerdo, verão e um sol escaldante; do lado direito, inverno com muita neve. Em outro, um cara pesca no lago enquanto outro se afoga sem ajuda. Monta historias e desconstrói ambientes modificando o espaço temporal das ações.

A exposição ainda trouxe palestras, debates e filmes, fechando o ciclo de 2008.

Felipe Carrelli é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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